Celebrar as pessoas para mudar a cultura do serviço público
Como premiações podem ser usadas para criar conscientização, levantar o moral, combater a corrupção e inspirar uma nova geração de funcionários no serviço público em nível local e global.
Por Eloy Oliveira
Premiações para celebrar conquistas em diversos campos não são uma grande novidade. O Prêmio Nobel é concedido desde 1901, o Pulitzer, desde 1917, e o primeiro Oscar é de 1927. No entanto, as premiações que celebram avanços do setor público são novas. Iniciativas recentes demonstram que a atribuição de prêmios a funcionários públicos que se destacam no seu trabalho pode mudar a forma como as pessoas enxergam o setor público, quebrando preconceitos e mostrando as melhores práticas a outros profissionais.
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A Stanford Social Innovation Review (SSIR) já deu espaço para uma rica discussão sobre a utilidade de premiações, em artigos escritos por Alex Dehgan e réplica por Kevin Starr. Em breve síntese, os autores debateram se premiações são de fato uma ferramenta efetiva para entidades do Terceiro Setor atingirem seus objetivos institucionais. Por um lado, Starr argumenta que premiações podem retirar as entidades filantrópicas do seu verdadeiro foco, levando à falta de alocação eficiente de capital filantrópico. Além disso, embora admitindo que os prêmios possam acelerar projetos sociais, alguns prêmios não contam com um júri qualificado e sofrem com opiniões tendenciosas, levando assim a más escolhas. Por outro lado, Dehgan aponta que existem, sim, casos positivos de competições/prêmios, como o Skoll Awards. A premiação da Skoll Foundation se destaca como exemplo de investimento sério travestido de prêmio que concede uma soma substancial (US$ 1,25 milhão) a vários vencedores a cada ano. Com o recurso, eles podem levar suas organizações sociais ao próximo nível de impacto. A discussão entre os autores leva à sugestão de algumas diretrizes que podem ajudar a melhorar o impacto geral das premiações, como ter uma maioria de juízes com bastante conhecimento na área que estão julgando e evitar que a maior parte dos recursos do prêmio vá para fins secundários, como a cerimônia de premiação ou jantar de gala. Em resumo, o essencial é se concentrar no impacto da proposta, em vez de se distrair com coisas menos relevantes.
Essa rica argumentação, que levou a Usaid e o Banco Mundial a repensar suas estratégias envolvendo premiações, também inspirou muitas organizações sem fins lucrativos em todo o mundo a utilizar premiações como ferramentas para melhorar a governança e eficácia dos governos. O Brasil não ficou para trás.
Servidores públicos brasileiros enfrentam uma grande falta de confiança pública e de reconhecimento por seu trabalho, particularmente como consequência dos escândalos de corrupção e da intensa exposição na mídia de histórias negativas. Segundo dados recentes da agência global de comunicação Edelman, apenas 26% dos brasileiros acham que “as autoridades governamentais inspiram confiança”. A quantidade de pessoas que veem os excessos da burocracia como prejudiciais e capazes de facilitar a corrupção é enorme e a percepção geral é que os servidores públicos não estão realmente entregando um bom trabalho à sociedade.
Para mudar esse estigma, em 2018, um consórcio de mais de 20 ONGs e fundações criou o Prêmio Espírito Público, tido hoje como o mais importante para pessoas que trabalham com governos no Brasil. A premiação visa corrigir os estigmas da confiança e transparência, celebrando os melhores servidores públicos do país e aprimorando a visão sobre todos no funcionalismo público. O objetivo é dar ampla divulgação aos melhores servidores e servidoras públicos do país, utilizando os meios de comunicação nacionais para informar os cidadãos e mudar a percepção falha da população sobre o setor público.
Da Inspiração ao Impacto no Setor Público
Para ser considerado para o prêmio, cada candidato deve preencher um formulário online. Ao longo de suas cinco edições, milhares de pessoas se inscreveram, de todos os 27 estados brasileiros. Uma equipe interna examina as candidaturas para filtrar a elegibilidade. Na fase seguinte, um time de mais de 160 jurados e juradas avalia os candidatos elegíveis com base em quatro critérios:
1) capacidade de inspirar outras pessoas dentro de sua equipe;
2) contribuição em áreas técnicas específicas;
3) o impacto de seu trabalho na sociedade;
4) momentos de superação e resiliência a favor do país.
Os jurados e juradas são servidores públicos aposentados, acadêmicos e até ex-ministros de Estado.
Além de chamar a atenção para as realizações excepcionais dos vencedores, ao conceder-lhes destaque na mídia nacional, o prêmio também proporciona aos servidores públicos uma imersão internacional projetada para inspirá-los e ampliar o impacto de seu trabalho.
Na edição de 2018, os premiados foram para Londres, na Inglaterra, em uma viagem de uma semana organizada pelo jornal The Guardian. Ali, tiveram a chance de conhecer órgãos públicos e de participar do evento de premiação do próprio jornal para servidores públicos.
No prêmio seguinte, os vencedores fizeram uma imersão de uma semana em Berlim, na Alemanha, organizada pela Hertie School of Governance. Além de ter a chance de aprimorar suas habilidades e ouvir palestrantes de renome mundial, eles também participaram de reuniões com servidores alemães e de uma recepção oficial na Embaixada do Brasil.
Nas edições de 2020 e 2021, os premiados assistiram a palestras e debates realizados por um grupo de gestores públicos sobre temas como educação, segurança pública, governo digital, meio ambiente, desenvolvimento social e sistema de alta direção pública do serviço social do Chile.
Compartilhar Boas Práticas
O impacto do Prêmio Espírito Público é notável. Com o acesso à mídia e a milhares de telespectadores que assistem às notícias sobre o prêmio, os vencedores conseguem divulgar as melhores práticas e inspirar outros servidores públicos do país. Um dos vencedores do prêmio inspirou uma diretora de cinema a iniciar um documentário sobre seu trabalho e o impacto que está causando.
Em 2022, a premiação confirmou a crescente relevância do prêmio. Canais de TV, rádio e mídias digitais, com um alcance estimado de meio milhão de pessoas, compartilharam as histórias de impacto de 27 servidoras e servidores. A festa de premiação foi realizada no Rio de Janeiro, na Estação NET Botafogo.
Por Onde Começar
A partir da experiência de concepção e lançamento do Prêmio Espírito Público, identificamos pelo menos três importantes passos iniciais a serem dados na utilização de premiações que causam impacto social:
1) A definição do objetivo final e que tipo de prêmio seria mais adequado para esse fim. Em “The Future of Prize Philanthropy”, Renya Reed Wasson estabelece três tipos distintos de prêmios filantrópicos: prêmios de reconhecimento, que visam homenagear trabalhos já realizados; prêmios de incentivo, centrados na motivação das pessoas para a prossecução de um objetivo claramente definido; e prêmios de recursos, que, diferentemente dos dois anteriores, fornecem aos vencedores impulso crucial para terminar um projeto de impacto.
2) Alinhamento dos critérios de seleção com seus objetivos. No exemplo brasileiro, um dos critérios iniciais do prêmio era que os candidatos deveriam ser servidores públicos ativos com pelo menos dez anos de experiência pública. O objetivo era garantir que as pessoas apresentassem um histórico sólido e, ao mesmo tempo, tivessem tempo para se beneficiar dos prêmios, dentro de suas carreiras.
3) Definir qual será o objeto premiado, ou seja, o que as pessoas receberão como reconhecimento de suas realizações. Esta etapa se conecta com a primeira, porque leva aos resultados.
A título de exemplo, se a ideia é chamar a atenção para uma determinada pauta, a premiação deve focar na mídia. Se o objetivo é ver alguma ideia se tornando realidade, devem ser fornecidos recursos e conexões. Se o conceito é que as pessoas se sintam bem com o que fazem, deve ser proporcionada uma experiência única.
Pode parecer simples à primeira vista, mas construir prêmios com sucesso requer muito planejamento. Esses são alguns dos postos-chave, mas inúmeros aspectos devem ser levados em consideração antes de começar. A credibilidade e transparência de um prêmio, por exemplo, são fundamentais para sua existência. Por isso é necessário ter certeza de que os mecanismos necessários para garantir a lisura do processo de seleção estão presentes e funcionando. Por exemplo, uma das medidas adotadas pelo Prêmio Espírito Público foi a de estabelecer que todas as inscrições sejam avaliadas por ao menos dois jurados diferentes para permitir que mais de uma pessoa possa opinar sobre cada inscrito. Além disso, a escolha dos vencedores é feita por um colegiado de especialistas a partir de uma lista de inscrições mais bem ranqueadas, o que impede que uma só pessoa possa impor a palavra final na escolha dos vencedores.
Não se pode descuidar também da parte da divulgação consistente e consciente do prêmio. Afinal as pessoas certas precisam saber que o prêmio existe, como também se sentirem engajadas para se candidatar. Este é um desafio maior do que se imagina. As pessoas que o Prêmio Espírito Público busca são profissionais dedicados, extremamente focados no seu trabalho e em entregar os melhores serviços públicos para a sociedade. Por isso é preciso um esforço especial para chamar a atenção dessas pessoas e motivá-las a se inscreverem.
O Prêmio Espírito Público foi planejado intensamente por mais de um ano e passou por várias rodadas de benchmarking antes de ser lançado. As categorias de premiação, por exemplo, foram exaustivamente debatidas pelos criadores do prêmio. Outros temas, como critérios de elegibilidade, etapas do processo seletivo, salvaguardas, calendário de inscrições, estratégia de divulgação, para citar alguns, também renderam ricas discussões.
Ainda assim, diversas adaptações e evoluções são necessárias ao longo do caminho e o prêmio segue evoluindo ano após ano. As categorias de premiação mencionadas acima são um exemplo dos temas que são rediscutidos todos os anos para atender aos anseios mais urgentes do serviço público e da sociedade e, por isso, são sempre renovadas.
Melhorar o Funcionalismo Público
Usar prêmios como ferramentas para melhorar o serviço público não é uma tarefa fácil, pois exige muito planejamento e muito trabalho. Felizmente existem alguns bons exemplos ao redor do mundo.
O Brasil não está sozinho no esforço de catalisar mudanças no funcionalismo público por meio do uso estratégico de prêmios. Conheça alguns dos exemplos de premiações que acontecem em outros países e que serviram de inspiração para a criação do Prêmio Espírito Público:
SAMUEL J. HEYMAN SERVICE TO AMERICA MEDALS (também conhecido como The Sammies Award) – Concedido pela primeira vez em 2002, o Sammies é apresentado anualmente pela The Partnership for Public Service, uma fundação sem fins lucrativos e apartidária em Washington, D.C., nos Estados Unidos. O prêmio visa reconhecer os funcionários do governo federal que contribuíram significativamente para a governança do país. Até o momento, mais de 130 pessoas e equipes foram reconhecidas em oito áreas que abrangem os diversos setores do serviço público federal. A comissão de seleção é composta por profissionais multidisciplinares.
INTEGRITY IDOLS – Lançado em 2014 pelo Accountability Lab, o Integrity Idols homenageia servidores públicos que demonstram integridade exemplar em seu trabalho. Equipes voluntárias reúnem as indicações no Nepal, Libéria, Paquistão, Sri Lanka, Nigéria, Mali, África do Sul e México. Painéis independentes de especialistas reduzem a lista de indicados a cinco finalistas por país. Os cidadãos de cada país podem votar nos finalistas com base em um pequeno vídeo exibido na televisão nacional e no rádio.
GLOBAL TEACHERS PRIZE – A partir de uma perspectiva global, o Prêmio Global Teachers Prize visa reconhecer o grande trabalho de professores de todo o mundo que deram uma contribuição notável para a profissão. A Fundação Varkey lançou o prêmio em março de 2014. Os vencedores selecionados pela Global Teacher Prize Academy recebem um prêmio de US$ 1 milhão, que podem usar para investir em sua própria agenda educacional, ajudando a ampliar seu impacto.
O Prêmio Espírito Público é um exemplo de sucesso e seu crescimento e fortalecimento são um sinal claro do seu valor. O prêmio tem um meticuloso ciclo de 12 meses de planejamento e implementação. Existem vários aspectos a serem levados em consideração, mas os benchmarks e as etapas cruciais mencionadas ao longo deste artigo dão uma boa base para qualquer um que esteja considerando um empreendimento semelhante.
Mais importante, este resumo deve inspirar outras pessoas a usar prêmios como ferramentas para criar consciência, elevar o moral, combater a corrupção e inspirar uma nova geração de servidores públicos em nível local e global.
No caso do Prêmio Espírito Público, o objetivo de longo prazo é mudar a forma como as pessoas enxergam o serviço público brasileiro, quebrando os preconceitos e estigmas que hoje existem em torno dos profissionais públicos. Essa mudança de mentalidade e percepção leva tempo e depende de um fluxo contínuo de bons exemplos no serviço público que possam ser celebrados e reverberados pelo país. O fato de o prêmio continuar crescendo pelos seus primeiros cinco anos é um sinal positivo, mas a missão está longe de estar terminada e há muito trabalho pela frente. O plano é continuar crescendo exponencialmente pelos próximos cinco anos e contaminar mais e mais pessoas com o mantra do impacto positivo no serviço público.