Impacto, de Sir Ronald Cohen, mostra que o alinhamento do setor público com o setor privado pode mobilizar capital e promover inovações para solucionar questões ambientais e sociais.
Por Samir Hamra e Graziella Comini
Entusiasta do investimento de impacto, Sir Ronald Cohen tem trabalhado incansavelmente nas duas últimas décadas para fazer o tema avançar entre investidores, grandes corporações, governos e organizações filantrópicas. Um novo modelo de capitalismo para gerar mudanças verdadeiras no mundo é o subtítulo de seu audacioso livro.
Pioneiro do venture capital e do private equity nos anos 1980, Cohen mobilizou fortunas – e, no processo, fez a sua própria – para apoiar empreendedores do então nascente setor de tecnologias da informação e comunicação no Vale do Silício. Embora hoje associado a cifras de bilhões de dólares, esse movimento começou com alunos das melhores universidades americanas e pessoas dispostas a apoiá-los com recursos financeiros.
Graças a sua proeminência no desenvolvimento desse mercado, Cohen foi convidado pelo governo britânico em 2002 para liderar uma força-tarefa que se debruçou sobre uma questão espinhosa: como direcionar recursos privados para encarar os desafios sociais que o país enfrenta? Desde então sua influência e liderança se expandiram para mais de 30 países que compõem o Global Steering Group for Impact Investment, mobilizando governos, setor privado e organizações da sociedade civil para promover o investimento de impacto e os negócios de impacto social e ambiental.
Para criar sua visão de “revolução de impacto”, Cohen recorre a elementos que lhe são familiares: mercado financeiro, risco e lucros. Ele ressalta que vivemos o início de mais uma revolução no sistema capitalista, que estaria apoiada em três pilares: a transformação do binômio risco-retorno no trinômio risco-retorno-impacto; os mecanismos de pagamento por resultados; e o amadurecimento de métricas de impacto comparáveis e amplamente aplicáveis nos moldes já existentes para facilitar a contabilidade financeira. Para Cohen, essas medidas permitiriam aumentar o retorno financeiro e o impacto positivo sem alterar o risco.
O modelo mental subjacente à reflexão de Cohen surgiu nos anos 1950, quando o mercado financeiro viveu uma revolução a partir da teoria de Harry Markowitz. Seu artigo de 1952 apresentou uma definição clara e operacionalizável de risco e demonstrou matematicamente que a forma mais eficiente de maximizar os retornos financeiros dos investimentos é diversificação de portfólio. Ao ganhar corpo, essa visão alimentou o apetite de investidores por produtos de maior risco e viabilizou o surgimento dos mercados de venture capital e private equity que catapultaram a carreira de Cohen. Depois disso, foi a vez da revolução das tecnologias da informação e comunicação, quando jovens brilhantes desenvolveram e utilizaram tecnologias nascentes para criar produtos que revolucionaram mercados estabelecidos e até criaram outros novos, de computadores pessoais e software a smartphones e redes sociais.
A revolução tecnológica e a revolução financeira descritas por Cohen criaram as condições para a globalização dos anos 1990. Se, de um lado, elas hoje permitiram mais investimentos em países emergentes e tiraram milhões de pessoas da pobreza, de outro intensificaram a concentração de renda e riqueza em âmbito global e, ao aumentarem a mobilidade internacional de grandes empresas e fortunas, reduziram o poder de arrecadação dos governos. Nesse contexto surgem os heróis do livro: os millennials inconformados com o paradigma de ganhar dinheiro com atividades nocivas à sociedade e ao planeta durante sua vida profissional e depois doar parte desses recursos para remediar os danos causados. Essa geração que nos próximos 20 anos herdará 40% das fortunas bilionárias do planeta busca alinhar seu consumo e seus investimentos à resolução de problemas sociais e ambientais. Se o argumento econômico não bastar para convencer o leitor, Cohen lembra que também os governos estão mudando, e existe o risco de novos impostos e regulamentações dificultarem a vida de empresas e investidores desatentos ao impacto que geram.
Para aumentar o fluxo de recursos para as causas socioambientais na medida exigida pelos desafios, é preciso criar produtos financeiros focados em impacto para sensibilizar o bolso dos investidores. O autor a seguir fala dos contratos de impacto social (social impact bonds ou SIBs) e dos contratos de impacto destinados ao desenvolvimento (development impact bonds ou DIBs). Todos eles são arranjos entre quatro partes: investidor, organização executora, auditor e governo. O investidor aloca recursos de saída para financiar determinada intervenção em um problema social; a organização executora, que pode ser um negócio de impacto social ou uma organização da sociedade civil, executa a intervenção proposta; seus resultados serão verificados pelo auditor. O governo (no caso dos SIBs) ou as organizações voltadas para desenvolvimento internacional (no caso dos DIBs) remuneram o investidor com uma taxa previamente acordada se as metas forem atingidas.
Segundo o autor, essa dinâmica, que é o cerne da revolução de impacto, beneficia todas as partes. Os governos usam seus recursos de forma mais eficiente: remuneram apenas mediante resultados. Os investidores, que podem ter interesses filantrópicos ou de retornos financeiros, apoiam as inovações destinadas à solução de problemas sociais e, se tiverem êxito, serão remunerados. As organizações executoras passam a contar com novas formas de financiamento, mais abertas à inovação. É o pagamento por resultados, visto por Cohen como a principal contribuição para a revolução de impacto. Essa prática muda radicalmente a lógica de provisão de serviços públicos pelos governos e abre espaço para mais inovação, além de permitir a alocação sinérgica de recursos públicos e recursos privados.
As métricas de impacto social e ambiental, estabelecidas à luz dos padrões já existentes para a contabilidade financeira das empresas e válidas para os negócios de todos os tipos, são o terceiro pilar dessa revolução. Inspirado pelos GAAPs (generally accepted accounting principles ou princípios de contabilidade amplamente aceitos), o autor propõe o desenvolvimento de um conjunto de métricas que incorporem as externalidades aos demonstrativos de resultados das empresas. Para isso, ele financia a Iniciativa de Contabilidade Ponderada pelo Impacto (impact weighted accounts initiative ou IWAI), liderada por George Serafeim, da Harvard Business School. O estabelecimento de padrões de mensuração e reporte de impacto social e ambiental é fundamental para que os investidores possam incluir o eixo de impacto em suas análises e para que SIBs e DIBs ganhem força e se disseminem na condição de produtos financeiros.
Esses três pilares devem guiar a participação de empreendedores, investidores, grandes corporações, governos e organizações filantrópicas na revolução de impacto proposta por Cohen. Em um capítulo inteiro do livro ele descreve o engajamento de cada um desses atores e mostra como sua própria trajetória influencia suas ideias. Não surpreende que ele também carregue algumas das limitações características dos setores onde construiu sua exitosa carreira.
Uma dose saudável de otimismo provavelmente foi fundamental para que Cohen se tornasse um dos pioneiros do venture capital e acreditasse no potencial dos negócios em que investia. Esse mesmo otimismo se manifesta nas soluções um tanto ingênuas que ele propõe para resolver problemas sociais e ambientais extremamente complexos. O pagamento por resultados, por exemplo, embora possa trazer eficiência ao uso de recursos públicos e filantrópicos, torna a relação entre as partes apenas transacional e não colaborativa, o que dificulta a construção de relações baseadas na confiança mútua e de tolerância a erros.
Ao propor esse modelo de alocação de recursos filantrópicos e de desenvolvimento internacional, Cohen ignora aspectos importantes. De um lado, desconsidera o papel da filantropia como apoiadora de causas cujos resultados não são imediatamente verificáveis, como as que visam a defesa de direitos ou mudanças em políticas públicas. De outro, pensando nos DIBs, elimina o mecanismo de accountability entre doadores e beneficiários – ainda que frágil – representado pelos governos recipientes de recursos de desenvolvimento internacional. O apetite de investidores por retorno gera pressão por resultados e pode inibir a implementação de soluções inovadoras de fato.
Além disso, a pretensão universalista da obra não reconhece aspectos contextuais importantes em três esferas. Globalmente, há diversos movimentos que buscam reformar o capitalismo, de diferentes perspectivas. Desde bilionários clamando por mais impostos sobre suas fortunas no Fórum Econômico Mundial até discussões sobre maior articulação internacional de políticas fiscais.
No universo empreendedor, o movimento das zebras se contrapõe ao dos unicórnios (empresas que atingem valor de mercado de US$ 1 bilhão) ao promover colaboração e conexões duradouras em vez de crescimento rápido e disruptivo. Esse movimento se caracteriza por iniciativas que geram impacto profundo, ainda que não atinjam escala compatível com as ambições dos fundos de venture capital. Sua demanda por capital é também distinta, mais afeita a instrumentos de menor risco e retornos constantes, como dívida, que a participação acionária que visa múltiplos de dois dígitos em uma eventual saída. Em 2020, o montante alocado em venture capital e private equity no Brasil equivalia a menos de 1,5% do crédito para empresas. A obra de Cohen não leva em conta que o mercado de dívida para empreendedores é muito mais palatável aos investidores de mercados emergentes que o de venture capital.
Por fim, o livro passa ao largo também do ambiente institucional de países em desenvolvimento, como o Brasil. Pressupor a existência de investidores, organizações executoras e auditores de impacto preparados e dispostos a operar um SIB nesse contexto desconsidera questões cruciais como gestão orçamentária deficiente, instabilidade institucional e de pessoal e possíveis conflitos de interesse. Se a confiança mútua aparece como requisito básico nessa construção colaborativa, a visão de cada uma das partes sobre o papel do Estado e sobre seu modo de se relacionar com os outros setores se reflete diretamente na maior ou menor aceitação desse tipo de contrato.
Não à toa, os países ricos concentram esses instrumentos. Segundo um laboratório da Universidade de Oxford, até fevereiro de 2022 havia 227 projetos de SIB assinados em 35 países, em diferentes estágios de execução, com recursos estimados em US$ 547 milhões e 950 mil pessoas como público-alvo. Europa e América do Norte concentram 80%, Oceania e Ásia 7% cada uma, África e América do Sul 3% cada uma. No Brasil, há três experiências inconclusas.
O universo de empreendedorismo tecnológico parece sempre defender fervorosamente uma visão, mesmo que os meios de concretizá-la ainda não estejam disponíveis por completo. Se de um lado isso é importante para mobilizar equipes e recursos financeiros necessários para tornar essa visão uma realidade, de outro pode gerar expectativas muito maiores que a entrega, levando o público a notar que o rei, se não está nu, veste apenas ceroulas.
O livro cumpre o importante papel de mostrar o potencial dos investimentos e negócios de impacto a um público que compartilha da trajetória e linguagem do autor, como investidores e atores do mercado financeiro. Pode também inspirar e mobilizar quem se sente impotente diante dos desafios dos tempos atuais. Mas decepciona os engajados na solução de problemas socioambientais que não visualizam o mercado como protagonista da tão sonhada revolução de impacto descrita no mesmo livro. Afinal, problemas complexos não têm soluções simples, meramente quantitativas: um novo capitalismo passa por mudanças estruturais que possibilitem a internalização de valores de justiça social e ambiental por todos os atores.
OS AUTORES
Samir Hamra é consultor e pesquisador de investimentos de impacto socioambientais. Atua com fomentadores dessa agenda no Brasil e no exterior, além de desenvolver pesquisas no Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (Ceats) da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) como aluno de pós-graduação.
Graziella Comini é professora associada do Departamento de Administração da FEA-USP, coordenadora do Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (Ceats) da FEA-USP, vice-presidente do Instituto de Pesquisas Ecológicas e conselheira na área de empreendimentos socioambientais e negócios sociais no Brasil.
Usamos cookies para garantir que oferecemos a melhor experiência em nosso site. Se você continuar a usar este site, assumiremos que você está satisfeito com ele.OkNão