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Superar a Iniquidade Racial

O preconceito racial – seja pessoal e institucional, seja consciente e inconsciente – se infiltra em todas as partes do processo filantrópico e de doação. O resultado é que organizações sem fins lucrativos comandadas por pessoas negras recebem menos recursos que as lideradas por brancos, e a filantropia acaba reforçando os problemas sociais que afirma tentar combater.

Por Cheryl Dorsey, Peter Kim, Cora Daniels, Lyell Sakaue e Britt Savage

Uma organização sem fins lucrativos dirigida por um ameríndio recentemente viu-se na época de renovar seu contrato de doação. Seu CEO esperava que o processo fosse simples. Afinal, sua organização era donatária daquela fundação havia 25 anos e fazia parte do portfólio do diretor do programa havia quase oito. Ainda assim, ele se viu obrigado a defender a abordagem da sua organização e seu comprovado sucesso.

Enquanto isso, um dos colegas brancos do CEO encontrou-se por acaso com aquele mesmo diretor do programa na fundação em um bar, depois de uma conferência e, num guardanapo de papel, esboçou um plano de projeto de três anos. Em três meses, seu financiamento estava assegurado. O tempo que o processo do CEO ameríndio levou para ser aprovado? Dezoito meses.

“Esse tipo de privilégio, de acesso, essa confiança, é algo muito poderoso, e terrível”, afirma Mike Roberts, o CEO ameríndio da história. “E essa disparidade é exatamente o que aconteceu conosco há pouco tempo. Tenho histórias similares relativas a quase todos os pedidos de doações que fizemos”.

Robert é CEO do First Nations Development Institute, instituição fundada há 40 anos que trabalha para melhorar as condições econômicas em comunidades ameríndias por meio de um programa direto e de doações para organizações de base. O First Nations recebeu quatro estrelas do Charity Navigator, órgão norte-americano independente que avalia doações, por oito anos consecutivos, uma distinção mantida por apenas 4% das organizações sem fins lucrativos do país.

Muitas fundações reconheceram, ainda que tardiamente, as arbitrariedades enfrentadas por Robert, e estão tendo diálogos francos sobre assuntos que envolvem raça e acesso. Começa-se a perceber que uma mudança ampla não pode ocorrer sem a compreensão do papel da raça e do racismo nos problemas que os filantropos trabalham para resolver. Alguns financiadores estão abordando tópicos sobre diversidade, equidade e inclusão (DEI, na sigla em inglês) em seus processos filantrópicos. Outros estão promovendo treinamentos contra a opressão para seus funcionários. Há ainda os que estão convocando a participação de líderes negros da comunidade. E, mesmo assim, as injustiças seguem por todo o setor.

A natureza sistêmica do problema levou a Echoing Green e o The Bridgespan Group a se juntarem para estudar a fundo as iniquidades no financiamento filantrópico. Como intermediários, trabalhamos com organizações que, muitas vezes, encontram-se em momentos distintos de desenvolvimento, o que nos dá uma visão mais ampla do setor. A Echoing Green é uma organização sem fins lucrativos que se dedica a apoiar líderes emergentes e suas organizações iniciantes, além de oferecer capital semente e desenvolvimento de liderança por meio de seu programa anual de bolsas. Desde sua fundação, em 1987, já foram 832 bolsistas. A Bridgespan é uma organização sem fins lucrativos internacional que assessora empresas e filantropos. As iniquidades preocupantes que ambas as organizações testemunham refletem quanto o setor está sofrendo.

Vejamos a lista de candidatos para a Echoing Green, na qual entram muitos dos líderes e organizações iniciantes mais promissores do setor. Olhando apenas para os candidatos mais qualificados (aqueles que chegaram ao menos até a fase semifinal), nosso estudo descobriu que, em média, as receitas das organizações dirigidas por negros são 24% menores que as daquelas comandadas por brancos.

Quando se trata do Santo Graal do apoio financeiro – fundos não alocados –, o cenário é ainda mais desanimador. Os ativos líquidos irrestritos de organizações comandadas por pessoas negras são 76% menores que os das lideradas por brancos. A flagrante discrepância é especialmente surpreendente, uma vez que tais financiamentos em geral representam um critério indicativo para a confiança.

Disparidades quanto à raça do líder persistem mesmo quando são levados em conta fatores como localização e nível educacional, e se entrecruzam também com disparidades de gênero. Por exemplo, entre as organizações que obtiveram bolsas da Echoing Green’s Black Male Achievement, que se concentra na melhoria das condições de vida de meninos e homens negros nos Estados Unidos, as receitas das organizações comandadas por negros são 45% menores que as das empresas gerenciadas por brancos, e o ativo líquido sem restrição das organizações que têm negros como líderes são 91% menores – uma porcentagem impressionante – se comparadas às comandadas por brancos – apesar de se concentrarem no mesmo trabalho.

Desigualdades raciais semelhantes aparecem na lista de candidatos da Echoing Green para líderes com os mesmos níveis educacionais – mulheres negras em posição de liderança recebiam menos apoio financeiro que homens ou mulheres brancas.

Essas iniquidades não são novidade e não se limitam à Echoing Green. Organizações comandadas por pessoas negras vêm alertando sobre os desequilíbrios há um bom tempo. Segundo o relatório Race to Lead, do Building Movement Project, líderes negros, em média, trabalham com uma receita menor e são mais propensos que líderes brancos a relatar a falta de acesso ao apoio financeiro (e os desafios enfrentados para assegurá-lo) em uma variedade de fontes de financiamento.

Por exemplo, 72% contavam com membros do conselho que não angariaram fundos, comparados a 64% no caso de líderes brancos; 63% dos negros relataram não ter como chegar  a doadores individuais, contra 49% dos brancos; e falta acesso a fundações para 51% dos negros , ante 41% dos brancos.

“Chamo isso de questão de justiça filantrópica”, afirma Edgar Villanueva, vice-presidente de programas e advocacia da Schott Foundation for Public Education e autor do livro Decolonizing Wealth. “Apesar de todo o falatório sobre diversidade, equidade e inclusão, e do avanço conquistado nas fundações, quando se olha para quem está recebendo o dinheiro, ainda se vê uma enorme injustiça. Quando se pensa nos bilhões de dólares sendo distribuídos anualmente e na pequena porcentagem que vai para as comunidades e líderes negros, é possível ver que, na verdade, é tudo muito injusto. E acho que o setor filantrópico deve olhar para isso como uma grande falha da nossa parte.”

 

Contribuições Inadvertidas para Iniquidades Raciais

 

A Brigdespan e a Echoing Green não podem esperar que o setor trabalhe realmente para resolver as desigualdades raciais sem assumir sua responsabilidade pelos papéis que nossas organizações têm tido ao ajudar a criar a realidade atual.

No que diz respeito à Echoing Green, consideramos nossas próprias responsabilidades como financiadora de estágio inicial. Continuamos a ajudar líderes negros a lançar suas organizações, embora saibamos que, devido às barreiras que vão encontrar, será difícil para muitos deles manter o apoio da comunidade financiadora à medida que tentam crescer.

Das muitas lições que continuamos a aprender com nossos parceiros, uma delas nos ensina que não podemos apresentar a Echoing Green Fellowship como “a grande equalizadora”. Ser transparente acerca da realidade dos financiamentos é, para nós, uma escolha moral, principalmente à medida que testemunhamos os enormes desafios enfrentados por nossos bolsistas negros cujo trabalho se concentra na justiça racial. Nosso entusiasmo por seus caminhos como líderes vitalícios de movimentos sociais não derrubará as barreiras que enfrentam, ainda que eles tenham tido sucesso na árdua missão de conseguir uma bolsa.

Aprendemos como é fundamental admitir explicitamente que ainda atuamos em um sistema de iniquidade que faz com que o caminho a ser percorrido seja, para alguns parceiros, difícil de ser vencido. Decidir ser mais honesto também nos permite elaborar nossas intervenções programáticas no contexto dessa realidade desafiadora, não apesar dela.

Quanto à Bridgespan, reconhecemos que não estamos trilhando o caminho da equidade racial há tanto tempo quanto a Echoing Green ou outras vozes importantes contra a presença de preconceito racial nos financiamentos. Nosso próprio foco em medidas rigorosas levou aqueles que orientamos a ignorar o potencial de organizações que não se enquadram na restrita definição de “bom” estabelecida por essas medidas. Tais definições podem depender demais da ideia de olhar para trás para ver “o que deu certo” (muitas vezes algumas poucas coisas previsíveis) em vez de seguir adiante e passar a adotar abordagens, ideias e soluções propostas por uma variedade de vozes.

A Bridgespan fez também, e de maneira entusiasmada, grandes apostas filantrópicas (comprometimentos filantrópicos de ao menos 10 milhões de dólares para organizações ou iniciativas), muitas vezes sem refletir sobre a forma como essa abordagem pode contribuir para as iniquidades raciais – e até mesmo exacerbá-las – caso não sejam feitas com uma atenção explícita à equidade e à inclusão. Em geral, organizações capazes de obter a atenção necessária para conseguir essas doações são grandes e relativamente bem financiadas. Ademais, doadores que correm mais risco percebem quando fazer grandes apostas pode levá-los a confiar em processos e sistemas “testados e comprovados” infestados de preconceito.

 

Barreiras Raciais para o Financiamento

 

Muitas pessoas no âmbito das organizações sem fins lucrativos já sabem que as disparidades raciais importam. De fato, a filantropia está atuando cada vez mais na crença de que um setor menos diversificado no que diz respeito a pessoas, organizações e ideias prejudica o impacto geral de todo um setor. Note que embora apenas 25% das fundações familiares valem-se de objetivos ou estratégias formais de diversidade, equidade e inclusão (DEI) para orientar suas doações, basear-se nesse tripé é algo significativamente mais comum em fundações familiares criadas nos últimos dez anos.

Esse aumento da consciência de que a equidade e a inclusão são necessárias, porém, não é suficiente para diminuir a lacuna racial já existente. Para que ocorram mudanças, a consciência tem de provocar atitudes deliberadas. Reconhecidamente, a discriminação estrutural que se espalha por nossa sociedade levou uma eternidade para se consolidar e será preciso outra eternidade até que desapareça. Ainda assim, o que especificamente está impedindo o setor de colocar em prática uma realidade mais equitativa do ponto de vista racial? O que precisamos fazer de outra forma para que a realidade corresponda melhor às nossas intenções e esperanças?

Para encontrar respostas para essas perguntas, entrevistamos mais de 50 líderes do setor, incluindo executivos negros de organizações sem fins lucrativos, funcionários de instituições filantrópicas e pessoas que trabalham para resolver essa situação. Um indício de como as discussões sobre desigualdade racial e financiamento são um tema delicado: a grande maioria dos líderes negros com quem falamos durante nosso estudo afirmou que só conversaria conosco se seus nomes não fossem revelados.

Executivos de instituições sem fins lucrativos temem perder financiamento se falarem abertamente sobre o comportamento dos doadores. Porém, quando conversamos com líderes negros, esse receio mostrou-se maior. Ao menos um deles parou a entrevista para confirmar, uma vez mais, que não estávamos gravando a conversa, ao passo que outros fizeram questão de nos lembrar, mais tarde, de que suas experiências não poderiam ser publicadas. O medo é um sinal de como os líderes negros acreditam que seus relacionamentos com instituições financiadoras são frágeis. Nós honramos esses pedidos e não incluímos seus nomes neste artigo.

Durante essas conversas, observamos repetidamente que líderes negros se deparam o tempo todo com quatro barreiras durante o processo de arrecadação de donativos. Essas barreiras revelam como o preconceito inconsciente pode perpassar os processos institucionais e ser internalizado por profissionais que atuam na área filantrópica. Em geral, mesmo não sendo intencional, trata-se de algo ainda assim pernicioso.

Nós detectamos regras usadas por financiadores que podem inadvertidamente fomentar barreiras. Tal reflexão se faz necessária porque essas regras prejudicam as melhores intenções dos financiadores na busca pela equidade. Em nossas conversas, e em nossa subsequente pesquisa, identificamos também formas de ajudar a derrubar as barreiras.

A seguir, veremos as quatro barreiras.

 

Primeira Barreira: Conectar-se

 

Líderes negros têm acesso desigual a redes sociais que permitem conexões com sua comunidade filantrópica.

 

Quando os financiadores dizem:

 

“Líderes negros não estão nos procurando para financiamentos, então parece haver um problema no processo. Porém, talvez a gente não esteja se conectando com as pessoas certas”.

 

A realidade dos líderes negros:

 

O mundo da filantropia baseia-se nos relacionamentos – faz diferença quem você conhece e quem conhece você. A facilidade com que confiança e relacionamento se desenvolvem se espalha de formas muito diversas no que se refere às diferenças, em especial em relação à raça. Muitas vezes, líderes negros são excluídos tanto de eventos formais, como convenções, quanto de reuniões informais.

Nossas redes sociais desempenham papel fundamental na exclusão de alguns grupos de pessoas. Atualmente, são brancos 92% dos presidentes das fundações americanas, 83% de outros executivos que atuam em tempo integral e 68% dos diretores dos programas. Segundo a American Values Survey, 75% dos brancos possuem redes sociais compostas somente de pessoas brancas. Essa falta de acesso – em essência, a falta do privilégio de “ser amigo de alguém” – pode ter consequências duradouras para líderes negros e para a sobrevivência e o crescimento de suas organizações. “Só me sento para negociar em lugares que eu mesmo conquistei, e que podem muito bem não ser os lugares onde se assinam cheques de meio milhão de dólares”, afirma um líder negro.

 

O que os financiadores podem fazer:

 

Diversificar as vias de acesso a recursos é uma maneira de se aproximar de um portfólio de donatários mais racialmente diverso. Peguemos uma fonte comum: recomendações de colegas. Estudos mostram que a maior parte das fundações vê seus colegas como uma fonte confiável para a obtenção de conhecimento para influenciar suas práticas filantrópicas. Embora às vezes esse conhecimento possa ajudar a diversificar o portfólio, mais frequentemente ele cria uma câmara de ressonância que faz com que o fluxo de capital seja direcionado a um número menor de organizações e a líderes que já têm acesso a redes de financiadores.

Financiadores podem avaliar e diversificar suas fontes para selecionar projetos procurando especialistas em equidade racial, examinando as pessoas presentes em uma conferência e usando recursos criados para esforços de equidade como a Change Philanthropy. Estaria um determinado método de seleção priorizando a diversidade, a equidade e a inclusão (DEI)? Certos canais promoveram um grupo mais racialmente diverso que outros? Os filtros usados (como tamanho do orçamento) estariam excluindo, de modo desproporcional, organizações lideradas por pessoas negras? Se um grupo de prospecção não atinge um limite de líderes racialmente diversificados, é importante considerar a possibilidade de não aceitá-lo ou de fazer um trabalho proativo de divulgação que possa diversificá-lo.

Uma diretora de programa de uma fundação que está tentando resolver esse problema chama, em tom jocoso, seus esforços de “filantropia subversiva”. Ela passa muito tempo pesquisando organizações e entrando em contato com diretores executivos, sobretudo de organizações sem fins lucrativos menores e mais novas voltadas para as comunidades que em geral não têm acesso às fundações mais importantes da sua região. “Estou em uma cruzada pessoal”, conta. “Independentemente dos resultados, financiadores seguem outros financiadores. Então, sempre que doamos para uma organização ou sempre que entro em contato com uma organização, compartilho essa informação com outros financiadores. Espero que as decisões a respeito dessas doações se espalhem.”

 

Segunda Barreira: Desenvolver Relações

 

 O preconceito interpessoal pode se manifestar como desconfiança e na forma de pequenas agressões que inibem o desenvolvimento das relações e se tornam um fardo emocional para os líderes negros.

 

Quando os financiadores dizem:

 

“Eu me preocupo em tentar tratar todos da mesma forma. Porém, estou tendo dificuldade para me conectar de maneira mais pessoal com líderes negros”.

 

A experiência dos líderes negros:

 

Dado o inerente desequilíbrio de poder entre financiadores e donatários, aqueles muitas vezes impõem suas regras culturais (intencionalmente ou não) a estes. É um tipo inconsciente de preconceito que pode complicar relacionamentos com líderes negros devido às dinâmicas de raça e que leva ao que chamamos de “alteridade”.

O preconceito é um fato da vida. Não é apenas o racismo do tipo “vamos reconhecer quando nos depararmos com ele” cometido por outras pessoas. Na verdade, o preconceito inconsciente pode se infiltrar em nossa vida vindo de todos os lugares, inclusive de pessoas bem-intencionadas. Ainda que inconscientes, esses preconceitos interpessoais podem se manifestar como desconfiança ou em pequenas agressões e impedir ou corroer relacionamentos.

A luta constante para desenvolver relacionamentos sob essas condições adversas pode deixar cicatrizes mentais e emocionais nos líderes negros. “Você é tratado como um ignorante”, diz um deles. “Tem sido muito dolorido para mim. Os círculos são pequenos, então você fica se encontrando com financiadores que fizeram com que se sentisse assim repetidas vezes.” Líderes negras com quem conversamos relataram ainda que nessas situações pode ser difícil interpretar quais “ismos” estão em jogo (racismo, sexismo ou ambos), um sinal de que as experiências de identidades entrelaçadas de raça e gênero não devem ser subestimadas nem ignoradas.

O que os financiadores podem fazer:

 

Acabar com o preconceito inconsciente exige trabalho e aprendizado deliberados, além de uma reflexão honesta. “Uma das razões pelas quais não vemos equidade suficiente nos financiamentos são os pré-julgamentos que as pessoas trazem para o trabalho”, explica Fred Ali, CEO da Weingart Foundation. “Independentemente de sabermos ou não, há preconceitos enraizados em nossas pressuposições, em nossos sistemas e nas práticas que podem perpetuar iniquidades se não agirmos ativamente para superá-los.” Esse trabalho é uma jornada contínua que precisa de atenção constante, e não algo que pode ser conferido e riscado da lista. Isso porque questões de raça e identidade são muito pessoais e estão em constante evolução.

Compreender, respeitar e valorizar a diferença e as vozes dos outros exige ouvir, não apenas falar. Todos nós temos de assumir o trabalho de descobrir e resolver nossos próprios preconceitos e, de modo proativo, ir encontrar as pessoas onde elas estão sem esperar sempre que venham até nós. Em última instância, romper essa barreira exige uma comunidade financiadora disposta a abraçar a humildade.

O Trust-Based Philanthropy Project, iniciativa de cinco anos entre financiadores, conta com um número cada vez maior de fundações comprometidas a reformular os relacionamentos entre financiadores e donatários. O projeto funciona com o intuito de forjar confiança e derrubar desequilíbrios de poder centrando esses relacionamentos em humildade, equidade e transparência. Os princípios orientadores oferecem às fundações várias formas de fazer isso, incluindo fornecer aos donatários financiamentos multianuais irrestritos, solicitar feedbacks e agir de acordo com eles, além de oferecer apoio não financeiro responsivo e adaptativo.

Pia Infante, diretora coexecutiva do The Whitman Institute, de onde se originou o projeto, explica que “o futuro da filantropia exige mais humildade e mais solidariedade. Financiadores são, no fim, responsáveis pelas comunidades que não estão sendo atendidas por nossa democracia”.

Para combater o preconceito implícito, a Echoing Green passou a avaliar “às cegas” sua lista de candidatos, ocultando informações demográficas importantes. Além disso, implementou treinamento contra preconceitos implícitos para a comissão julgadora que atua nas bancas de entrevista para concessão de bolsas. No último dia da entrevista, antigos parceiros agem como júris principais. Sabendo que o preconceito ainda pode surgir apesar das atitudes para evitá-lo, a Echoing Green monitora, também, a categorização racial dos candidatos em momentos-chave por todo o processo de seleção. Ao longo dos últimos cinco anos, 74% dos americanos contemplados pela Echoing Green afirmaram ser negros.

Terceira Barreira: Garantir Apoio

 

Muitas vezes, os financiadores não dominam abordagens culturalmente relevantes, o que os leva a confiar em excesso em determinadas formas de avaliação e estratégias com as quais já estão familiarizados.

 

Quando os financiadores dizem:

 

“Eu gostaria de financiar soluções criadas por comunidades negras, mas elas não têm comprovações de eficácia ou capacidade de execução. E muitas abordagens parecem amplas demais, buscando fazer muitas coisas”.

 

A experiência dos líderes negros:

 

É um círculo vicioso: é preciso financiamento para desenvolver competência e avaliar a eficiência, mas, ainda assim, ter experiência nesses pontos é uma precondição comum para garantir o financiamento. Vários líderes negros afirmam que “falta de capacidade” e “falta de evidência” são, em geral, códigos usados por financiadores para justificar a decisão de não investir. Um olhar mais sereno sobre as raízes dos problemas mostraria que o histórico de subfinanciamento de organizações e comunidades negras é, muitas vezes, responsável por isso.

Ademais, financiadores frequentemente dependem de sua compreensão “do que dá certo” para avaliar uma promessa. Porém, origens e experiências práticas mostram como os líderes trabalham e quais soluções podem implementar, independentemente do problema. Não surpreende que líderes negros recorram a sua origem cultural para criar abordagens inovadoras, sobretudo ao lidar com problemas que afetam sua própria comunidade.

O relatório Race to Lead mostrou que quase metade dos diretores executivos e CEOs negros comandam organizações voltadas para questões de identidade focadas em pessoas negras. Se um financiador não tem relacionamentos genuínos dentro das comunidades negras e uma compreensão profunda dos problemas enfrentados por tais comunidades, essas abordagens culturalmente relevantes podem não fazer sentido, levando-os a confiar demais em estratégias com as quais estão mais familiarizados, ainda que estas possam não ser adequadas.

O que os financiadores podem fazer:

 

Em última instância, a criação de um portfólio com um conjunto mais diversificado de donatários exigirá dos financiadores a reformulação de suposições sobre o que vale a pena ser financiado e a respeito de onde é possível encontrar soluções. Hoje em dia, por exemplo, muitos financiadores confiam em critérios básicos sobre o tamanho da organização que estão dispostos a financiar. Essa prática criou uma classe quase invisível de organizações que são constantemente descartadas por serem “pequenas demais para receber financiamento”. Esse pensamento prejudica os líderes negros porque, em geral, eles comandam organizações menores. E ignora o subinvestimento histórico nessas organizações e em seus líderes.

Além disso, os financiadores podem priorizar mais a proximidade – valorizando organizações e líderes mais próximos dos problemas que estão sendo abordados. Bryan Stevenson, defensor da justiça social, advoga há bastante tempo que o ponto principal para se tornar agente de mudança é “estar mais próximo”. O conhecimento e a compreensão dos problemas que um líder que atua dentro da comunidade possui é algo muito valioso e que pode fazer com que tanto a organização quanto sua abordagem se tornem distintas e eficientes.

Em seu artigo Shifting Philanthropy from Charity to Justice, publicado na Stanford Social Innovation Review, Dorian O. Burton e Brian C. B. Barnes valem-se do conceito de Stevenson para instar organizações financiadoras a “contornar o processo de concessão de fundos baseado na ausência de contato e em histórias agradáveis do tipo ‘oferecer sem ver’, contadas muitas vezes em happy hours pouco diversificados, e a se esforçarem para estar in loco, onde podem identificar claramente como os atuais sistemas – e, em alguns casos, suas próprias práticas – estão perpetuando injustiças”.

Um bom exemplo da valorização de uma liderança mais próxima é a iniciativa Building Institutions and Networks (Build), da Ford Foundation, um investimento de 1 bilhão de dólares, ao longo de cinco anos, em organizações de justiça social voltadas para a redução da iniquidade. A maioria dessas organizações que fazem parte do grupo da Build tem um orçamento de 200 milhões de dólares; a menor, de 200 mil dólares. A ideia por trás da Build não é apenas conceder financiamentos maiores, mais longevos e flexíveis, mas também permitir que os donatários decidam como gastá-los.

 

Quarta Barreira: Manter Relacionamentos

 

Processos de renovação de doação podem ser árduos caso a desconfiança persista, e o financiamento pode ser interrompido se o financiador tiver uma visão voltada para pessoas brancas que defina as prioridades estratégicas e a avaliação do progresso.

 

Quando os financiadores dizem:

 

“A organização não cumpre os objetivos que estabelecemos para ela e não nos avisa com antecedência”.

 

A experiência dos líderes negros:

 

Mesmo após uma organização sem fins lucrativos ter conseguido a doação, manter um relacionamento com o financiador pode seguir sendo desafiador. Observamos que o processo de renovação pode ser especialmente complicado para líderes negros, como foi o caso vivido por Mike Roberts, da First Nations. Muitas vezes, é um sinal de que a desconfiança persiste. As tensões tendem a ocorrer principalmente se o financiador e o líder não estiverem alinhados em relação a como avaliar o progresso ou quanto àquilo que faz parte de uma prioridade estratégica (por exemplo, financiadores com uma visão limitada a respeito de determinadas métricas ou da definição de áreas do programa que não estão alinhadas com a experiência e as necessidades da comunidade). “Se confiassem em mim, me tratariam como um sócio”, diz um líder negro.

 

O que os financiadores podem fazer:

 

Tratar seus donatários negros como sócios ajudará a capacitá-los para trabalhar melhor. Devido ao inerente desequilíbrio de poder entre aqueles que têm dinheiro e aqueles que pedem dinheiro, pode ser difícil desenvolver um relacionamento recíproco. Porém, é um objetivo que vale a pena ser buscado.

Parte de se criar essa parceria envolve definir objetivos comuns. Para os fundadores, isso não significa fazer seus donatários se comprometerem com suas metas, mas sim ouvir mais os objetivos dos donatários e encontrar formas de apoiá-los. Quando se trata de avaliação e relatórios, um erro comum é fazer exigências irreais para que os relatórios estejam mais alinhados com as preferências de supervisão do fundador que com o aprendizado e a melhoria das necessidades dos donatários. Assegure que suas métricas sejam relevantes para seus donatários e não apenas para você. E se seus donatários não estiverem atingindo os objetivos, dialogue para saber os motivos. Deixe claro suas expectativas e, junto com seu feedback, dê tempo para que os problemas sejam resolvidos.

Para desenvolver uma parceria verdadeira com os donatários é importante compreender as comunidades a que eles atendem e os problemas que estão tentando resolver. Isso vai além de visitas aos lugares e muitas vezes exige que os fundadores abandonem suas zonas de conforto. Para alguns, pode significar comparecer a reuniões da comunidade – não como financiadores, mas como observadores. Para outros, consiste em incentivar feedbacks honestos dos donatários e a valorização de sua franqueza.

 

O Tipo Errado de Impacto

 

O efeito adverso dessas quatro barreiras é evidente. Somente na lista de candidatos da Echoing Green de 2019, considerando-se apenas candidaturas dos Estados Unidos, as disparidades do financiamento entre organizações iniciantes comandadas por negros e por brancos somavam ao menos 20 milhões de dólares. As 492 organizações dirigidas por candidatos negros arrecadaram, ao todo, 40 milhões de dólares, contra 61 milhões obtidos pelas 396 lideradas por candidatos brancos.

As disparidades continuam à medida que as organizações buscam prosperar. Segundo a New Profit, durante a fase de mezanino, líderes negros e latinos recebem apenas cerca de 4% do financiamento, embora representem aproximadamente 10% dos líderes de organizações sem fins lucrativos. Nas últimas etapas do financiamento, o padrão persiste. Do total de big bets [grandes apostas] para mudança social documentadas entre 2010 e 2014, apenas 11% foram para organizações comandadas por negros. E uma organização, The Harlem Children’s Zone, foi responsável por cerca de um terço dessas apostas.

As consequências pessoais dessas barreiras podem ser devastadoras. Ouvimos repetidas vezes durante nossas entrevistas que o trauma provocado por esses obstáculos e iniquidades leva muitos líderes negros a cogitar abandonar o terceiro setor. Chegamos a conversar com uma líder promissora que deixou o mundo das organizações sem fins lucrativos em vez de aceitar uma promoção para ocupar o cargo de liderança de sua organização porque, como mulher negra, não queria carregar o fardo de ser responsável pela arrecadação de fundos.

Até pouco tempo, Vu Le era diretor executivo da Rainier Valley Corps, organização sem fins lucrativos que promove justiça social capacitando líderes negros. Ele também tem um blog bastante popular, Nonprofit AF, no qual explora questões de raça e iniquidade no mundo das instituições sem fins lucrativos. Vu Le afirma que essa perda de líderes negros é um “problema urgente” para o setor. Apesar de ter um relacionamento positivo com seu conselho e sua equipe, ele deixou recentemente a Rainier, depois de 12 anos, porque precisava dar um tempo.

O burnout é algo comum entre todos os líderes de organizações sem fins lucrativos, e a arrecadação de financiamentos cobra um preço alto. Porém, para os líderes negros, o peso extra de sua raça – seja lidando com ignorância cultural, pequenas agressões ou racismo descarado – pode deixar as coisas significativamente mais difíceis. “Isso cresce como toxinas no seu corpo e cobra um preço emocional, psicológico e às vezes físico”, escreve Le. “É cansativo e desmoralizante nunca obter recursos suficientes para implementar por completo soluções que, graças a nossa experiência, sabemos que funcionariam, ao passo que colegas brancos conseguem dez vezes mais recursos do que tínhamos pedido para colocar em prática ideias que sabemos que não vão dar certo porque, embora bem-intencionados, eles não entendem as comunidades a que tentam atender e tampouco têm uma relação com elas.”

Observamos que frequentemente líderes adotam um conjunto de estratégias como resposta a repetidas interações da comunidade de financiamento que são carregadas de preconceitos, e algumas dessas respostas podem prejudicar seu sucesso a longo prazo. Por exemplo, alguns líderes evitam determinados financiadores; outros pedem menos recursos; e muitos hesitam cada vez mais em divergir ou discordar de financiadores quando há muita coisa em jogo.

Esse conjunto de respostas torna-se quase uma barreira em si mesmo – chamemos de uma quinta barreira invisível. “A filantropia tem a característica de silenciar os negros”, diz um líder negro. “Financiadores podem achar que isso não está acontecendo, mas se meu ponto de vista não estiver alinhado ao seu, ainda que negociemos, no fim a última palavra não é minha.”

Um Caminho a Ser Seguido

 

Alguns líderes brancos de fundações, bem como alguns filantropos, cientes do impacto causado pelo racismo no terceiro setor, atuam de acordo com o seguinte pressuposto: “Se eu não contribuí para o problema, então fiz o suficiente”. Contudo, passividade e silêncio são parte do problema. Ibram X. Kendi trabalha com isso em seu livro Como ser Antirracista. Não ser racista não é suficiente, defende o autor, é preciso denunciar e erradicar o racismo em todos os lugares em que o encontrarmos. Nessa repaginação, não há algo como não racistas, apenas racistas (aqueles que permitem que o racismo prolifere) e antirracistas (aqueles que o combatem onde quer que o encontrem).

É uma coisa poderosa combinar essa ideia com o trabalho do psicólogo social Phillip Atiba Goff, diretor do Center for Policing Equity (CPE), que ajuda departamentos policiais a usar dados para mudar comportamentos discriminatórios. Recentemente, o CPE recebeu uma grande doação do The Audacious Project, instituição financiadora colaborativa que recebe consultoria da Bridgespan e que está sediada na organização TED. A pesquisa de Goff explora situações em que o preconceito racial não é, necessariamente, uma precondição para a discriminação racial. Ele desafia nossa mais comum definição de racismo, aquela que vê comportamentos racistas como produtos de “corações e mentes contaminados”.

Para Goff, esse enfoque é equivocado. A definição “que se preocupa mais com as intenções do agressor que com o dano sofrido pelo agredido” é inerentemente racista, explica. Em vez disso, Goff quer mudar o enfoque das atitudes para os comportamentos: “Se mudarmos a definição de racismo, deixando de nos concentrar nas atitudes e passando a fazê-lo nos comportamentos, transformaremos o problema de impossível em solucionável – porque é possível avaliar comportamentos”, disse ele durante sua participação numa Ted Talk, em 2019.

Ainda assim, reconhecemos que criar fluxo de financiamentos racialmente equitativos é uma tarefa árdua. Os obstáculos e desafios do dia a dia que funcionários de instituições filantrópicas enfrentam podem ser significativos. Uma das lições de Goff e Kendi mostra como a discriminação racial cotidiana pode ocorrer independentemente das intenções. É algo que vai ao encontro do que Fred Ali, CEO da Weingart Foundation, diz sobre o fato de o preconceito se infiltrar em todas as áreas do trabalho.

O desafio pode ser desanimador, mesmo para aqueles dotados das melhores intenções. Ainda assim, não nos esqueçamos das dezenas de líderes negros que durante esta pesquisa compartilharam suas histórias de dificuldade. Apesar dos riscos, eles não se importaram em se mostrar vulneráveis e compartilharam sua dor, sua frustração, seu medo e suas preocupações. Mesmo com as barreiras enfrentadas, tiveram sucesso. Nesse aspecto, há também histórias de enorme dedicação, perseverança e força individual. E isso é algo para nos inspirar e, espera-se, nos motivar a sermos melhores.

O que nos leva, uma vez mais, a indagar por que a iniquidade racial no financiamento é importante. Sim, disparidades raciais em financiamentos prejudicam seu impacto. Porém, tais disparidades também importam porque sem tomar medidas antirracistas para garantir a equidade no financiamento para todo o terceiro setor, filantropos contribuem, inadvertidamente, para as iniquidades sociais.

Villanueva chama isso de um clássico cenário both-and [ideia de que múltiplas coisas podem acontecer ao mesmo tempo], e afirma: “Aprenda, trabalhe, mude políticas, procedimentos, práticas para começar a apoiar líderes negros e procure oportunidades para movimentar o dinheiro agora. Às vezes, a filantropia fica paralisada por sua obsessão em ser especialista em tudo, algo que impede que o dinheiro chegue às comunidades. Portanto, aprenda, mas aprenda financiando”.

Agora, cabe a cada um de nós decidir se queremos fazer parte do problema ou da solução. Financiar mais organizações comandadas por pessoas negras e aumentar o financiamento para aquelas já presentes em seu portfólio são atitudes que fazem parte da solução.

 

Os autores agradecem aos colegas da Bridgespan, Jeff Bradach e Austin Valido, e aos da Echoing Green, Liza Mueller e Ben Beers, por suas contribuições.

 

OS AUTORES

 

Cheryl Dorsey é presidente da Echoing Green. Antes de assumir a liderança da organização em 2002, era empreendedora social e foi agraciada, em 1992, com a Echoing Green Fellowship para ajudar a lançar uma unidade móvel de saúde voltada para a comunidade em Boston. Também fez parte de governos presidenciais por duas vezes.

Peter Kim é sócio do The Bridgespan Group. Ele comanda, em parceria, a estratégia de equidade racial da empresa, concentrando-se em integrar a equidade racial de maneira mais plena na abordagem usada para atender os clientes.

Cora Daniels é diretora editorial do The Bridgespan Group.

Lyell Sakaue é gerente de prática filantrópica do The Bridgespan Group.

Britt Savage é consultora de prática filantrópica do The Bridgespan Group.



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