Mudando o jogo
Uma colaboração entre a Nike e o Tucker Center nos ensinou como manter garotas no esporte e tirar proveito de parcerias
Por Caitlin Morris e Nicole M. Lavoi
Para as crianças, brincar é algo inato e necessário; contudo, apenas uma em cada cinco pratica atividade física suficiente para crescer e se desenvolver bem. A pandemia de covid-19 limitou ainda mais o acesso das crianças a atividades físicas e esportes, agravando um problema que traz sérias implicações ao desenvolvimento, à saúde e ao bem-estar geral das crianças.
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Ele é ainda mais premente no caso das meninas, principalmente as de comunidades carentes e marginalizadas. Em comparação com meninos, cada vez menos elas praticam esportes, e a Organização Mundial da Saúde estima que mais de 75% das garotas de 11 a 17 anos não fazem a quantidade recomendada de atividades físicas. Estudos mostram que elas se envolvem com esporte mais tarde, desistem das atividades mais cedo e com mais frequência do que os meninos.
Para resolver esse problema, a Nike firmou uma parceria com o Centro de Pesquisa com Garotas e Mulheres Envolvidas com Esporte (Tucker Center) da Universidade de Minnesota. Após três anos de trabalho conjunto, criamos a Coaching HER, uma ferramenta gratuita, online, baseada em dados e global, a fim de instruir treinadores sobre como dar apoio a meninas nos esportes.
Pioneira no setor, a ferramenta pode ser usada por qualquer treinador de qualquer esporte e em qualquer nível. Usando dados obtidos junto a treinadores e meninas em todo o mundo, a Coaching HER se volta para elas, levando em conta a questão de gênero e o fato de que as garotas experimentam o mundo de maneira diferente, enfrentam obstáculos extras e são tratadas de forma distinta dos garotos apenas por serem meninas.
Essa experiência de trabalho conjunto nos ensinou muito sobre o potencial e os desafios de parcerias intersetoriais para abordar problemas sociais. Uma cocriação bem-sucedida depende da reunião de grupos diversos e complementares de especialistas, líderes do setor e comunidades locais, bem como da capacidade de tirar proveito dos pontos fortes de todos.
No processo de desenvolvimento da Coaching HER, identificamos cinco estratégias para o sucesso de nossa parceria e que podem servir como base para outras organizações em busca de colaborações similares.
Primeiro, descubra o problema e identifique seu principal ponto crítico | Os padrões de participação das meninas em atividades físicas e esportes suscitaram diversas questões que consideramos prementes. Por que elas não são tão ativas? Quais são os fatores sistêmicos que levam a maiores taxas de desistência de meninas? Como essas questões podem ser resolvidas?
Trabalho em conjunto
Para responder a essas perguntas, nos aprofundamos no problema. Em 2018, o Tucker Center produziu um relatório, “Developing Physically Active Girls: An Evidence-based Multidisciplinary Approach” (Criando meninas fisicamente ativas: uma abordagem baseada em dados multidisciplinares), que apresentou diversos fatores socioecológicos que afetam a relação e o envolvimento de meninas dos 11 aos 17 anos. A pesquisa analisou barreiras sistêmicas que vão desde crenças sociais a interações interpessoais, incluindo o relacionamento com treinadores, colegas e pais.
Uma tendência se mostrou clara: treinadores são a primeira e mais evidente influência. Ter pessoas da mesma identidade como exemplo é extremamente importante; porém menos de 24% dos treinadores jovens nos Estados Unidos identificam-se como mulheres. Para ajudar as meninas, é preciso que os treinadores criem ambientes acolhedores, compreensivos e seguros, principalmente quando elas atingem a puberdade. No entanto, infelizmente, muitos treinadores não têm preparo ou confiança para lidar com questões, como estereótipos e identidades de gênero e formas de apoiar necessidades singulares das meninas durante a prática de esportes.
Em segundo lugar, defina objetivos conjuntos claros | Desde o início, nosso objetivo principal era promover mudança sistêmica em prol de mulheres e meninas nos esportes, e sabíamos que, sozinhos, não atingiríamos nossas metas. Para determinar como preparar melhor os treinadores para que dessem apoio às meninas nos esportes, estabelecemos três objetivos para nortear nossa parceria. Primeiro, o trabalho se basearia em pesquisa, tiraríamos proveito das contribuições e dos pontos fortes organizacionais, e firmaríamos parcerias com organizações que estivessem igualmente empenhadas em causar impacto. Em segundo lugar, desenvolveríamos ferramentas baseadas em dados para treinadores e meninas com o intuito de ajudar a diminuir esterótipos de gênero e criar um ambiente positivo para elas nos esportes. Por fim, colocaríamos as ferramentas nas mãos de treinadores ao redor do mundo para mudar o ambiente não apenas para as meninas, mas também para eles mesmos.
Terceiro: impulsione as forças de ambos os lados | Uma parceria de sucesso entre a universidade e a indústria pode assegurar um processo de desenvolvimento rigoroso capaz de tirar proveito dos pontos fortes de todos os envolvidos. Os universitários oferecem perspectivas multidisciplinares e únicas sobre a indústria, além de acesso a uma rede de professores, líderes e pesquisadores das ciências sociais. Já as corporações podem oferecer recursos adicionais, experiência na criação de produtos e soluções para os clientes, influência de marca, além de um profundo conhecimento do mercado.
A cocriação e uma cultura de aprendizagem mútua são a espinha dorsal da Coaching HER. O compromisso global da Nike de fazer com que mais meninas participem dos esportes e permaneçam ativas vai ao encontro da atual pesquisa que o Tucker Center faz para promover mudanças significativas no campo esportivo para garotas e mulheres.
Essa parceria única contou com estudos sobre treinamento, desenvolvimento infantil, psicologia, gênero e sociologia do esporte, bem como com a experiência da Nike com treinadores por todo o mundo para testar, aprender, criar e distribuir manuais de preparação inovadores, que dão aos treinadores instrumentos para lidar com meninas de maneira eficaz, incluindo módulos que abordam a importância dos esportes para elas e as atitudes que os treinadores podem adotar para prepará-las para o sucesso na área. Líderes de impacto social em diversos setores devem avaliar suas próprias parcerias para assegurar que estão colaborando com organizações que complementam seus pontos fortes.
Em quarto lugar, atenção às diferenças geográficas | Ao longo de três anos, recebemos insights de treinadores e meninas em todo o mundo. Muitas vezes, iniciativas desse tamanho fracassam devido a suposições que podem fazer com que esse tipo de insight seja ignorado. A Coaching HER inclui as perspectivas de meninas ao redor do mundo a fim de que os treinadores possam ver o esporte através dos olhos das atletas que treinam.
Os feedbacks dos treinadores indicaram que as meninas eram comparadas, julgadas e avaliadas com base nos padrões dos atletas meninos, sendo descritas pelos treinadores como “diferentes deles” e, assim, vistas como inadequadas
Em março de 2021, o Tucker Center promoveu 21 workshops com meninas e treinadores em seis países diferentes –França, Japão, Índia, México, Reino Unido e Estados Unidos. Os dados foram coletados separadamente entre eles e elas, para garantir que seu feedback fosse sincero e refletisse sua experiência pessoal. Perguntou-se aos treinadores o que pensavam sobre as meninas, como as viam, avaliavam e treinavam. Por outro lado, garotas de diferentes origens foram indagadas sobre suas percepções acerca de seus treinadores e sobre as experiências que haviam tido com eles.
Todo o programa da Coaching HER se baseou nesses dados. Os pesquisadores do Tucker Center analisaram os resultados dos questionários e das entrevistas e, então, a equipe elaborou módulos de aprendizagem que combatessem pressupostos tendenciosos sobre treinar meninas.
Ouvimos de treinadores da Índia que as meninas acham que não podem jogar futebol por acreditarem que os meninos são sempre muito mais fortes. No México, os técnicos nos disseram que a cultura local reforça o machismo. Todos os módulos da Coaching HER contam com esses insights diretos e internacionais, a fim de que os treinadores possam escutar as vozes de seus pares e das meninas.
Ademais, os workshops pelo mundo revelaram que os treinadores muitas vezes dizem coisas que não consideram ponderamentos baseados nos gêneros, nas dinâmicas de poder e nas circunstâncias socioculturais. Os módulos da Coaching HER são conscientes da questão de gênero para que possam atender às necessidades específicas das meninas durante a prática esportiva.
Em quinto lugar, use dados e insights para vencer pressupostos | Através dos workshops, descobrimos insights que negavam suposições nossas. Por exemplo, firmamos essa parceria acreditando que os treinadores precisavam de instrução e ideias sobre como treinar meninas; a realidade, porém, mostrou-se mais variada e complexa. Os feedbacks dos treinadores indicaram que, normalmente, as meninas eram comparadas, julgadas e avaliadas com base nos padrões físicos e nas normas sociais e psicológicas dos meninos, sendo descritas pelos treinadores como “diferentes deles” – e, assim, vistas como inadequadas – no que diz respeito a confiança, agressividade, competitividade, voz e habilidades físicas.
Com base nesses dados, concluímos que nosso impacto maior viria se conseguíssemos dar aos treinadores uma ferramenta que os ajudassem a avaliar, reorientar e alterar padrões preexistentes quanto à capacidade atlética, os quais, muitas vezes, são inconsciente e involuntariamente influenciados pelo gênero. Nossas descobertas ajudaram a aprimorar a Coaching HER para que se tornasse uma ferramenta interativa e envolvente capaz de oferecer orientação sobre pressupostos de gênero, bem como técnicas de fácil aplicação para treinadores de meninas.
Um jogo de longo alcance
Embora a Coaching HER esteja disponível há apenas alguns meses, os resultados dos testes foram encorajadores e pretendemos manter nosso modelo de desenvolvimento colaborativo com vistas a promover mudanças institucionais. Usuários também nos deram feedbacks animadores.
“Pratiquei luta romana com meninos durante todo o ensino médio e me tornei treinadora bem na época em que a Carolina do Norte autorizou uma categoria feminina para o esporte”, conta uma treinadora de 20 anos que faz uso da Coaching HER. “Estou buscando descontruir métodos ou expressões que utilizo no treinamento; como cresci com treinadores e colegas do sexo masculino, às vezes, me pego adotando estereótipos de gênero que eram muito presentes quando eu estava no ensino médio.”
Mudanças levam tempo. Dar vida à Coaching HER levou três anos, e é preciso uma mistura de paciência e otimismo para promover a mudança geracional que almejamos. A forma como estabelecemos parcerias para incentivar o uso da ferramenta e a adoção institucional dessas normas será tão importante quanto nossa colaboração inicial para desenvolvê-la. Acreditamos que, por meio do poder da cooperação verdadeira, as organizações podem criar soluções e mudanças duradouras.