Obra coletiva, Inquietações de um Brasilcontemporâneo indaga sobre peso do país em planeta em transformação
Por Sergio Fausto
Inquietações de um Brasil contemporâneo: Desafios das eras climática, digital-tecnológica e biológica, livro produzido pelo Instituto Arapyaú, pretende ampliar o horizonte do debate nacional, ainda preso às questões de curto prazo da gestão da economia e da política.
A intenção é clara no próprio título, que aponta para transformações que estão alterando o presente (e o futuro) da totalidade do planeta e exigem respostas cientificamente sólidas, socialmente justas e politicamente complexas. O desafio não é corriqueiro. Como escreve no prefácio a cientista política Mônica Sodré, citando letra de Renato Russo: “O futuro já não é mais como era antigamente”.
Não faz muito tempo, imaginávamos que o futuro seria o prolongamento do progresso observável desde a primeira Revolução Industrial. Continuaríamos a progredir, ao infinito, graças ao domínio e ao uso crescentes de recursos naturais por meio de tecnologias desenvolvidas e programadas pelos seres humanos. A despeito de suas imensas diferenças, as principais escolas de pensamento da modernidade, do liberalismo ao socialismo, passando pela social-democracia, compartilhavam essa premissa.
A descoberta dos limites físicos, químicos e biológicos ao crescimento econômico, a mudança climática e a criação de “máquinas inteligentes”, capazes de se autoprogramar, lançaram o mundo em uma era de grandes transformações cujo alcance desafia a nossa capacidade de compreensão e resposta. O próprio pensamento de matriz ecológica, que há mais de 50 anos colocou em xeque a ideia moderna de progresso, está obrigado a se reinventar para ser socialmente justo e politicamente viável.
Em meio a tanta incerteza, uma coisa é certa: para o bem ou para o mal, nenhum país, empresa, organização social ou indivíduo deixará de ser afetado por essas transformações, e muito antes do que imaginávamos. Daí a inquietação mencionada no título: encontraremos respostas à altura, em tempo hábil? E o Brasil, em particular, saberá aproveitar as oportunidades e minimizar os riscos que as transformações planetárias acarretam para um país que tanto pode oferecer soluções para as crises climática e de extinção da biodiversidade como agravá-las?
O livro não pretende dar respostas taxativas para essas perguntas. Mas avança na indicação de linhas de ação pública e privada e, não menos importante, insiste na necessidade urgente de superar modos de pensar e atuar, presentes no governo e na sociedade, que impedem a indispensável e difícil formação de alianças políticas, suprapartidárias, intersetoriais e interdisciplinares à altura dos desafios contemporâneos.
A maneira pela qual foi concebido e elaborado é exemplar a esse respeito. Revela o propósito de reunir pessoas capazes de integrar diferentes áreas do conhecimento teórico e prático para pensar sobre desafios que exigem pensamento interdisciplinar e articulação política, com maiúsculas em ambas as palavras.
Trata-se de uma obra coletiva, resultante de um ano de discussões entre cinco pessoas selecionadas pelo programa de fellows do Arapyaú: uma bióloga e servidora pública que já foi ministra do meio ambiente, Izabella Teixeira; um gestor público com mais de 30 anos de experiência em posições de destaque no governo federal, Francisco Gaetani; um empresário do agro moderno, reconhecida liderança do setor, Marcelo Britto; um biólogo e administrador de empresas que já vestiu chapéus diversos na área ambiental, como empresário e ativista, Roberto Waack; e uma jovem liderança indígena, Samela Sateré Mawé. Nenhum dos autores assina individualmente os artigos que compõem o livro.
O livro parte da premissa de que é possível superar o estado atual de polarização política e “atender a um desejo de nação comum e aglutinadora”, que extrai a sua força da sua diversidade. A mensagem se dirige principalmente a quem tem maior responsabilidade nas decisões de ampla e duradoura repercussão para o país. É um alerta para a urgência de o Brasil pensar e deliberar sobre como responder às transformações globais que nos colocam diante de um novo conjunto de riscos e oportunidades.
Os autores destacam a necessidade de agir para mudar ideias e mentalidades arraigadas que bloqueiam a possibilidade de construir uma visão e uma agenda comuns para o país e modos de atuação que dificultam novas formas de cooperação público-privada que, sem prejuízo do papel central do Estado, mobilize recursos materiais, humanos, científicos, presentes na sociedade civil (empresas, universidades, centros de pesquisa, organizações não governamentais).
O desafio de mudar mentalidades arraigadas é imenso, principalmente quando se trata de alterar modos de produção e consumo que não apenas estruturaram as sociedades mais desenvolvidas do planeta, como também servem de modelo para aquelas que aspiram a chegar lá. Estamos falando de mudanças estruturais, associadas a um conjunto de valores. Têm razão os autores quando afirmam ser necessária uma nova ética da relação entre os seres humanos e a natureza, em que os primeiros já não podem ter direitos ilimitados sobre a segunda. Os povos indígenas têm o que nos ensinar a esse respeito. Conhecimentos tradicionais devem ser integrados ao conhecimento científico em soluções que possam ganhar escala. Além de guardiães do meio ambiente florestal, os povos indígenas podem e devem ter maior protagonismo em um novo modelo de desenvolvimento.
Em termos mais concretos e específicos, o parágrafo anterior nos remete à relação entre a produção de alimentos e o meio ambiente. Nessa interseção, o Brasil é um ator global, seja como parte da solução, seja como parte do problema.
Os autores enfrentam essa questão com clareza e pragmatismo. Sabem que há interesses protecionistas em meio às pressões ambientais. Porém não tapam o sol com a peneira: elas estão se generalizando não por obra de lobbies, mas por uma preocupação cada vez mais estendida nos eleitorados das grandes democracias, assim como nas elites governamentais de países autoritários como a China, com a destruição do meio ambiente.
O agravamento da crise climática e a pandemia da covid não deixam mais dúvida, a menos para o mais lunático dos negacionistas, sobre os riscos que a humanidade está correndo se continuar a desrespeitar os limites do planeta. O agro brasileiro é, em sua maior parte, moderno, mas não pode se deitar em berço esplêndido, muito menos se fazer de avestruz.
A urgência em encontrar e desenvolver novos modelos de relação entre seres humanos e natureza, entre economia e meio ambiente cria uma janela de oportunidade para o Brasil dar um salto em seu desenvolvimento, com sustentabilidade ambiental e inclusão social, e se afirmar como um dos países importantes em um mundo que, com tensões em alta, passa por uma mudança de época na balança global de poder.
A singular capacidade brasileira de prover alimentos, soluções baseadas na natureza e bens comuns indispensáveis ao planeta, por contar com a mais competitiva agricultura tropical, a maior floresta úmida, a mais rica biodiversidade da Terra e uma matriz energética comparativamente limpa, é uma vantagem competitiva e, ao mesmo tempo, um fator de poder na nova geopolítica do mundo.
A mensagem política do livro é a de que o Brasil dispõe do que o mundo precisa e tem cacife para se sentar à mesa dos grandes países, com legitimidade para falar em nome de interesses mais amplos do mundo, em geral, e do Sul Global, em particular. A afirmação vem junto com o alerta de que essa janela de oportunidade não permanecerá aberta indefinidamente. O mundo tem pressa, e o Brasil deve atuar com urgência para responder aos tempos do mundo, em nome dos seus próprios interesses nacionais.
A percepção sobre a singularidade do Brasil e o contexto internacional é o leitmotiv dos autores. Para eles e elas, a compressão das possibilidades dessa conjuntura histórica é a chave para a criação de uma visão sobre o futuro do país, a ser ao mesmo tempo delineada no imaginário nacional e traduzida em políticas de Estado que ultrapassem os ciclos eleitorais e os mandatos de governos. O livro avança em ambas as direções e, por isso, oferece uma contribuição importante e oportuna.
O AUTOR
Sergio Fausto, sociólogo, é diretor-executivo da Fundação FHC, codiretor do projeto Plataforma Democrática e membro do conselho de sócios do Cebrap.
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