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Do individualismo à coliderança

Na América Latina, onde os valores que reforçam a individualidade predominam cada vez mais, uma possibilidade de transformação social surge da coliderança

Por Carolina Nieto e David Mayoral

Este artigo foi publicado originalmente pela SSIR en Español em junho de 2024 e foi o artigo original mais lido da SSIR en Español no mesmo ano.

Crédito: foto cortesia de Ashoka

Até algumas décadas atrás, as crianças latino-americanas cresciam em um mundo muito diferente. Na infância de Carolina Nieto, seis a 12 filhos de uma família compartilhavam quase tudo, da comida à televisão. A competição individual existia, é claro, mas era muito menos importante. Nossos jogos eram organizados por rodadas ou turnos, sem vencedores ou perdedores; por exemplo, jogávamos quemados, uma versão de queimada em que cada jogador pegava uma bola e tocava ou “queimava” outro jogador, que, por sua vez, pegava a bola para “queimar” o próximo participante, e assim o jogo continuava, todos jogando juntos.

Hoje em dia, predomina a dinâmica do “quem chegar primeiro, ganha”. O vencedor é aquele que tem mais, e não estamos falando só sobre jogos. Nos referimos a coisas sérias, que criam desigualdades econômicas ou sociais e também oportunidades educacionais. Em um mundo de campeões e perdedores – mas, acima de tudo, de indivíduos –, todos querem saber de que lado da “quadra” estão.

Existe uma maneira de trazer de volta um senso mais colaborativo de como jogamos esse jogo? Mais do que uma lembrança, será que a colaboração pode ser o tipo de conhecimento que nos ajudará a avançar no século 21? Nem sempre preferimos a individualidade

É simples medir quando alguém chega em primeiro lugar – ou em último. O indivíduo se destaca como uma unidade paradigmática. Será que o mundo está se tornando um lugar em que o “eu” passa por cima do “nós”? Parece que sim. Há registros de que isso tem ocorrido ao redor do mundo por mais de meio século. O estudo “Global Increases in Individualism”, publicado pela revista Pshychological Science, identifica que o aumento do individualismo, tradicionalmente associado a países ocidentais, pode ser um fenômeno global.

Para compreender melhor a transição do coletivo para o individual, este estudo distinguiu entre “práticas” e “valores” individualistas. Por um lado, as ”práticas” estão relacionadas às decisões de vida das pessoas, como número de indivíduos com quem se compartilha a moradia, o percentual de adultos e de idosos com mais de 60 anos que vivem sozinhos e a proporção de pessoas divorciadas e separadas em relação às casadas. Por outro lado, os “valores”, referem-se a crenças estabelecidas. Entre elas, os pesquisadores analisaram a importância percebida dos amigos em comparação com a família, a relevância de educar as crianças para serem independentes e a preferência pela autoexpressão e liberdade de opinião acima de outros compromissos sociais.

Desde 1960, os resultados mostraram um padrão claro de aumento do individualismo global, com um crescimento de aproximadamente 12%. Apenas quatro países (Camarões, Malawi, Malásia e Mali) indicaram uma diminuição significativa nas práticas individualistas, e somente cinco (Armênia, China, Croácia, Ucrânia e Uruguai) em valores individualistas. Fatores socioambientais, como desastres, epidemias e crises climáticas, estiveram relacionados a esse fenômeno, mas o desenvolvimento socioeconômico foi o principal a impulsionar esse aumento ao longo do tempo. Dessa forma, fica fácil perceber o valor construído em torno da competição individualista, especialmente no aspecto econômico. Nas últimas décadas, observamos a evolução do paradigma da infância de Carolina para um que celebra o individualismo acima da cooperação. Na escola, ensina-se a se destacar como o “melhor aluno” ou “a melhor atleta”. Na vida adulta, essa mentalidade é transportada para o mercado de trabalho, onde se busca ser “a maior”, “a melhor” ou “a única” empresa a produzir determinado produto ou oferecer um serviço.

Seguir ampliando esse paradigma nos leva a países e territórios que sustentam conflitos armados, ou a sociedades polarizadas por decisões que afetam a vida pública. À medida que o mundo reforça a competição e as capacidades individuais, a desconfiança pode se tornar sistêmica e afetar a disposição para resolver crises.

 

Os desafios que enfrentamos

Herdamos um mundo que reforça a competição e as habilidades individuais. A tensão entre a necessidade de manter a liberdade per capita e o risco de continuar com sociedades menos colaborativas gera efeitos não intencionais, como desigualdade econômica e falta de habilidade para inovar ou mediar conflitos.

A desconfiança torna-se sistêmica quando permeia a disposição para resolver crises. O Instituto para Economia e Paz, responsável pela elaboração do Índice Global da Paz 2023, constatou que 52% dos mexicanos acreditavam que seu país estava muito ou extremamente dividido, e que 65% achavam improvável que o México superasse essa polarização. Em escala global, o Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial identifica que, em 2024, a polarização social ou política era a terceira categoria de risco mais importante. Parece que as sociedades polarizadas tendem a confiar muito mais em informações, verdadeiras ou falsas, que confirmem suas crenças, do que no testemunho de seu vizinho.

Se os valores individualistas são sustentados pela autoexpressão, faz sentido que alguns governos e plataformas não ajam de forma eficaz para conter informações falsificadas e conteúdo prejudicial. As consequências são notáveis e estão relacionadas entre si: conflitos armados, violações dos direitos humanos, incluindo o direito à educação e, claro, a formação de comunidades.

Esses dados podem ser traduzidos em perguntas mais detalhadas. Vamos pensar: o que colocamos em risco para nos destacarmos como pessoas? Nosso bem-estar? Nossa saúde? Tempo de qualidade com nossos entes queridos? Ou o bem-estar dos outros? Com que frequência a empatia aparece em nossas vidas diárias? Quanto assumimos liderança compartilhada e quanto trabalhamos de forma colaborativa? Acreditamos que a criatividade é algo mais autoral ou estamos prontos para assumi-la como algo comunitário?

Virando o mundo de cabeça para baixo

A comunidade internacional tem demonstrado interesse em promover uma economia social e solidária (ESS) para o desenvolvimento sustentável. Adotada durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em 2023, a resolução A/77/L.60 define ESS como “empresas, organizações e outras entidades envolvidas em atividades econômicas, sociais e ambientais de interesse coletivo ou geral, que se baseiam nos princípios de cooperação voluntária e ajuda mútua, governança democrática ou participativa, autonomia e independência, e a primazia das pessoas e do propósito social sobre o capital” (Nações Unidas, 2023). Embora seja relativamente recente, a ESS já reportou uma contribuição de 7% do Produto Interno Bruto em nível global desde 2017, onde as associações civis, cooperativas, fundações e empresas sociais são mais ativas (OCDE, 2020).

Nesse sentido, estima-se que investir no desenvolvimento de habilidades voltadas para a solução colaborativa de problemas poderia acrescentar US$ 2,54 trilhões ao PIB global. Então, qual seria o benefício monetário, social e ambiental do avanço da Taxonomia da Educação 4.0, que baseia seu projeto em habilidades de cidadania global, como relações interpessoais, colaboração e aprendizagem acessível, inclusiva e personalizada ao longo da vida? (Fórum Econômico Mundial, 2022). Não sabemos. No entanto, o Unicef estima que metade das crianças e dos jovens do mundo não tem condições de desenvolver essas habilidades. Esse é um desequilíbrio que Bill Drayton, fundador da Ashoka, chamou de “a nova desigualdade”. Nivelar as oportunidades para que cada pessoa seja um agente de mudança colaborativa em suas comunidades é uma prioridade estratégica.

 

A comunidade de coliderança da Ashoka

Eu, Carolina, conheci a Ashoka em 2004, quando fui escolhida como Fellow de sua Rede de Empreendedores Sociais. Lá, aprendi a dialogar com pessoas de diferentes setores para entender os problemas e encontrar soluções, sempre colocando o bem comum no centro. Conheci pessoas com empatia e dispostas a chegar a acordos ou definir estratégias conjuntas e, acima de tudo, outra forma de medir o sucesso por meio do impacto social, um caminho que se alcança por meio da colaboração. Aprendi que é preciso uma comunidade inteira para promover mudança.

Embora a Ashoka não seja uma organização educacional em si, ela tem uma grande capacidade de catalisar transformações na educação e posicionar um novo paradigma na sociedade, fortalecendo a colaboração entre diferentes setores. Promovemos alianças estratégicas com pessoas e instituições do sistema educacional que são especialistas em seu próprio campo, bem como com aqueles que promovem a visão de um “Mundo de Agentes de Mudança”: estudantes, professores, escolas, universidades, organizações educacionais, secretarias públicas de educação e meios de comunicação.

Desde 2019, a área de Crianças e Jovens da Ashoka México, América Central e Caribe, liderada por Brenda Villegas e patrocinada pela Fundação MetLife por meio de sua diretora de sustentabilidade, Nalleli García, tem desenvolvido a iniciativa Comunidade Colíder. Ela é composta por mais de 30 organizações e instituições públicas e privadas focadas em criar as condições necessárias para que crianças e jovens pratiquem habilidades transformadoras, como empatia, trabalho colaborativo, liderança compartilhada e criatividade para resolver problemas. Esses objetivos são atingidos por meio da colaboração para estabelecer redes, programas e monitoramento intersetorial que multiplicam o impacto de sua inovação social.

Em resumo: como podemos reconstruir a participação e a confiança dos indivíduos na colaboração para lidar com situações globais?

Partir da base da coliderança facilita três vias de ação para promover um mundo de agentes de mudança desde a infância. Essas ações podem servir como recomendações para tomadores de decisão na educação, na vida pública ou nos negócios:

Acelerar a inovação | Significa garantir que as melhores inovações locais, com potencial para revolucionar indústrias e sistemas, sejam reconhecidas e possam multiplicar seu impacto.

Por exemplo, dentro da Comunidade de Colíderes da Ashoka, o foco está na formação de agentes de mudança que enfrentem e resolvam problemas socioambientais, em vez de aumentar o número de matrículas nas escolas. Desde antes da pandemia de covid-19, foram criados grupos de trabalho para dar visibilidade ao papel de alunos, professores e instituições como agentes de mudança. A comunidade foi tecida para torná-la participativa em um esforço para construir a visão de uma educação transformadora, inovadora e transcendente. Ao conhecer as aprendizagens e os cenários que queríamos enquanto comunidade, foram identificadas boas práticas educativas que cada instituição e organização implementou nos seus espaços. Em seguida, compartilhamos essas práticas com o público, como também fizemos com as histórias de jovens e professores inspiradores. Criamos um espaço onde as instituições são orientadas para o futuro e promovem a ação coletiva centrada nas pessoas com base em um sistema de codireção, características desejáveis para garantir o desenvolvimento e a integridade humana (Pnud, 2024).

Impulsionar uma educação transformadora | Envolve identificar e acompanhar as principais escolas e universidades para marcar uma nova cultura educacional com métodos, padrões de aprendizagem e sucesso baseados na empatia e na agência de mudança.

Comunicar não só os resultados, mas também as preocupações, necessidades e obstáculos, é vital em qualquer estratégia que vise mudar o paradigma. É por isso que existem os Encontros Interuniversitários da Comunidade Colíder, de periodicidade anual – o mais recente em maio de 2023 – além de videoconferências mensais. Lá, a competição entre marcas é adiada para enfrentar desafios juntos. As instituições podem optar por incorporar a agência de mudança em seus planos curriculares, abrir papéis estratégicos para moldar e sustentar ecossistemas sociais para inovação de impacto, redefinir seus indicadores para focar na qualidade do envolvimento social ou promover maior participação da comunidade educacional na tomada de decisões e governança. Cada experiência, contada por representantes desta ou daquela instituição, é igualmente valiosa. O fórum de conversa é aberto e, como dissemos no início, todos se revezam neste jogo. Ninguém ganha, ninguém perde. Todos nós jogamos; é isso que importa.

No final das contas, trata-se de adicionar perspectivas para apresentar novos pontos de vista sobre os desafios que podem ser enfrentados coletivamente, o que envolve alunos, professores, funcionários administrativos e gestores como possíveis solucionadores, possibilitados pela empatia, trabalho colaborativo, liderança compartilhada e criatividade para resolver problemas. O sucesso é medido pelo trabalho em conjunto, indivisível.

Mudar a conversa | É fundamental identificar e acompanhar fontes confiáveis de informação para ajudar a sociedade a se sentir bem com as questões complexas e multifacetadas relacionadas à agência de mudança.

Por exemplo, o repertório de boas práticas educacionais da Ashoka é composto por atividades que podem ser replicadas em diferentes contextos. São de acesso gratuito, contribuídos por membros da Comunidade Colíder e patrocinados em conjunto com a Fundação MetLife e em colaboração com o Instituto para o Futuro da Educação. As mais de 50 ferramentas e metodologistas seguem critérios de interculturalidade e inclusão, colocam as pessoas no centro da aprendizagem, promovem a sustentabilidade e incentivam o desenvolvimento do pensamento autoconsciente e comunitário. Mais de 1.800 professores já estão equipados com essas ferramentas, e sua ampliação para os seis subsistemas de ensino médio no Estado do México será possível graças à coliderança com a subsecretaria responsável por essa entidade. Essa é uma equipe de equipes.

Iniciativas semelhantes são o manual “Conhecendo a tempo. Metodologias para colaboração e intercâmbio de conhecimento”, do Banco Interamericano de Desenvolvimento; o Mapeamento de Boas Práticas em Educação Digital das Américas, da Organização dos Estados Americanos em conjunto com o ProFuturo e a Fundação “la Caixa”; e o projeto “A Aventura da Aprendizagem”, do EducaLab, criado com o apoio do Ministério de Educação, Cultura e Esporte do Governo da Espanha, que se baseia na colaboração interinstitucional para o desenvolvimento de protótipos sociais.

 

Queremos um mundo mais colaborativo?

A colaboração, mais do que uma teoria, é um modo de vida e um marco estratégico que envolve transformar nossa mentalidade e ações em direção a empatia, abertura e trabalho conjunto, pois rompe com a competição para unir forças em prol do bem comum. Diferentes iniciativas incentivam a interação entre diferentes atores, o que promove espaços onde a diversidade é valorizada e a escuta ativa é praticada. Nós nos esforçamos para mudar a forma como medimos o sucesso, valorizando as conquistas coletivas sobre as individuais e propondo novas formas de reconhecimento que reforcem a abordagem comunitária e solidária. Essa abordagem não apenas beneficiaria nossas comunidades, mas também poderia ecoar em nossos relacionamentos pessoais. Desde a educação dos mais jovens até os estágios profissionais, busquemos criar um impacto duradouro na sociedade ao promover uma mudança profunda em direção a uma maior colaboração e bem-estar coletivo.

OS AUTORES

Carolina Nieto é Fellow da Ashoka desde 2004 e atualmente atua como diretora-executiva dos escritórios da Ashoka em México, América Central e Caribe. Especialista em empreendedorismo feminino, possui 20 anos de experiência trabalhando com mulheres em áreas vulneráveis.

David Mayoral é embaixador de Yucatán junto à ONU no México e secretário-executivo do Conselho Nacional da Agenda 2030. Mestre em inovação educacional e empreendedorismo educacional, é líder em juventude e educação transformadora na Ashoka México, América Central e Caribe.



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