Imprimir artigo

A potência invisível do terceiro setor

Para que o terceiro setor cresça, novas narrativas devem destacar, além do impacto, sua força econômica.

Por Leonardo Letelier

Jogue ao vento a expressão “terceiro setor”. As imagens que vão voltar são de um caminhão cheio de mantimentos para apoiar famílias atingidas por uma emergência dessas que se repetem todos os anos, uma ação de plantio de árvores ou um mutirão de cirurgias para pessoas em situação de vulnerabilidade. As narrativas tradicionais sobre o setor privado sem fins lucrativos habitualmente destacam os resultados diretos de sua ação na sociedade.

Leia também:

Crescimento inclusivo

Celebrar as pessoas para mudar a cultura do serviço público

Agora faça o mesmo com a expressão “setor empresarial” (também conhecido como setor privado com fins lucrativos ou segundo setor). Fala-se sobre empregos, fração do Produto Interno Bruto e outros indicadores semelhantes. É sua contribuição para a economia o que se valoriza.

Essa diferença de olhar tem implicações relevantes. Ao darmos primazia para a geração de valor mensurável no curto prazo quando falamos do segundo setor, corremos o risco de ignorar suas externalidades – os danos causados por empresas, pelos quais não são responsabilizadas.

Por outro lado, enxergar prioritariamente o benefício público gerado pelo terceiro setor nos leva a desconsiderar sua contribuição para a economia. Isso alimenta estereótipos e má compreensão por parte dos encarregados de desenhar políticas públicas, impedindo a adequada representação do setor nos fóruns de tomada de decisões, o que reduz sua capacidade de gerar impacto.

O fato é que a relevância econômica do setor – que não é pequena – importa muito, mas é pouco conhecida.

Um breve passeio por alguns títulos recentemente publicados na mídia permite entender que o terceiro setor é visto ao mesmo tempo como ponta de lança na garantia de direitos sociais, dependente de verbas do Estado e carente de maior conformidade:

  • Representantes da sociedade civil, da iniciativa privada e do terceiro setor lançam campanha de combate à fome

  • SOS Yanomami: terceiro setor cria estratégia para combater crise humanitária

  • Papel do terceiro setor na garantia dos direitos sociais

  • Como saber se o terceiro setor traz mais eficiência ao Estado?

  • Estudo expõe relação conflituosa entre terceiro setor e sistema financeiro

  • Terceiro setor recebeu R$ 109 bilhões do Estado e dos municípios desde 2019

Embora respeitosos, os textos acima1 apontam para uma verdade parcial. Impressiona constatar que a suposta dependência do Estado – enquanto na verdade apenas 2,7% das organizações recebem algum subsídio público2 – continua sendo uma das mensagens mais propagadas acerca do setor.

Raio-X

 

Recentemente foi publicado um estudo sobre a contribuição econômica do terceiro setor,3 iniciativa do Movimento por uma Cultura de Doação, coordenada pela Sitawi Finanças do Bem, com apoio de outras organizações e indivíduos e execução pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). A abordagem adotada utilizou uma matriz insumo-produto e avaliou a redução nos níveis gerais da economia, com a remoção hipotética das atividades econômicas do setor – organizado em atividades artísticas, de educação, de saúde e outras organizações associativas.

De forma consolidada, o terceiro setor4  movimenta 4,27% do PIB, 3,39% do valor de produção e 5,88% das ocupações no país. Isso é muito relevante, especialmente se compararmos esses dados aos de setores de maior visibilidade, como o de fabricação de automóveis, caminhões e ônibus (1,73% do PIB) e o de agricultura (4,57% do PIB).

A contribuição econômica de um setor – como representação no PIB, ocupação ou valor de produção – é a soma de sua contribuição direta, decorrente da atividade econômica interna, e da indireta, efeito de sua demanda por insumos de outros setores, que aumentam a de outros.

Esperava-se um peso importante das atividades de saúde, puxado pelos grandes hospitais filantrópicos, e, em menor medida, pelas da educação. Mas, além dessas confirmações, os números como um todo são relevantes.

Outro estudo recente, conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aborda a dinâmica de abertura e fechamento de organizações do terceiro setor no Brasil nos últimos 120 anos.5 Entre 1901 e 2020, cerca de 1,16 milhão de organizações foram abertas no terceiro setor. Destas, cerca de 816 mil permanecem ativas e, ainda destas, 528 mil seguem prestando contas à Receita Federal, o que significa que mantêm algum nível de operação.6

 

Não há razão para que gestores públicos não deem a devida atenção a um setor que contribui com mais de 4% do PIB e quase 6% da ocupação.

 

Dados gerados por esse estudo indicam que a fração das organizações do terceiro setor que deixa de operar em cinco anos é 36%; o número pode parecer alto, mas, no caso das empresas com fins lucrativos, a taxa é de 60,7%, segundo outra pesquisa, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As que ficam inoperantes após dez anos são 50% – a comparar com 79,7% no caso das empresas, ainda de acordo com o IBGE.7  Essa comparação já exclui da composição as empresas inaptas e suspensas no terceiro setor, mesmo se isso não as impediria de exercer suas atividades regularmente.

Ainda que as formas de medir atividade operacional difiram entre os dois estudos, pode-se concluir que as organizações sem fins lucrativos se mostram mais resilientes do que as empresas rentáveis. Uma comparação simplificada – a divisão da fração das organizações pela fração de empresas ainda ativas após determinado período – indicaria uma razão de 1,6x para uma sobrevivência de cinco anos e 2,5x para dez.7

Não há razão para que gestores públicos não deem a devida atenção a um setor que contribui com mais de 4% do PIB e quase 6% da ocupação e que se mostra mais resiliente do que as empresas tradicionais com fins de lucro. Esses dados deveriam estar na mente dos gestores públicos ao formular suas políticas, sejam estas direcionadas ao terceiro setor ou transversais, que impactam a economia como um todo – inclusive o terceiro setor. Uma das consequências diretas de desconsiderar essa contribuição econômica é o impacto sobre o financiamento. Se empresas podem vender participação acionária para financiar seu crescimento, o equivalente disso no terceiro setor, as doações irrestritas, é raro. A predileção dos doadores é por ver todo seu dinheiro investido “na ponta”, ou seja, nos serviços providos pelas organizações. Enquanto o segundo setor conta com a margem de contribuição de seus produtos ou serviços para crescer, do terceiro setor espera-se que opere sem essa margem. Mesmo quando é permitido o uso de algum recurso para custos indiretos, ainda não estamos falando em sobra  para investir em crescimento ou melhoria das operações.

Não se pretende que doadores confiem cegamente nas organizações sem fins lucrativos, mas que tratem seus gestores como profissionais, dando-lhes recursos e cobrando em troca realizações compatíveis, como fazemos nos outros setores.

 

Como avançar

 

Será necessário dar seguimento à geração de dados de qualidade sobre o funcionamento do terceiro setor. É assim que os demais setores da economia agem com vistas a subsidiar seus esforços de incidência sobre políticas públicas e a fim de discutir regulamentações, impostos e benefícios.

Os setores tradicionais falam de empregos e impostos gerados nas tratativas governamentais. Mas, no marketing para seus clientes, abordam os benefícios de seus produtos e serviços. Também o terceiro setor tem de agir nesse sentido, de modo a reforçar sua legitimidade. Novas narrativas vão colaborar para a captação de recursos. Imaginemos as seguintes manchetes em jornais, sites e mídias sociais:8

  • Desenvolvimento econômico e social: a força do terceiro setor

  • Terceiro setor adiciona R$ 423 bilhões ao PIB, mas ainda está distante de seu potencial

  • Seis milhões de ocupações e contando – o terceiro setor impressiona

  • Terceiro setor não vive de favor, movimenta 4,27% do PIB do país e pede respeito

  • Para você que pensou que economia e filantropia não estão relacionadas, leia isso

  • Você conhece a “indústria” com mais impacto positivo no Brasil?

  • Terceiro setor: a área que faz a máquina girar com dinheiro e propósito

  • Doar faz bem para você e para a economia

  • Terceiro setor “puxa” mais de 1 milhão de empregos em outros setores

  • Você pode não conhecer o terceiro setor, mas se beneficia dele todos os dias

  • Solidariedade ou automóveis: o que vale mais na economia e para o governo?

O ponto de partida é promissor, uma vez que 74% das pessoas concordam que “a maioria das organizações sociais trabalha arduamente para alcançar resultados positivos para aqueles que pretendem ajudar”, segundo a pesquisa Brazil Giving 2020.9

 

Em síntese, para que o terceiro setor seja devidamente levado em conta nas discussões de políticas econômicas, aumente a probabilidade de receber um tratamento adequado dos formuladores de políticas públicas e se mostre merecedor de financiamentos mais eficazes, as estratégias de marketing das organizações precisam reforçar três mensagens-chave:

  • O terceiro setor é parte da economia, não um efeito colateral;

  • O investimento da sociedade no terceiro setor gera retorno social, ambiental, cultural, mas também econômico;

  • Organizações socioambientais não são menos sustentáveis do que empresas. Na média, vivem mais tempo, mesmo sendo financiadas de forma menos flexível.

A fim de apoiar esse processo como um todo, os poucos e corajosos indivíduos e organizações que financiam o desenvolvimento da infraestrutura para filantropia no país poderiam criar um fundo coletivo, com recursos de longo prazo.

No fim das contas, um funcionamento melhor do terceiro setor traz benefícios – não só sociais, ambientais ou culturais, mas também econômicos – para todos.

 

O AUTOR

Leonardo Letelier, eleito Empreendedor Social do Ano 2021 pela Folha de S.Paulo e Schwab Foundation, é fundador e CEO da Sitawi Finanas do Bem e diretor-executivo da Endowments do Brasil.

NOTAS

1 Títulos de textos publicados entre 2022 e 2023 nos sites G1 Observatório do Terceiro Setor, O Tempo, Migalhas e TCE-SP.

2 https://mapaosc.ipea.gov.br/arquivos/posts/2624-tdreduzido.pdf

3 “A Importância do Terceiro Setor para o PIB no Brasil e suas regiões”, disponível em https://info.sitawi.net/terceiro-setor-pib-brasil

4 As organizações consideradas no estudo seguem o mesmo critério do Mapa das Organizações da Sociedade Civil (https:// mapaosc.ipea.gov.br/), ou seja, são aquelas privadas, sem fins lucrativos, com personalidade própria ou legalmente constituídas, autoadministradas e voluntárias. O ano-base foi o da última matriz brasileira de insumo-produto disponível pelo IBGE, 2015.

5 https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11453/2/ TD_2891_Web.pdf

6 Na visão do autor, a estimativa mais comumente utilizada para representar o número de organizações sociais (mais de 800 mil) superdimensiona o setor ao incluir organizações declaradas inaptas, ou seja, aquelas que deixaram de apresentar declarações fiscais de cinco ou mais exercícios consecutivos e que, mesmo após intimadas, não tenham regularizado a situação ou tenham deixado de apresentar essas mesmas declarações em um ou mais exercícios, porém não foram localizadas.

7 A hipótese de que a curta vida de microempreendedores individuais (MEIs) diminuiria a longevidade média das empresas foi refutada pelo estudo “Sobrevivência das empresas no Brasil”, de 2016, disponível em https://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Anexos/ sobrevivencia-das-empresas-no-brasil-102016.pdf. Na verdade, o oposto acontece.

8 Agradeço a Ana Americano, Bhaskar, Bianca Monteiro, Fernando Nogueira, Joana Mortari, Marcia Woods, Renata Veneri, Silvia Daskal, Silvia Morais e Tatiana Piva pelas sugestões.

9 https://www.idis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/ CAF_BrazilGiving2020.pdf



Newsletter

Newsletter

Pular para o conteúdo