A emergência de relações que possibilitam mudanças sistêmicas
Como estamos dialogando com o trabalho relacional no ecossistema de impacto brasileiro: desafios e perspectivas.
Por Cássio Aoqui, Tiana Vilar Lins e Vanessa Prata, do Labô
Nas bordas a leste da maior cidade do hemisfério Sul – São Paulo –, um coletivo de mulheres se reúne em torno de uma mesa para produzir cosméticos naturais. Entre ervas que suas avós usavam como remédios e batuques animados, aos poucos, temas como racismo e abuso de crack vão se desvelando nas conversas conforme pomadas, sabões e escalda-pés ganham formas, cores e aromas.
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A centenas de quilômetros dali, nas franjas a oeste da mais famosa cidade brasileira no mundo – o Rio de Janeiro –, são pedaços de pano, das mais diversas cores e estampas, que ganham contorno em colchas cerzidas, enquanto assuntos como conflitos com filhos e violência doméstica vão se costurando em “círculos de cura” a partir da escuta coletiva.
Em comum, ambas as organizações são coletivos não institucionalizados (por escolha, mas que em breve terão CNPJ para “se adequar” ao sistema), conduzidos por mulheres pretas e periféricas, cujos trabalhos se dão com base em apoio mútuo no território, com olhares e abordagens emergentes, integradas, profundamente relacionais.
“Nosso método é o afeto, o olho no olho, a música. São os valores afrocivilizatórios brasileiros, baseados na circularidade, no axé, na musicalidade, na cooperação”, conta a educadora popular e enfermeira baiana Leila Rocha, cofundadora da Ilera – Ancestralidade e Saúde, atualmente sediada no bairro paulistano de Guaianases.
Não à toa, o termo ilera, de origem iorubá, está associado à saúde e ao cuidado, ao compartilhamento e ao acolhimento. “A ideia é cuidar da saúde como nossas mães e avós cuidavam, com base no conhecimento de matrizes negra e indígena, uma saúde integral a partir de nossos ancestrais”, diz Leila.
Rituais também são parte importante do coletivo Mulheres de Pedra, no bairro carioca de Pedra de Guaratiba: as mulheres começam as oficinas em roda entoando um canto de jongo, dança de origem africana, em que pedem “licença” aos antepassados para entrar na casa, independentemente da religião de cada uma. E, de retalho em retalho, as colchas cosidas na casa centenária foram se tornando artefato visível de um processo de trabalho coletivo, conexões autênticas, abertura para novos olhares e desenvolvimento do potencial de cada pessoa, entremeados pelas relações artísticas.
“É sobre o individual valorizando o coletivo e o coletivo valorizando o individual. É sobre ter resistência, potencialidade, é acreditar num mundo melhor que depende de mim e do outro. É acreditar muito no outro”, resume a pedagoga e também educadora popular Leila de Souza Netto, coordenadora do coletivo.
Cada qual em seu território, as Leilas talvez representem duas entre milhares de vozes de um fenômeno emergente e cada vez mais potente no Brasil: o de coletivos e organizações legitimamente criados e conduzidos por representantes de grupos historicamente marginalizados. Não que o fenômeno da ação coletiva seja novo – basta lembrar os movimentos sociais por direitos e luta pela redemocratização dos anos 1970 e 80, as iniciativas de economia solidária em todo o país, ou ainda os próprios quilombos.
Porém, do lugar privilegiado de quem trabalha com fortalecimento institucional e apoia a conexão entre quem detém recursos – sobretudo financeiros – e quem encampa esforços de mudança social nos territórios, nas duas últimas décadas temos acompanhado uma série de movimentos e tendências no campo. Talvez nenhum com tamanha capacidade de se efetivar e ressignificar as estruturas da sociedade civil no tocante ao enfrentamento das desigualdades sociopolíticas, culturais e econômicas como a desses coletivos.
Isso porque, a nosso ver, tais coletivos e organizações propõem uma mudança radical – na raiz – que contraria modelos mentais hegemônicos e o status quo do campo como um todo. A começar de quem parte a ação, em geral pessoas colocadas no lugar de beneficiárias, quando deveriam ser agentes centrais nas transformações socioambientais pelo amplo conhecimento das questões locais e contextuais e das possíveis melhores soluções para elas.
Na forma, partem também do trabalho relacional profundo, ao criar espaços de confiança e cura coletiva, para então tecer, de dentro para fora (e de fora para dentro), a transformação territorial com os mais diversos agentes envolvidos, geralmente em espaços marcados tanto por exclusões, traumas e violações de direitos como por narrativas únicas e potencialidades múltiplas.
“Temos olhares singulares oriundos de experiências interseccionais que produzem saídas únicas para as adversidades cotidianas. Temos uma metodologia radical e inovadora de geração de impacto que busca resgatar práticas ancestrais de valorização de nossas redes e comunidades, de salvaguardar nossa memória com o resgate e a construção do conhecimento”, atesta Aline Odara, cofundadora do Fundo Agbara. Primeiro fundo de mulheres negras do Brasil, nascido de práticas de filantropia negra e comunitária, o Agbara tem como missão a promoção do acesso a direitos econômicos a mulheres negras.
Essas são hipóteses que trazemos de forma exploratória, a partir de nossas próprias vivências, reflexões e aprendizados. Sobretudo ao longo dos últimos cinco anos em que vimos florescer e acompanhamos de perto mais de uma centena de iniciativas dessa natureza.
Esse modo de viver – e de produzir mudança social – sempre existiu por aqui, desde antes do domínio colonizador. Em São Paulo, há mais de 15 anos vemos os esforços hercúleos d’A Banca (ver “Em Busca do Empreendedorismo Social Inclusivo”, na edição 1 da SSIR Brasil); as próprias Mulheres de Pedra têm quase um quarto de século.
Entretanto, partimos do pressuposto de que o momento dá pulso ao movimento, com iniciativas emergentes germinando como nunca, por razões tão variadas quanto complexas – de acessos a direitos básicos como renda, educação e tecnologia que se ampliaram nas últimas décadas ao, paradoxalmente, aumento das desigualdades e precarização do trabalho, além de fatores que possivelmente passam, no curto prazo, pela pandemia; por mudanças geracionais no médio prazo e, no longo prazo, por uma transição maior no nível ontológico que acreditamos (ou esperamos) estar vivendo.
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