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A provocação da empatia

Capital empático: precisamos defender um capital que não priorize apenas o retorno financeiro, mas também o retorno positivo para a comunidade e para o meio ambiente

Por Bruno Girardi e Leonardo Letelier

 

O ano de 2020 começou promissor para os mais de 200 cooperados integrantes da CoopSertão, uma cooperativa de produtores de polpa de fruta, laticínios e hortifrutigranjeiros localizada no município de Pintadas, no cerrado baiano, distante 260 km da capital Salvador. Com o empréstimo viabilizado pela Sitawi, a organização tinha adquirido uma nova máquina embaladora de polpa, que permitiria atender às demandas dos supermercados da região.

Silvany Lima, presidente da cooperativa, não deixou de lembrar do distante ano de 2008, quando ela e algumas poucas mulheres decidiram começar a produção de polpa de umbu, um fruto típico e abundante na região, na época praticamente sem valor. Mas 2020 trouxe também um desafio: a pandemia gerou uma queda de faturamento para a CoopSertão e, consequentemente, dificuldades em começar a quitar o empréstimo tomado – além de outros dois realizados com outras instituições. 

Por trás das ações que possibilitaram à CoopSertão ter sua dívida equacionada e seguir em atividade, está um novo conceito para aplicação do capital, desenvolvido por nós na Sitawi – o de capital empático. 

Em termos práticos e efetivos, ele agrega diversas fontes de investimentos, além de uma nova forma de se relacionar com o tomador de capital. Nele, se incluem verbas de filantropia, utilizadas como garantia ou subsídio aos empréstimos, com o objetivo expresso de gerar condições mínimas para atrair outros capitais e catalisar as transformações desejadas (venture philanthropy, capital catalítico). 

Agrega-se a isso o capital paciente, com flexibilidade para assumir riscos na busca de benefícios de longo prazo para todos os stakeholders.

O último ingrediente é o capital em condições mais próximas ao “mercado”, para dar escala às transformações positivas para a sociedade.  

Somamos a essa mistura de capitais (blended finance) a priorização dos esforços direcionados à preservação e ao sucesso do empreendimento e, com isso, seu impacto positivo na comunidade e no meio ambiente, sem descuidar de gerar retorno ao investidor. A junção dessas ações, priorizadas na ordem de sua descrição, é o que denominamos de capital empático. Foi dessa forma que conseguimos chegar a soluções plausíveis para a CoopSertão. A nossa principal preocupação era a sobrevivência do negócio. Pensamos na possibilidade de conceder uma moratória, mas só isso não seria suficiente. A cooperativa ainda tinha outras dívidas e precisava de algum capital para manter suas atividades. 

Optamos então por usar um fundo solidário, utilizado para quitar a dívida com os investidores da nossa plataforma de empréstimo coletivo e para a renegociação dos empenhos junto a outras duas entidades, com condições mais favoráveis. 

Assim, foi efetivado o refinanciamento da dívida da cooperativa, sob novas condições, com moratória para início dos pagamentos, além de prazos e juros que poderiam ser cumpridos. Adicionalmente, passamos a acompanhar mais de perto o dia a dia do negócio, por meio de reuniões de aconselhamento. 

Ao mergulhar na história e na atuação da CoopSertão, percebemos que se poderia priorizar a produção de leite e requeijão, cujas vendas não dependiam de prefeituras e escolas, fechadas na pandemia, além da produção de hortifrútis para os mercados locais, o que permitiu aperfeiçoar os controles gerenciais e financeiros, reduzindo custos nas operações.

Foram meses difíceis, mas a CoopSertão sobreviveu. Hoje todos os seus pagamentos estão em dia. Mais do que isso. Após a pandemia, a cooperativa voltou a fornecer alimentos para escolas e prefeituras da região, mas agora com uma base de novos clientes ampliada em mais de 20%, pela abertura dos novos mercados durante a emergência sanitária. A produção cresceu, assim como o número de cooperados, hoje perto de 300. As atividades agropecuárias são desenvolvidas dentro de preceitos sustentáveis e a ação dos cooperados contribui para a preservação do cerrado. 

 

Além da teoria

Ao longo da nossa experiência, percebemos que os termos e palavras usados no nosso trabalho cotidiano, como venture philanthropy, blended finance, capital catalítico, impact first, ainda que precisos e específicos na denominação de atividades e produtos, não traduziam o real significado do que a Sitawi faz e oferece em relação ao investimento de impacto.

Esses termos, de modo geral, têm como ponto de partida o mercado tradicional de capitais. Entretanto, eles não contribuem decisivamente para mudar a percepção acerca da atuação de pessoas e organizações no mercado de investimento de impacto. 

Propomos que, nesse mercado, o sucesso não se defina apenas pela geração de (mais) retorno ao investidor, o que pode gerar (mais) riqueza concentrada – e, sim, que esse retorno aconteça de forma distributiva e com impacto positivo para o meio ambiente. Ou seja, que o capital seja mais empático com os demais stakeholders.  

Como em outras esferas da vida, a empatia fica mais visível quando não há a “obrigação” de ajudar ou quando algo “vai mal”. Qual a taxa de juros a cobrar em empréstimos feitos a organizações com acesso restrito ao mercado financeiro tradicional? Quando há atrasos, qual a postura do credor? Respondidas sob a lente da empatia, essas e outras perguntas levarão a caminhos diferentes dos vistos na prática tradicional.

Estimular essa mudança de mentalidade exige explicitar diferenças: se um capital é empático, o que é o outro? Apático? Indiferente? Egoísta? 

O capital tradicional é capaz de gerar desenvolvimento, riqueza e bem-estar. Mas esse não é seu foco primário. Não se trata de demonizar esse tipo de investimento; ele é muito importante. Trata-se, porém, de “não negar” que sua ação visa prioritariamente o retorno financeiro do investidor. O desenvolvimento social e a preservação do meio ambiente raramente surgem como ponto central. Ao contrário, não faltam exemplos de movimentos de capital extremamente predatórios do ponto de vista social e ambiental. 

O capital empático, por sua vez, não descuida do investidor, mas leva em consideração também o tomador, a ação multiplicadora de valor para a comunidade em que o empreendedor está inserido e seu entorno. É um modelo de investimento que não se restringe a atender apenas a alguns poucos interesses, mas o de toda uma comunidade e o do meio ambiente. 

Quando investimos, podemos ser mais ou menos empáticos. É uma decisão que vai além dos valores financeiros, que implica escolhas de visão de mundo e sobre o modelo de sociedade que queremos construir com o nosso capital. 

Empatia versus paciência

Durante muito tempo, a Sitawi se entendeu como agente do capital paciente – entendido como aquele capital retornável, mas que não visa retorno imediato. Essa paciência visa fomentar projetos de impacto que, muitas vezes, não se sustentariam sob condições de investimento tradicionais, o que impossibilitaria projetos de impacto, sobretudo aqueles com características de inovação e em busca de escala, que dependem de prazos maiores.

De imediato, pode-se evocar um paralelo entre o capital empático e o paciente. Olhando mais a fundo, vemos que a diferença não é tão sutil. Embora o capital empático abranja também o conceito do capital paciente, é importante que destaquemos que a paciência deste se refere ao retorno econômico. Ela certamente favorece o impacto gerado, porém, na essência, o capital paciente segue buscando retorno financeiro. 

Em contraposição, o capital empático prevê investidores agindo como empreendedores – e em prol deles. Isso significa tentar abrir novos canais de venda, ajudar na estratégia e, ainda, buscar novos recursos, mesmo tendo seu retorno já assegurado. 

No caso de um investimento em crédito, cujo retorno máximo depende das condições do empréstimo, ações que agregam valor, como as que mencionamos acima, mostram que o capital empático vai muito além da paciência nos recebimentos. 

O capital empático também vai além do capital paciente quando há um desempenho negativo – atuando para achar soluções, renegociar taxas e prazos e buscar apoio adicional para as organizações. Naturalmente, o retorno econômico não é esquecido, pois não adianta implementar empatia se não houver capital: ela se estende aos investidores. 

Percebemos que a atuação da Sitawi entregava mais do que capital paciente. Conforme lançamos novos produtos, como a capacitação financeira para fortalecer organizações, visando o seu primeiro financiamento, ficou mais claro que era outro o nosso posicionamento, com escuta e olhar das dores dos empreendedores, agindo para encontrar soluções personalizadas para cada caso.

De início, disseminamos o conceito de capital empático internamente, inclusive para diferenciar os tipos de atuação da Sitawi em cada situação, sabendo bem que, se o capital paciente é mais raro e exige mais tempo que o tradicional, no capital empático isso se acentua. Portanto era importante ter uma visão clara da ação, da estrutura e do orçamento necessários em cada situação. 

Como conceito, o capital empático segue em construção, mas sua prática já está mais avançada. Vemos que outros agentes multiplicadores, como Conexsus, Trê Investimentos e Neest, adotam mecanismos em linha com o capital empático. Essa prática pode ter nascido de forma espontânea, baseada nos valores desses agentes. 

Estamos convencidos de que vale a pena apostar no poder das palavras. Grandes processos de mudança começam com pequenas ações que tendem a crescer de forma orgânica. Termos bem empregados têm o poder de levar à reflexão – e assim mudar as pessoas e, com elas, o mundo. 

 

Um caminho possível

Ainda que esteja em desenvolvimento, o capital empático foi ganhando forma nos últimos anos dentro da Sitawi. Adotando o conceito, realizamos mais de 140 transações de investimento de impacto, que mobilizaram cerca de R$ 33 milhões, investidos em 65 negócios. Estes impactaram de forma positiva o meio ambiente e a vida de mais de 20 mil pessoas e conservaram mais de 4 milhões de hectares com o nosso apoio.

Para acompanhar esse movimento, em 2024 lançamos o estudo “Transformação socioambiental com retorno real”, que conta os resultados de 15 anos de nossa experiência em investimentos com uma abordagem impact first – que prioriza o impacto socioambiental positivo antes do retorno financeiro. 

No documento, apresentamos, de forma transparente, as diversas faces dessa jornada: de organizações que deram certo até as que precisaram de algum amparo para pagar o investimento, como a CoopSertão.

Não tem sido um caminho simples e linear e, por vezes, pode ser bem desafiador. Mas os resultados nos estimulam a seguir adiante. Ainda que não represente garantia plena de sucesso, a abordagem empática possibilitou que o default ficasse apenas um pouco acima de 5,5% do volume de operações, levando a um retorno para os investidores de 4,5% acima da inflação (números relativos ao período de pós-pandemia até julho deste ano). Vale reforçar que a maioria das organizações que financiamos não seria nem sequer atendida pelos bancos tradicionais. 

Casos como o da CoopSertão nos convencem, a cada dia, que o capital de impacto, quando também empático, pode nos proporcionar muito mais desenvolvimento econômico e social, com preservação ambiental e retorno financeiro para todos. 

Leia também: O investimento de impacto tem de ser difícil

 

OS AUTORES

Bruno Girardi é diretor-vice-presidente da Sitawi e responsável pela frente de investimento de impacto da organização. Trabalhou anteriormente na Vale, Petros e BTG Pactual. É graduado em economia pela Universidade de Londres e tem MBA pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT).

Leonardo Letelier é fundador e CEO da Sitawi Finanças do Bem e da Endowments do Brasil. Trabalhou anteriormente na McKinsey e no mercado financeiro. É formado em engenharia industrial pela USP, com MBA pela Harvard Business School, especialista em ESG, investimentos de impacto e filantropia.



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