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Engajamento comunitário por saúde mental coletiva em emergências

Em cenários de urgência, é necessária a prestação de serviços psicológicos; as demandas, porém, vão além dos traumas individuais e requerem abordagens comunitárias

Por Gabriela Sawaya, Bruna de Morais Holanda e Ana Elisa Bersani

Alagamento no Rio Grande do Sul, em 2024 (Shutterstock)

As enchentes no Rio Grande do Sul, que deixaram centenas de municípios submersos e resultaram em mortes e desabrigados, bem como a pandemia de covid-19 e outros eventos críticos recentes, mostram que desastres relacionados às mudanças climáticas são uma realidade crescente em nosso cotidiano. Diante desse cenário, a saúde mental das populações afetadas torna-se uma prioridade para as respostas de emergência, exigindo intervenções rápidas e eficazes.

Este artigo reconhece o engajamento comunitário como uma abordagem estratégica para promover a saúde mental em situações de emergência. Com base em guias, protocolos internacionais de ação e exemplos etnográficos, defendemos que a participação ativa das comunidades fortalece respostas mais eficazes e sustentáveis, ampliando a promoção da saúde mental para além do âmbito assistencial e médico.

Situações de emergência e saúde mental

De acordo com Didier Fassin e Richard Rechtman, intervenções voltadas à saúde mental foram incorporadas aos projetos de organizações humanitárias, sobretudo, após o que chamaram de “mudança ética”, principalmente a partir dos anos 1980, quando o sofrimento se torna categoria moral relevante e legítima e o cuidado em saúde mental passa a ser reivindicação política das populações atingidas. A partir daí a discussão sobre as possibilidades e limites do atendimento em saúde mental em situações de emergência passa a ser, portanto, recorrente nos fóruns internacionais humanitários.

Se, por um lado, a legitimação do sofrimento dessas populações garante o reconhecimento dos efeitos subjetivos de tais eventos, por outro, abre caminho para respostas individuais ao sofrimento por meio de práticas de medicalização do mesmo. Para lidar com o risco de apagamento da origem social dos sofrimentos, implícito nessas ações, protocolos e diretrizes de organizações como Médicos Sem Fronteiras passaram a privilegiar o atendimento emergencial baseado nas necessidades sociais básicas e comunitárias, focando em respostas coletivas. Essas novas abordagens adotam um posicionamento antimedicalização e reivindicam uma mudança no foco da atenção à saúde mental no sentido de fortalecer os laços comunitários.

 

Da teoria à prática: os desafios de operacionalizar soluções comunitárias

Apesar dos avanços refletidos nos protocolos internacionais, na prática, a implementação de abordagens comunitárias para a promoção da saúde mental pode ser difícil. Em situações de desastre, o foco das ações permanece majoritariamente na assistência médica das vítimas, com pouca ênfase no viés comunitário das ações de promoção de saúde ancoradas na agência dos atores locais.

Em 2019, uma barragem de rejeitos de minério da mineradora Vale se rompeu em Brumadinho, no Brasil, causando inúmeras mortes, contaminando o rio Paraopeba e destruindo diversos lares e modos de vida locais. Além dos impactos ambientais, os efeitos políticos e sociais foram significativos e continuam impactando os habitantes da cidade que depende economicamente da mineração. Um estudo realizado, na época, por Débora Noal, Ionara Rabelo e Eduardo Chachamovich demonstrou que o atendimento emergencial nas áreas atingidas focou no aumento de serviços de saúde mental e de profissionais como psicólogos e psiquiatras, reconhecendo os impactos na saúde mental como danos legítimos. Muitos moradores de Brumadinho utilizaram remédios psicotrópicos ou frequentaram serviços terapêuticos após o desastre, como revelaram os depoimentos colhidos ao longo da etnografia realizada por Gabriela Sawaya. Embora tais respostas fossem importantes e necessárias, a autora defende que elas se mostraram insuficientes para lidar com o sofrimento vivido pelos moradores. Eles desejavam um rio limpo, justiça, e estavam exaustos das demandas relacionadas à mineração. Ainda que estivesse evidente a necessidade de respostas para além dos serviços assistenciais médicos e psicológicos, soluções comunitárias de reparação partindo das reivindicações políticas e sociais dos atingidos foram constantemente impedidas pela presença da empresa responsável pelo desastre na mediação das respostas articuladas. 

No Haiti, após o terremoto de 2010, enquanto a ajuda humanitária institucionalizada enfrentava dificuldade para reagir diante de tamanha destruição, redes de solidariedade e ajuda locais se mostraram essenciais para garantir a sobrevivência e proteção dos haitianos. A etnografia realizada por Ana Elisa Bersani sobre a resposta comunitária na província da Grand’Anse demonstrou como a rede de colaboração local, sustentada por mecanismos familiares que vão além do alcance das instituições internacionais (na maioria das vezes ignorados por elas), construiu uma resposta eficaz à emergência, apesar da escassez de recursos e do desespero da população. Esta cadeia de apoio, pautada por afetos, família, relações de vizinhança e amizade acolheu pessoas deslocadas internamente e ofereceu abrigo no interior do país, superando a capacidade da ajuda estrangeira organizada institucionalmente. O trabalho ressalta que dinâmicas e mecanismos de ajuda de base comunitária, frequentemente ignorados, sobretudo quando estamos diante de eventos críticos, devem ser considerados enquanto recursos ativos na composição de estratégias mais pertinentes de promoção da saúde (física e mental) . 

Exemplos como esses apontam para a importância da compreensão mais ampla sobre os desastres e a forma como impactam a saúde das populações. Considerar a perspectiva daqueles que vivenciam tais eventos transforma a maneira em que pensamos as respostas possíveis a eles. Em cenários de urgência, diante de demandas, a uma só vez, coletivas e individuais, a prestação de serviços psicológicos sozinha não soluciona as questões que abalam a saúde mental. As demandas vão além dos traumas individuais, afetando coletividades, o que requer abordagens comunitárias. Nesse sentido, é essencial compreender cada contexto sociopolítico, ouvir as comunidades e reconhecer seu protagonismo, mantendo um engajamento contínuo da população na elaboração, implementação e avaliação das iniciativas colocadas em prática.

 

Engajamento comunitário: uma abordagem possível

Com o objetivo de promover soluções para o fortalecimento da saúde mental das pessoas afetadas por situações de emergência, o engajamento comunitário aparece como uma abordagem possível. Conforme definição do National Institute for Health and Clinical Excellence, ela se refere à construção de “comunidades ativas e sustentáveis com base na justiça social, no respeito mútuo, na participação, na igualdade, no aprendizado e na cooperação. Envolve a mudança das estruturas de poder para remover as barreiras que impedem as pessoas de participar das questões que afetam suas vidas”. Trata-se, portanto, de uma estratégia que beneficia dois fatores fundamentais para a promoção da saúde mental em situações de emergência: além de promover a melhoria na saúde das pessoas, é também uma ferramenta que permite que recuperem o poder sobre suas vidas.

Rupturas na rotina, causadas por emergências, atuam como catalisadoras da ação coletiva, como demonstra Bruna Holanda em seu estudo sobre a resposta das periferias urbanas brasileiras à pandemia de covid-19. Catalisadores, no entanto, aumentam a velocidade de uma reação, mas não a criam, não sendo suficientes para gerar engajamento comunitário em alguns casos. O caso de Brumadinho é um exemplo disso, onde a atuação da mineradora colaborou para o rompimento de laços comunitários existentes, dificultando a formação de uma mobilização social mais ampla. 

Para que o engajamento comunitário seja efetivo ele deve ser cultivado, por meio do reconhecimento e do fortalecimento dos laços comunitários existentes anteriormente. Este é um dos papéis a ser desempenhado por organizações que atuam na promoção da saúde mental durante e após os desastres. Nesse sentido, trazemos algumas sugestões para a promoção do engajamento comunitário bem-sucedido:

  1. Abordar os problemas e desafios como coletivos e não individuais. As questões que envolvem a saúde mental durante e após situações de emergência têm sido tratadas, na maioria das vezes, como problemas individuais e, consequentemente, para elas têm sido propostas soluções individuais, por exemplo, por meio de atendimento médico. Essas são iniciativas válidas e relevantes, contudo, também faz-se necessário refletir, para além do manejo clínico, sobre os fatores sociais, econômicos e políticos relacionados a essas questões, que podem ser causadores e/ou agravantes das mesmas, além de impor barreiras ao cuidado. 

  2.   Olhar para as comunidades e seus atores, individuais e coletivos, como agentes, valorizando conhecimentos e dinâmicas locais, tratando-os como recursos potentes. Ao fazê-lo, transforma-se o modelo clássico de resolução de problemas com foco nas necessidades, que prioriza o “fazer para”, em um modelo baseado em ativos, que prioriza o “fazer com”. Em vez de criar serviços para atender às necessidades existentes e entregá-los aos consumidores, parte-se dos ativos dos atores presentes, estabelecendo conexões entre eles e suas possíveis contribuições como agentes-cidadãos.

  3. Criar mecanismos de monitoramento e avaliação do engajamento comunitário. O monitoramento, que acompanha a ação enquanto ela ocorre, é essencial para reforçar o engajamento comunitário, permitindo identificar e ajustar pontos fracos e fortes ao longo do processo. A avaliação, por sua vez, fornece uma análise mais profunda após a conclusão de uma ação específica, como um programa ou projeto. Ambos os processos devem ser realizados de maneira coletiva e participativa.

  4. Fortalecer organizações locais. O engajamento comunitário pode acontecer tanto em nível individual quanto coletivo. Quando acontece coletivamente, pode envolver a mobilização de organizações. Em situações de emergência, as organizações locais são especialmente relevantes, pois têm conhecimento aprofundado sobre o território e suas dinâmicas. Esse conhecimento lhes confere maior legitimidade na comunidade e maior capacidade de mobilizar atores e recursos para resolver problemas.

  5. Investir em engajamento comunitário no longo prazo. No caso de governos e organizações já atuantes nos territórios, é necessário criar uma cultura organizacional que priorize a colaboração, a consulta e o empoderamento dos cidadãos, individualmente e na comunidade, nas ações e políticas públicas rotineiras, fazendo com que o engajamento comunitário faça parte de seu planejamento estratégico. Isso, para além de ampliar a capacidade de resolução dos problemas cotidianos e a participação democrática, facilita o processo de engajamento comunitário em situações de emergência, uma vez que as relações de confiança e as capacidades relacionadas à participação já estarão instaladas e prontas para serem acionadas. 

Considerações finais 

Nesse artigo, destacamos a necessidade de situar a saúde mental dentro das circunstâncias sociais, históricas e políticas concernentes, reconhecendo que desastres e crises não são eventos isolados, mas estão situados em contextos mais amplos, tanto no que tange à atual crise climática, quanto às estruturas cotidianas que permitem ou não a constituição de laços comunitários.

A partir dos casos aqui expostos, algumas questões podem ser levantadas: Em que medida a crise climática atual tem sido tratada a partir de seus efeitos coletivos e individuais? Como a saúde mental tem sido abordada enquanto demanda legítima nesses contextos? Quais são as políticas de prevenção a serem desenvolvidas por governos, empresas e sociedade civil para que desastres sejam evitados e seus impactos mitigados? Como as comunidades podem colaborar e se engajar com essas políticas? Como os recursos locais podem ser mobilizados? 

Tais reflexões são essenciais para promover soluções relevantes, efetivas e sustentáveis que abordem não apenas os sintomas, mas também as causas profundas das crises e desastres, fortalecendo assim a resiliência, o bem-estar e, por conseguinte, a saúde mental das comunidades afetadas.

 

AS AUTORAS

Gabriela Sawaya é pesquisadora do Departamento de Pesquisa da Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES) e mestra em Estudos Ambientais pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (França).

Bruna de Morais Holanda é pesquisadora do Departamento de Pesquisa da Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES) e doutoranda em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP).

Ana Elisa Bersani é pesquisadora principal do Departamento de Pesquisa da Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES), doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e gestora de Promoção de Saúde junto à organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF).



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