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Coliderança como prática para um futuro equitativo

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Coliderança: como determinar se sua organização está pronta para dar esse passo – e como se preparar para isso, caso esteja

Por Sandhya Nakhasi, Jennifer Swayne Njuguna e Jess Yupanqui Feingold

coliderança

 

A coliderança está em evidência? O modelo não é exatamente novo, especialmente no setor sem fins lucrativos. No entanto, a pandemia revelou crises de liderança ao mesmo tempo em que novos compromissos com a equidade foram firmados, pessoas negras e de outras minorias étnicas ganharam espaço em posições de liderança e riscos existenciais à sustentabilidade organizacional passaram a ser expostos. Com uma atenção renovada ao conceito de “abismo de vidro” ou “prêmio vazio”, quando líderes de minorias são levados a liderar organizações em seu momento mais vulnerável, e ao fato de que a tomada de decisão, os investimentos e o poder nem sempre são transferidos para essas comunidades, muitas organizações estão reconsiderando a coliderança.

Na Common Future, adotamos a coliderança porque percebemos que a estrutura tradicional de CEO já não era compatível com nossos valores ou com as mudanças estruturais e sistêmicas que buscamos promover por meio do nosso trabalho. Acreditamos que a coliderança é essencial para a próxima economia, uma forma de rejeitar a narrativa do herói que exige que uma única pessoa nos “salve”. Essa narrativa não apenas ignora a contribuição necessária e inevitável do coletivo, mas, na prática, pode deixar a pessoa, a organização e a economia vulneráveis ao aprofundamento da exploração e da apatia.

Enxergamos a coliderança como uma forma de quebrar um ciclo que se retroalimenta: assim como nossa economia e os sistemas que a sustentam são organizados em torno de acumulação e concentração de poder e riqueza, valorizando eficiência e simplificação, a estrutura de um único CEO também concentra poder, pois, em teoria, permite uma tomada de decisão mais simples e eficiente. Assim como uma economia que se mantém pela extração de tempo e trabalho de seus participantes, enraizada na competição por recursos escassos e sustentada por narrativas de individualismo extremo, os modelos de liderança solo exigem tempo e esforço além da carga de trabalho padrão, e reforçam uma narrativa heroica em que uma única pessoa supera todos os desafios.

É claro que existem muitas organizações bem-sucedidas lideradas por um único CEO. A liderança individual ainda é o modelo predominante. Mas, se aqueles mais próximos do problema estão mais próximos da solução, e se o trabalho coletivo é essencial para essa solução, também há custos ao concentrar a liderança em uma única pessoa (especialmente considerando o que sabemos sobre as pesadas expectativas que geram estresse, esgotamento e exaustão). Em vez de focarmos na eficiência, perguntamos: o que significaria abordar nossos desafios coletivos a partir de múltiplas perspectivas? E como essa abordagem poderia nos manter mais focados nos problemas reais que estamos tentando resolver?

No entanto, não basta apenas propor uma solução. Precisamos modelá-la e mostrar o que é possível, enfrentando as críticas com cuidado, repetição e prática. À medida que experimentamos e aprendemos mais sobre essa nova forma de trabalhar, fica claro que a preparação da organização desempenha um papel crucial no sucesso potencial. Aprendemos que a transição para a coliderança não precisa, neste momento, ser algo universal.

A mudança para um modelo de coliderança tem implicações significativas para a saúde e a cultura organizacional. Determinar se a organização está equipada e preparada para adotar esse modelo requer um compromisso total para fazer com que ele funcione, além de uma disposição para revisá-lo, reformulá-lo e reavaliá-lo quando necessário. A seguir, apresentamos algumas das considerações que nós e nossos colegas fizemos ao avaliar se essa decisão era a mais adequada:

  1. A liderança está em um momento propício para a transição

Como praticantes de estratégias emergentes, buscamos exemplos de evolução nos sistemas vivos e orgânicos. Especialmente no frágil ecossistema que é a cultura organizacional, a transição de liderança não deve ser abrupta, nem imposta de fora, tampouco feita apenas pelo propósito da experimentação. Pode haver mudanças graduais no caminho para a coliderança que sejam mais adequadas ao momento atual da sua organização; por exemplo, como seria a tomada de decisão compartilhada no dia a dia? Fazer essa avaliação é essencial.

  1. Há um período de preparação para a transição

Na Common Future, tivemos a sorte de contar com um CEO em transição que programou sua saída de acordo com o momento natural de maturidade da organização e da liderança interna. Com mais de um ano para realizar a mudança, conseguimos envolver o conselho, a equipe e as partes interessadas externas em um processo que parecia gradual, menos como uma mudança abrupta e mais como uma progressão intencional e natural, alinhada aos nossos valores e ao caminho para o qual a organização estava preparada.

  1. O conselho apoia o processo (mesmo que você precise refazê-lo)

O apoio do conselho pode determinar o sucesso ou o fracasso da transição para a coliderança. Nem todos os membros do nosso conselho estavam alinhados com essa decisão importante; alguns haviam tido experiências negativas com essa estrutura no passado e, apesar das evidências, outros trouxeram preconceitos e suposições sobre como a coliderança poderia funcionar (ou a viam apenas como uma solução temporária). Por meio de conversas difíceis, aproveitamos essa oportunidade para transformar a Common Future em algo que Vu Le descreveu como um “conselho minimamente viável”, focado principalmente nos requisitos legais da governança. Isso nos permitiu criar alinhamento em torno da necessidade da coliderança neste estágio e concentrar-nos em estruturas de governança dimensionadas corretamente para alcançá-la. Ainda estamos nesse processo, agora com o objetivo de evoluir para o que chamamos de “minimamente viável, maximamente valioso”, garantindo que aproveitemos ao máximo a expertise que essa estrutura proporciona.

  1. Faça o dever de casa

Nossa equipe realizou pesquisas, além de entrevistas e consultas com partes interessadas, para avaliar a literatura e os modelos disponíveis no mercado. No entanto, embora muitos tenham compartilhado suas experiências com coliderança, as poucas histórias de fracasso acabam se destacando em meio às histórias de sucesso, que geralmente recebem menos atenção. Reconhecemos essa lacuna e também estamos fazendo nossa parte para corrigir essa percepção, compartilhando nosso próprio ponto de vista. Reunimos e disponibilizamos recursos de profissionais da área e detalhamos a experiência da Common Future de maneira mais abrangente.

  1. A cultura organizacional está centrada no poder compartilhado

Para considerar a coliderança, é necessário entender bem a cultura e a visão da sua organização, além de avaliar o alinhamento do poder compartilhado dentro desse contexto. Nosso trabalho na Common Future se concentra em tornar possível uma economia mais justa, investindo principalmente em comunidades negras e indígenas, confiando na liderança delas e compartilhando o poder e a tomada de decisões com aqueles que foram histórica e estruturalmente excluídos. Para nós, portanto, a coliderança foi uma extensão natural da nossa filosofia e uma forma de demonstrar esse valor na prática – mesmo que desafiador.

  1. A infraestrutura organizacional é um apoio essencial

Em um painel recente sobre modelos de coliderança no Nonprofit Management Institute da SSIR, houve um consenso geral em torno de uma questão negligenciada que pode transformar a experiência de coliderança: o papel do conselho e da equipe na oferta de recursos necessários para que ela funcione. Esse apoio pode se manifestar de diferentes formas: coaching para os colíderes (separadamente ou como uma unidade de liderança), consultoria organizacional sobre tomada de decisão e estratégias para liderança compartilhada, e equipe de apoio (como um chefe de gabinete, assistente executivo ou outros) que possa assumir tarefas críticas para maximizar a eficácia de múltiplos líderes.

Prontos? Prepare-se para o sucesso

Trabalhar com a consultora organizacional Ingrid Jacobson, que já tinha algum conhecimento prévio sobre nossa organização, ajudou a oferecer à nossa equipe de coliderança um suporte intencional para dimensionar corretamente nossa nova estrutura e torná-la adaptável às condições em mudança. Recomendamos as seguintes ferramentas como áreas de investimento para líderes que estão iniciando essa jornada:

Entrevistas sobre estilo de trabalho: iniciamos nossa transição para a coliderança com uma autoavaliação de estilo de trabalho e preferências, sendo específicos sobre nossas formas de trabalhar e destacando os aspectos nos quais poderíamos prosperar em um ambiente de trabalho. Podíamos apresentar essas informações uns aos outros de qualquer forma, mas cada um de nós optou por um caminho mais direto.

Matriz de tomada de decisão: no final das contas, cada um de nós compartilha exatamente a mesma descrição de cargo (e, portanto, é plenamente capaz, individualmente, de atender aos requisitos do papel de CEO), mas traz experiências de trabalho e conhecimentos únicos para a mesa. Reconhecendo nossas potencialidades e áreas de aprimoramento, conseguimos atribuir decisões-chave a serem “patrocinadas” por um co-CEO específico, que seria responsável por apresentar os pontos de decisão correspondentes. Também conseguimos identificar quais decisões poderiam ser compartilhadas ou delegadas à nossa equipe executiva, enquanto começávamos a definir como criar clareza sobre quem é responsável e envolvido em decisões que impactam a organização. Vale notar que o processo de compartilhar e disseminar poder por toda a equipe executiva ainda está em andamento, sendo um aspecto crítico de nossa abordagem.

Ferramentas de consenso: em nosso modelo de coliderança, optamos por liderar por consenso. Assim, embora um indivíduo tenha a responsabilidade claramente delegada de apresentar propostas em áreas específicas da liderança organizacional, as decisões são tomadas em conjunto. Isso nos levou a introduzir uma ferramenta simples, mas essencial, para a tomada de decisões: o método fist to five ou gradientes de escala de concordância [técnicas utilizadas em processos de tomadas de decisão nas quais é possível indicar o nível de concordância com determinada proposta], com a adaptação de que nenhuma decisão é neutra e ninguém pode se abster de assumir uma posição. Além disso, não seguimos a regra da maioria (mesmo que, teoricamente, isso pudesse funcionar bem em estruturas com número ímpar, como a nossa). Em vez disso, pontos de vista opostos devem oferecer contrapropostas. E só avançamos quando alcançamos um ponto de concordância entre todos.

Ferramentas para conflitos: conflitos são inevitáveis e não podem ser evitados. Recomendamos examinar os estilos de conflito de cada integrante, sendo honestos sobre gatilhos e comportamentos que podem causar tensões. A necessidade de se afastar, sair para dar uma volta ou retomar discussões acaloradas mais tarde são opções que ajudam a lidar com o conflito de maneira construtiva. Trabalhamos com Karla Monterosso, da Brava Leaders, em uma Política de Conflitos para toda a equipe, que deixa claro como resolvemos conflitos em nosso time. Ferramentas como essa tornam o conflito algo normativo, e não algo a temer, ao mesmo tempo que nos desafiam a continuar buscando soluções em conjunto.

Colheita de conhecimentos e ajustes trimestrais dos co-CEOs: essas são oportunidades para todo o departamento dos co-CEOs, incluindo nossa chefe de gabinete, participar de um formato de feedback em 360 graus [método de avaliação holística, analisando questões por diferentes perspectivas] sobre o que está funcionando e as oportunidades perdidas. Podemos ser francos, vulneráveis e construtivos uns com os outros – com o apoio de uma mediação externa – e focar em áreas que precisam ser aprimoradas para fortalecer nossa confiança e relacionamento mútuo. Os ajustes funcionam como uma maneira de nos manter unidos diante das diversas situações no trabalho que podem nos puxar para direções opostas.

Pontos de comunicação: Recomendamos encontrar maneiras regulares de manter contato uns com os outros e com a equipe. Para nós, isso significa uma reunião semanal de contato, para expor o que cada um de nós está priorizando e as áreas necessárias de contribuição e alinhamento, bem como uma sessão de estratégia quinzenal para discutir temas mais demandantes e tomar decisões. Também é importante deixar claro como você planeja se comunicar com a equipe, em termos de frequência e canais. Definimos essas expectativas em nossa página do Notion para que as pessoas saibam o que esperar de nós.

Aceite os desafios (e seja realista sobre eles)

Apesar de defendermos o modelo, mantemos uma visão realista sobre os desafios e armadilhas envolvidos. No entanto, como as expectativas em relação às inadequações do modelo – e seu possível fracasso – podem se tornar profecias autorrealizáveis, recomendamos que as organizações se comprometam com esse passo de forma plena, revisitando o que for necessário antes de se tornar um risco significativo. Reconhecer a realidade desses desafios é o ponto de partida para as conversas de que sua organização precisará manter continuamente ao optar pela coliderança.

Algumas preocupações são legítimas. Porém, em vez de criticar o “inchaço organizacional”, sugerimos considerar a sustentabilidade de nossos líderes e movimentos no contexto, especialmente em um setor que frequentemente nos pede para improvisar e ser ágil. Diante das questões com as quais trabalhamos, podemos nos dar ao luxo de não investir nos melhores esforços? Embora múltiplos líderes possam acarretar custos diretos adicionais, os custos indiretos relacionados à gestão pelo conselho, assim como aqueles com consultores externos e especialistas, são reduzidos ao se investir intencionalmente esses recursos internamente. Enxergamos esses investimentos no sistema como um todo como concessões necessárias, que devemos estar dispostos a fazer para fornecer recursos adequados às nossas causas, movimentos e suas lideranças.

Os riscos relacionados à indecisão e à confusão interna também são reais e exigem uma estruturação intencional para identificá-los e enfrentá-los diretamente. É necessária uma matriz de tomada de decisão para esclarecer o processo decisório para os líderes internos, reduzindo a margem para ambiguidades. No entanto, apenas modelos e estruturas não são suficientes: é essencial esclarecer os processos e deixar claro, de forma contínua, como a coliderança deve ser conduzida.

Leva tempo para construir e praticar estruturas de poder compartilhado. Esse é, de fato, um processo de desaprendizado – seja da cultura dominante ou de experiências anteriores em outros locais de trabalho –, e pode ser desconfortável experimentar algo novo. Organizações precisam de tempo para testar novas práticas e descobrir o que funciona melhor para elas; o ciclo de feedback é contínuo. Na Common Future, como mencionado, estamos atualmente experimentando formas de delegar e compartilhar poder com nossa equipe executiva, o que reflete o que esse processo tem representado para nós e o que significa expandir o conceito de poder compartilhado em toda a organização.

Além do dia a dia: praticando para a próxima economia

A importância da coliderança vai além do pensamento organizacional, pois busca inspirar o mundo que desejamos, alinhado aos nossos valores de equidade racial e poder compartilhado. Em uma economia equitativa, o poder é distribuído e compartilhado, o tempo e o trabalho são reconhecidos como recursos limitados que não podem ser continuamente explorados sem restauração (nossa humanidade é respeitada), e coalizões e alianças são construídas e reiteradas e possuem poder sustentável. A coliderança nos ajuda a colocar esses valores em prática, esclarecendo como isso pode funcionar em outras escalas.

Compartilhar poder: a prática da coliderança exige a partilha de poder não apenas entre os indivíduos ocupando o cargo de CEO ou diretor executivo, mas também em toda a organização. Compartilhar poder significa disseminar informações de forma mais ampla e regular por toda a organização, garantindo que as pessoas tenham o que precisam para tomar decisões sobre seu trabalho cotidiano. Praticar isso como uma organização nos ajuda a reiterar nossas instituições e sistemas para criar resultados mais equitativos.

Respeitar o tempo e o trabalho: O modelo de um único CEO sobrecarrega líderes, levando-os ao esgotamento por serem os únicos responsáveis pela continuidade e pela direção da organização. Um modelo de liderança compartilhada promove uma prática de liderança mais sustentável. Líderes, assim como colaboradores e membros da comunidade, não dispõem de recursos infinitos para oferecer. Adotar a prática de honrar o descanso e acolher esse tempo como um ritual nos ajudará a mudar a mentalidade de uma cultura de exaustão para algo mais sustentável, que beneficie a nós mesmos e às nossas comunidades.

Construção de coalizões: praticar a coliderança é praticar a construção de consenso e alinhamento. Tomar decisões por consenso, como fazemos na Common Future, significa que não existe “regra da maioria” entre nossos três colíderes. Precisamos ouvir as preocupações uns dos outros, abordá-las e construir uma solução viável que funcione para todos os envolvidos na decisão. Essa habilidade é fundamental para promover mudanças em larga escala, e a capacidade de conectar nossos movimentos de justiça interseccional permitirá transformar os sistemas que nos impedem de criar um mundo onde todas as pessoas possam prosperar. Vale destacar que nem todas as decisões são tomadas com base em consenso organizacional; em alguns casos, o alinhamento, em vez da unanimidade, é o princípio que seguimos.

Além disso, a coliderança multirracial traz benefícios adicionais ao inspirar o mundo que queremos viver. Esse modelo honra e respeita a beleza de nossas experiências e perspectivas diversas, dando vida a ideias e soluções conectadas a valores e princípios culturais variados, reconhecendo nossa interdependência como comunidades e com o planeta.

Coliderança como visão e história

Não podemos mudar sistemas sozinhos ou da noite para o dia. É necessário anos de esforços intencionais com vários atores, buscando uma variedade de soluções voltadas para a normalização de uma mentalidade não tradicional. Nesse processo, precisamos testar e praticar como podemos viver esses valores. As novas histórias e narrativas sobre o que é necessário para trabalhar e construir juntos são centrais para essa mudança. A coliderança não pode mais ser contada como uma história de ceticismo que mal desafia a narrativa de poder individual e controle. Em vez disso, devemos focar em uma visão e história de fortalecimento de poder, que potencialize nossa capacidade de viver os valores que queremos ver em uma economia na qual todas as pessoas possam prosperar.

AS AUTORAS

Sandhya Nakhasi é uma das três co-CEOs da Common Future (@commonfuturists), cofundadora da Community Credit Lab (adquirida pela Common Future em 2022), e tem mais de 15 anos de experiência em finanças, venture capital e investimentos de impacto.

Jennifer Swayne Njuguna é uma das três co-CEOs da Common Future (@commonfuturists). Ela é advogada e Atlantic Fellow for Racial Equity (AFRE) Senior Fellow e atuou como líder sênior em estratégia e operações em organizações sem fins lucrativos.

Jess Yupanqui Feingold é uma das três co-CEOs da Common Future (@commonfuturists) e tem atuado como líder executiva, investidora de impacto e empreendedora criativa em diversos papéis no setor de impacto social.