Como apoiar artistas para fortalecer narrativas de justiça social
Artistas podem ser poderosos agentes de transformação cultural; para isso, precisam de apoio
Por Haleh Hatami, Anna Maria Luera & Melanie Meinzer
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“We’re truth tellers and lightworkers. We make the world go ’round. We’re building the life of our dreams…” (“Dizemos a verdade e trazemos iluminação. Fazemos o mundo girar. Estamos construindo a vida com a qual sonhamos…”) — Mariah J, em trecho de sua canção “Inheritance” (“Herança”)
Em salões comunitários, chamadas no Zoom, ensaios e salas de reunião, organizadores da justiça social estão traçando seu caminho após as eleições de 2024 nos Estados Unidos. Diante de discursos de medo – seja sobre imigração, direitos reprodutivos ou economia –, artistas ativistas de comunidades impactadas pela opressão continuam a criar e compartilhar narrativas que nos mobilizam a imaginar e agir por um mundo justo. Como podemos ativá-los, apoiá-los e sustentá-los?
“Eu definitivamente assumi um papel de liderança artística”, diz Mariah J, de Dayton, Ohio, que agora está organizando seus próprios shows, colaborando e orientando outros artistas, além de conectá-los a trabalhos remunerados. Mas, para a poeta, musicista e coreógrafa, o caminho para liberar seu poder teve vários desafios: o assassinato de George Floyd, a pandemia de covid-19, uma economia em queda livre e os obstáculos persistentes e históricos que artistas não brancos enfrentam em um sistema que negligencia a cultura.
Mariah J. encontrou força em um coletivo de artistas focado em estratégia narrativa. As narrativas são as histórias que contamos a nós mesmos sobre o mundo, como ele funciona e qual é o nosso lugar nele. Elas moldam nossa visão do mundo. A estratégia narrativa, por sua vez, utiliza a contação de histórias e a cultura para transformar crenças fundamentais que orientam os comportamentos das pessoas. Em momentos de grande mudança cultural, a forma como as histórias retratam uma questão – como direitos civis ou justiça de gênero, por exemplo – altera nossas atitudes e condutas.
Artistas de diferentes raças e etnias têm se unido para levar sua visão de justiça ao mundo. E nós aprendemos como construir esse poder narrativo de forma sustentável quando: 1) compreendemos e incorporamos as experiências que essas pessoas viveram; 2) cultivamos espaços e ecossistemas que incentivam a colaboração narrativa entre artistas não brancos e outros artistas, movimentos sociais e guardiões da cultura – artistas e portadores de conhecimentos indígenas, ancestrais e/ou tradicionais – atuando em temas como imigração, clima, gênero e justiça racial; e 3) identificamos elementos de construção de poder por meio de pesquisas. Esses esforços valorizam o trabalho desses artistas e projetam uma estrutura para o foco e a colaboração nesse campo.
Um modelo construído por e para a estratégia cultural
Não há mudança cultural sem apoio para que artistas se tornem agentes de transformação. A história de Mariah reflete uma transformação pessoal e coletiva, além de lançar luz sobre como podemos criar condições para a construção do poder narrativo e medir seu impacto.
O Million Voters Project (MVP), iniciativa de fomento da participação política de jovens, imigrantes e pessoas não brancas na Califórnia, afirma que a “onstrução de poder” acontece quando “grupos de base organizam comunidades mais impactadas pela injustiça e coletivizam seu poder por meio de alianças e coalizões para transformar sistemas opressores”. Para a California Endowment, fundação que financia iniciativas para promover a equidade na saúde, a organização não é apenas uma tática de campanha: em vez de enxergar o advocacy como uma estratégia que usa a organização como tática para alcançar uma vitória, ela vê a organização como a estratégia central. A fundação reconhece o trabalho de longo prazo como necessário para construir poder narrativo, “mas quando narrativas alternativas ganham força e refletem as experiências e desejos das comunidades, criam-se as condições para mudanças profundas”.
Movimentos que enfrentam narrativas de dominação, exploração e segregação precisam de recursos e ferramentas. O Million Voters Project, por exemplo, fornece um guia baseado em três campanhas de advocacy na Califórnia, com recomendações específicas para fortalecer a infraestrutura do poder narrativo. Eles defendem a unificação do “poder dos muitos movimentos por justiça racial e social que ocorrem em toda a Califórnia”. O Butterfly Lab, da organização Race Forward, apresenta exemplos de como assumiu esse desafio, desenvolvendo ferramentas específicas para artistas e guardiões da cultura que constroem poder narrativo sobre imigração. Ele dissemina o conhecimento adquirido por meio de treinamentos e um relatório de campo, que inclui a base de pesquisa do projeto, além de materiais práticos e guias de ação.
No Center for Cultural Power, adotamos uma perspectiva e métricas únicas sobre como artistas constroem poder, evoluindo a partir do primeiro Guia de Estratégia Cultural do The Culture Group, que descreve formas de envolver artistas em movimentos e o potencial das artes e da cultura para transformar mentalidades em direção a um mundo mais justo e equitativo. Nosso modelo complementa os grupos de organização e base dentro de um ecossistema de construção de poder, conforme descrito na estrutura do Instituto de Pesquisa em Equidade da Universidade do Sul da Califórnia (USC). Como destaca Mona Shah em um relatório do Norman Lear Center, também da USC, “a mudança narrativa precisa ser feita em parceria com a construção de poder, a construção de movimentos e a comunicação estratégica.”
Na prática, nosso modelo reúne e oferece recursos a artistas, proporcionando-lhes tempo, comunidade e um meio para explorar e gerar histórias que fortaleçam narrativas de justiça. Os grupos variam de acordo com a região e o tema. Mariah J., por exemplo, participou do Midwest Culture Lab, uma turma de seis semanas com bolsa, composta por 35 artistas-ativistas reunidos pelo Center for Cultural Power. Ela atribui sua persistência e a de seus colegas do laboratório ao fato de eles estarem “em espaços que nos ajudaram a perceber qual é o nosso impacto como artistas na cultura”.
As turmas do Cultural Power incluem uma série de workshops e mentorias em estratégia cultural e narrativa, além de empreendedorismo criativo. Elas culminam na criação artística baseada em narrativas elaboradas em parceria com guardiões de tradições culturais a partir de orientações presentes em um guia de narrativas. Esse guia contém recursos adicionais e torna questões sociais complexas mais acessíveis e pessoais.
No modelo de coorte, os artistas percorrem uma trajetória de sustentabilidade criativa e pessoal. O gráfico abaixo descreve como um artista disruptivo constrói poder dentro da comunidade para impulsionar a criatividade, o sustento e o trabalho em justiça social – um arco que se inclina para a renovação de outros artistas e coletivos. No eixo horizontal, marcamos as fases da prática sustentável, e no eixo vertical, o grau de envolvimento do artista com a mudança social. Inspirado na trajetória dos artistas no mercado de arte, nosso modelo descreve o criador na fase de “formação”, quando recebe pequenas encomendas ocasionais e desenvolve uma consciência crescente como agente de transformação social. Na fase de “ativação”, o artista se consolida como agente de mudança social, utilizando estratégias narrativas e ampliando sua visibilidade em diversas plataformas. Já na fase de “expansão”, o criador passa a produzir arte de forma consistente com o objetivo de transformar visões de mundo, percebe a viabilidade financeira de seu trabalho e orienta novos artistas ativistas em ascensão.
“Agora tenho uma banda”, diz Mariah J. “Estou criando o que quero ver, onde quero me apresentar e como quero que tudo seja, cuidando de cada detalhe do processo.” Ela observa um crescimento tanto em seu público quanto no tipo de espaços em que se apresenta. Seu papel como artista disruptiva continua a se expandir e se renovar ao retribuir a outros artistas. Além disso, assumiu um cargo no departamento de bibliotecas de Dayton como organizadora cultural, promovendo a conexão entre artistas e a comunidade. “Definitivamente, isso me colocou em uma posição para elevar outros artistas e criadores.”
Mais do que tudo, nossos workshops buscam incorporar uma estratégia cultural, na qual cada interação se baseia em relacionamentos, facilitação colaborativa com foco nas artes, técnicas de construção comunitária culturalmente relevantes e na centralidade das necessidades e vidas dos artistas. Na prática, isso pode envolver ajustes em horários de reuniões, prazos, formatos, pagamentos e uma constante reavaliação conforme necessário. Assim, ao medir o impacto, valorizamos o processo de cocriação com os artistas, e não apenas os resultados – como as mudanças em comportamentos, mentalidades e atitudes de artistas e públicos, ou as conquistas públicas de campanhas – como fariam as avaliações tradicionais. Atender às necessidades e experiências dos artistas e acompanhar como realizamos nosso trabalho tem valor tanto para nós quanto para o campo como um todo.
Dar aos artistas as ferramentas para reivindicar aquilo de que precisam, diz Mariah, não apenas os fortalece, mas também reforça seu próprio papel como artistas disruptivos. “Eu tenho a oportunidade de ajudar artistas a criar um orçamento para si mesmos e orientá-los sobre o que deveriam solicitar das organizações em termos de recursos, ou até mesmo sobre o que eles têm o direito de pedir.”
As evidências que reunimos mostram que mudanças positivas na mentalidade dos participantes em relação à comunidade, à autoconfiança e ao seu papel na transformação social podem contribuir para a sustentabilidade profissional a longo prazo. Os participantes relatam que se enxergar como parte de uma rede gera efeitos em cascata, como o acesso ampliado a recursos para suas comunidades e a expansão do público e da distribuição de sua arte e ativismo.
(Outros exemplos nesse sentido incluem a Oakland Futures, um grupo dedicado a construir narrativas sobre economias comunitárias que desafiam a gentrificação e orçamentos desproporcionais voltados para a segurança pública. Já o Reclaiming the Border Narrative Project foi uma colaboração de vários anos e um investimento em artistas, guardiões culturais, escritores e defensores dos direitos de imigrantes, com o objetivo de transformar as narrativas sobre a região da fronteira entre os EUA e o México.)
Embora haja um número crescente de pesquisas sobre estratégia narrativa, poucas se concentram na avaliação dessa estratégia com artistas e guardiões de tradições culturais. A equipe interna de pesquisa e impacto do Cultural Power busca identificar e mensurar os elementos da construção de poder, além das redes e infraestruturas artísticas necessárias para criar um mundo mais justo.
Essas dimensões da construção de poder de artistas não brancos são inspiradas em estudos das áreas de educação, saúde pública, ciência política e organização comunitária. Nossas métricas sobre a mentalidade de crescimento de artistas-organizadores podem ser aplicadas a diversas questões e incluem:
Sentimento de comunidade (pertencimento)
Confiança em sua arte e narrativa
Percepção de si como agente de mudança (consciência das injustiças e de como combatê-las)
Sustentabilidade da prática artística (financeira, física, espiritual etc.)
Até o momento, reunimos dados sobre a construção de poder a partir de quatro anos do The Disruptors Fellowship para roteiristas não brancos, parcerias iniciais com artistas e movimentos sociais, o Reclaiming the Border Narrative Project (financiado pela Fundação Ford) e três anos de nossas coortes de Empreendedores Criativos. Essas coortes são voltadas para o desenvolvimento de habilidades que ajudam artistas a superar a mentalidade – e a realidade – do “artista (ou ativista) faminto”.
Nossos dados preliminares, coletados por meio de pesquisas e entrevistas, indicam um aumento significativo em:
Confiança, conexão com narrativas centrais, sustentabilidade profissional, senso de comunidade de aprendizado e identidade como agentes de mudança
Compreensão da estratégia narrativa, incluindo como o público responde à sua arte
Benefícios profissionais que ampliam sua capacidade de gerar renda, sustentar e expandir seu público e redes de distribuição
Interesse em networking e oportunidades para compartilhar experiências no campo
Uma inovação em nossa abordagem culturalmente responsiva à pesquisa tem sido a colaboração com artistas na testagem de resposta do público. Utilizamos testes online com controle randomizado, direcionados a audiências nacionais ou regionais, para identificar mudanças em atitudes, crenças e comportamentos específicos do público (como intenção de votar, vacinar-se ou agir) após a exposição à arte. Os artistas participam ativamente do desenho desses testes, guiados por sua curiosidade e objetivos. Nosso relatório Building Narratives of Joy apresenta quatro estudos de caso resultantes dessas testagens, abordando temas como justiça de gênero, imigração e engajamento cívico. Após testar a resposta do público a um trecho de sua websérie Undocumented Tales, o criador e produtor Armando Ibañez observou que tanto espectadores autodeclarados “liberais” quanto “conservadores” reagiram positivamente em taxas quase equivalentes. Ele comentou: “Isso está mudando minha percepção sobre o meu próprio trabalho. Simplesmente incrível.”
À medida que avançamos em nossa jornada de aprendizado sobre a construção de poder narrativo para artistas não brancos e movimentos sociais, consideramos:
A crescente necessidade de desenvolver ferramentas de pesquisa culturalmente responsivas para compreender como organizadores culturais treinam artistas em estratégia narrativa, de que forma a arte criada por esses artistas envolve e mobiliza o público, e métodos para medir a resposta do público em eventos presenciais, como festivais, exposições de arte, performances e mostras.
O papel dos guardiões de tradições culturais na construção do modelo de poder dos artistas. Esses guardiões são os primeiros estrategistas narrativos, detentores de conhecimentos milenares transmitidos por meio da arte, das criações culturais e da tradição oral. Queremos compreender o que significa não apenas organizar e fortalecer o poder dos artistas não brancos, mas também caminhar lado a lado com os guardiões.
Construção de ferramentas longitudinais que nos ajudem a compreender a trajetória de artistas disruptores e a jornada dos guardiões de tradições culturais.
Fortalecimento da infraestrutura narrativa, incluindo pilares como desenvolvimento de liderança, redes, financiamento e outros recursos, ferramentas e tecnologia, além de espaços e abordagens que fomentem a comunidade e a ação coordenada.
Agora é o momento de expandir o trabalho de liderança intelectual de Shanelle Matthews, Aisha Shillingford, Trevor Smith e outros que têm defendido a necessidade de fortalecer a infraestrutura narrativa no campo. Para isso, é essencial cultivar e liberar os superpoderes criativos de artistas e guardiões de tradições culturais.
Finalizamos onde começamos: reconhecendo que a experiência vivida e as relações estão no centro da construção de poder. Quando artistas são apoiados – quando têm confiança, capacidade e comunidade para ativar seus superpoderes inerentes de imaginação e criação de mundos –, fortalecemos o solo para a transformação narrativa.
Conectar nosso trabalho a movimentos transformacionais continua sendo nossa estrela guia. Assim, quando falamos sobre a trajetória individual de um artista disruptivo, enxergamos sua evolução dentro de um contexto de mudança muito mais ampla.
Aqueles que são comprometidos com uma visão de justiça e bem-estar trabalham a longo prazo. Mariah J lançou seu primeiro álbum, Unfolding, em 2023. Ao promover sua música e visão em um programa matinal local em Dayton, ela se identificou como artista ativista e disruptiva: “Para mim, isso significa usar minha arte para refletir os tempos em que vivemos e também inspirar minha comunidade e, com sorte, toda uma geração.”
AS AUTORAS
Haleh Hatami é escritora, produtora e pesquisadora. Seu trabalho abrange as áreas de políticas públicas voltadas para artes e cultura, saúde pública, educação e relações internacionais.
Anna Maria Luera é mãe, artista de teatro, estrategista cultural e artista disruptora. Atualmente, atua como diretora de organização cultural no The Center for Cultural Power.
Melanie Meinzer é cientista social e diretora de pesquisa e impacto no The Center for Cultural Power.