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Mudando sistemas? Então desacelere…

Não se corrigem os problemas sociais de forma rápida e simples aplicando uma lente sistêmica. Ao contrário, ela nos força a ir com mais cautela ao revelar uma dinâmica complexa dos sistemas.

Por Christian Seelos

Ilustração de Alex Kiesling

Neste mundo não existem Robisons Crusoés. Nossa vida está toda conectada. Vivemos em família, em comunidades, em organizações, em sistemas de transporte, educacionais, políticos, de saúde. Embora isso possa parecer óbvio, só recentemente as organizações filantrópicas começaram a adotar de forma explícita abordagens sistêmicas em seu trabalho. Mas o que significa se engajar nesse movimento?

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O trabalho sistêmico procura resolver os problemas sociais ao promover mudanças duradoras e significativas no sistema no qual os problemas ocorrem, o que demanda pensar na arquitetura causal. Para reformar um sistema é preciso antes entender os processos causais que o constituem e, então, transformá-los.

Isso não é fácil. Não há mágica nem varinha de condão para mudar sistemas. Mas investir numa perspectiva de sistema pode valer a pena. A reflexão profunda sobre sua arquitetura reduz nossa tendência de adotar de forma prematura soluções ineficazes ou até piorar a situação. E nos faz empregar os recursos mais produtivamente. Tornamo-nos mais realistas a respeito do tempo necessário para abordar os problemas e mais humildes e dispostos para explorar e aprender, em vez de basear as decisões na pressuposta superioridade do nosso conhecimento, tecnologias e estratégias.

sistemas

O trabalho sistêmico oferece às organizações a oportunidade de repensar abordagens e atualizar ações e dá aos gestores melhores argumentos para assumir compromissos de longo prazo com beneficiados. Além disso, não procura soluções, mas ajuda a descobrir e abrir caminhos locais para mudança num ritmo condizente com nossa capacidade de aprender e que as comunidades possam adotar e absorver. A seguir, apresentamos um esboço de alguns caminhos práticos para adotar perspectivas de sistemas em organizações que desejam tornar seu trabalho filantrópico mais efetivo.

 

Princípios Para o Pensamento Sistêmico

 

O campo da filantropia pode se entusiasmar com o pensamento sistêmico, mas, como é praticamente impossível delinear as fronteiras dos sistemas sociais, acaba revelando uma certa confusão sobre sistemas, perspectivas de sistemas e suas reivindicações de objetividade. Quando pensamos nos sistemas como totalidades relevantes, como em geral ocorre, chegamos facilmente a todo o Universo: de alguma forma, tudo está conectado. Qualquer contexto do problema sofre influência e está relacionado a outros problemas, situações e sistemas, e assim nossa investigação aumenta a ecologia de questões e definições de problemas, como afirma o cientista social Werner Ulrich, “até o ponto de poder englobar Deus e o Mundo”. Essa não é certamente uma abordagem muito prática. Para pensar de forma sistêmica é preciso que os limites definidos sejam determinados não só pelo contexto do problema discutido, mas também por nossos interesses e necessidades.

Outro exemplo comum de confusão ocorre com a modelagem “objetiva” de sistemas em sofisticados mapas. Os seres humanos interpretam e vivenciam o mesmo sistema de formas muito diferentes. As motivações para mudança ou manutenção do status quo também variam muito. Em suma, não é possível mapear nenhum sistema objetivo ou realidade. Os mapas podem ajudar os grupos a articular diferentes visões e propor hipóteses, mas não valem muito quando sua sofisticação visual induz sentimentos de profunda compreensão e controle que alimentam um excesso de confiança ingênua. A complexidade desses diagramas pode ser avassaladora para aqueles que não estão envolvidos no contexto. Em 2009, quando o general americano Stanley A. McChrystal olhou para um primoroso mapa de sistema da situação social no Afeganistão, ele fez um comentário que se tornou famoso: “Quando entendermos esse slide, venceremos a guerra”.

Uma perspectiva de sistema é útil quando inclui a percepção de que as pessoas interpretam situações e problemas de formas distintas e sabem o que podem e devem fazer para resolvê-los. Relaxar quanto à suposição de que os sistemas existem objetivamente no mundo real já representa um grande passo. O progresso decorre de pensar os problemas sociais de uma forma sistêmica que não privilegie nossas perspectivas tendenciosas. “Uma abordagem de sistemas começa quando passamos a ver o mundo pelos olhos dos outros”, observa o influente teórico de sistemas C. West Churchman.

Essas confusões não são novas. As abordagens sistêmicas atravessaram um período turbulento no último século. Os cientistas as adotaram depois de se frustrarem com as limitações das propostas e práticas analíticas tradicionais. Infelizmente, o atual estado da ciência de sistemas é preocupante. A pesquisa se ramificou em uma série de iniciativas difíceis de reconciliar. Os pesquisadores desenvolvem suas perspectivas isoladamente, quase sem contato uns com os outros, o que dificulta o entrosamento de suas descobertas. Há 50 anos, um dos pioneiros em sistemas, o biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy, expressou sua frustração com o estado da prática de sistemas:

Se alguém analisasse as definições atuais e as palavras da moda encontraria “ sistemas” bem no topo da lista. O conceito se espalhou por todos os campos da ciência e se fixou no pensamento popular, no jargão e na mídia de massa. […] nos últimos anos apareceram profissões e empregos que […] receberam nomes como design de sistemas, análise de sistemas, engenharia de sistemas. […] Os profissionais que atuam nessas funções são os “novos utopistas” do nosso tempo […] em ação criando um “Mundo Novo”, admirável ou não.

 

“As perspectivas de sistema nos levam a adiar a busca por soluções. Mas, por outro lado, nos encorajam a investir mais tempo e esforço.”

 

Essa avaliação poderia servir de alerta para a empolgação atual pelas abordagens sistêmicas no campo da filantropia. Dado o estado da pesquisa de sistemas, alguém poderia se perguntar qual deveria ser a base de conhecimento para habilitar as organizações a assumir o compromisso de mudar os sistemas.

Para fundamentar as abordagens de sistema no conhecimento contextual, alguns teóricos propõem que, dependendo de suas características, diferentes sistemas garantem diferentes tipos de perspectivas de sistema e de trabalho de sistema. Seria essa uma perspectiva útil? A seguir, apresentamos uma classificação dos tipos disponíveis de abordagem sistêmica.

 

Quatro Perspectivas de Sistemas

 

Quando utilizam o termo “sistema” em filantropia, a maioria dos teóricos e profissionais de sistemas faz duas grandes distinções. A primeira é entre a perspectiva de sistemas rígidos (hard systems) versus sistemas flexíveis/críticos (soft/critical systems). Essa distinção destaca as diferenças nas premissas que adotam e na forma como tratam problemas bem estruturados e pouco estruturados.

  • A abordagem de sistemas rígidos trata os sistemas como entidades reais com contornos bem definidos que podem ser analisados objetivamente e melhorados com conhecimento e tecnologias disponíveis para atingir objetivos bem fundamentados. Além disso, procura melhorar o desempenho de um sistema numa dimensão específica. Os recursos externos e as soluções são fornecidos por coalizões de atores poderosos.

  • Na abordagem de sistemas flexíveis/críticos, os sistemas são tratados como formas de pensar e refletir sobre imagens subjetivas que as pessoas têm sobre situações sociais e os problemas detectados. Essa perspectiva procura explorar diferenças em propósitos, poder e voz; em opiniões sobre o que constitui uma melhoria; e na avaliação da adequabilidade das soluções. Até pessoas ou pequenas organizações podem mobilizar recursos locais e trabalhar com um sistema.

A segunda distinção é entre sistemas orgânicos versus sistemas projetados:

  • Os sistemas projetados se referem a entidades configuradas instrumentalmente para atender a um propósito específico. São exemplos: força-tarefa, organizações, sistemas funcionais, como sistema jurídico, educacional e de saúde, e mecanismos de governança.

  • Os sistemas orgânicos incluem aglomerados sociais, pessoas que ocupam um espaço social ou geográfico que se relacionam como resultado de processos informais sociais e históricos. Famílias, comunidades, grupos étnicos, vilas e sociedades, por exemplo.

Essa classificação aproximada pode ser um guia útil em estudos futuros. Em um artigo complementar, disponível no site do Centro de Filantropia e Sociedade Civil da Stanford University (Stanford PACS, na sigla em inglês), incluí uma década de pesquisa de campo que realizei com importantes empreendimentos sociais em países em desenvolvimento e apresento exemplos desses quatro arquétipos. No entanto, o Laboratório de Inovação Global de Impacto do PACS, do qual sou codiretor, também aprende com iniciativas contemporâneas como a Co-Impact, uma colaboração global de financiadores e parceiros do programa. Em janeiro de 2020, a Co-Impact anunciou um ambicioso projeto de US$ 80 milhões em doações para apoiar iniciativas arrojadas de mudança sistêmica ao longo de cinco anos em educação, saúde e oportunidades econômicas para cerca de 9 milhões de pessoas de toda a África, sul da Ásia e América Latina. Embora não reflita a complexidade das abordagens, a categorização a seguir serve para ilustrar as diferentes hipóteses dos quatro arquétipos e pode facilitar a reflexão sobre as semelhanças e diferenças entre várias iniciativas de mudanças de sistemas contemporâneas nos próximos anos.

Perspectivas de Sistemas Rígidos

 

Acadêmicos de sistemas contemporâneos defendem que as abordagens dos sistemas rígidos fazem sentido em situações caracterizadas por problemas bem compreendidos. Quando os stakeholders com poder de tomada de decisão concordam sobre o problema, sobre o que significa sucesso e sobre a efetividade e objetivos de uma solução proposta, pode-se aplicar essa abordagem como um modelo promissor para a ação.

Perspectivas de sistemas rígidos projetados | A Co-Impact apoia a Teaching at the Right Level Africa (TaRL), iniciativa que pretende melhorar o desempenho educacional em países africanos com o aprimoramento das habilidades de leitura e matemática básica de crianças do terceiro ao quinto ano do ensino fundamental. A TaRL faz um recorte nítido ao focar em uma habilidade e uma faixa etária específicas. Muitos stakeholders reconhecem o problema persistente do baixo rendimento escolar das crianças e concordam sobre os objetivos e métodos para melhorar essas habilidades. Os avanços no desempenho em matemática e leitura podem ser avaliados com precisão. A Pratham, a ONG indiana pioneira na aplicação do modelo TaRL; o laboratório Abdul Latif Jameel Poverty Action, que testou a teoria da mudança da Pratham em avaliações aleatórias; e um conjunto de financiadores pretendem apoiar os governos e parceiros locais a implementar uma abordagem já testada. Desenvolver um plano detalhado com recursos predeterminados e marcos de desempenho faz parte dessa abordagem.

Outro exemplo é o Projeto ECHO da Índia, que implementa um modelo já testado para melhorar o sistema de saúde no país, que faz a conexão entre médicos especialistas e profissionais de saúde da linha de frente por meio de tecnologias de vídeo. Como a TaRL, o ECHO se baseia em um modelo de programa existente que incorpora a expertise desenvolvida no Novo México, onde o projeto surgiu, em 2003. Até agora o ECHO está presente em 37 países. A iniciativa estabelece logo no início objetivos bem fundamentados que pretende atingir para melhorar o sistema de saúde. O ECHO traça um contorno claro em torno de uma série de problemas de saúde e locais com infraestrutura tecnológica adequada e investe somente os recursos necessários para atingir seus marcos preestabelecidos.

Perspectivas de sistemas rígidos orgânicos | Duas guerras civis e um surto do vírus Ebola deixaram comunidades na Libéria sem assistência médica. O programa de Assistência de Saúde de Comunidades da Libéria (LCHAP) colabora com o governo do país treinando profissionais de saúde para trabalhar como uma alternativa para implementar o sistema de saúde formal. Cada comunidade representa um sistema social concreto e a principal participação do LCHAP é fornecer os recursos específicos e garantir um compromisso sólido e o consenso de stakeholders poderosos. Como a iniciativa padroniza os procedimentos em cada comunidade, ela poderá mais tarde integrar seus participantes ao sistema de saúde formal. O LCHAP também ressalta que, em geral, é mais fácil criar um novo sistema do que mudar um já existente.

No setor de filantropia, é mais atraente adotar perspectivas de sistemas rígidos talvez por estarem mais alinhadas com importantes crenças e tendências ocidentais, como usar expertise para resolver problemas e empregar estratégias e planos formais com objetivos predeterminados. No entanto, até mesmo sistemas de saúde maduros mostram diferenças marcantes na visão de médicos, enfermeiros, pacientes, governos, investidores e contribuintes. Os stakeholders podem discordar sobre se de fato existem os problemas ou qual é o mais importante, ou podem concordar com o problema mas discordar das causas e soluções, ou ainda concordar ou não sobre quem deve se encarregar das melhorias e como avaliar o progresso ou sucesso. Se, ao focar num aspecto do sistema, os esforços filantrópicos forem bem-sucedidos, stakeholders poderosos podem exigir uma redefinição dos limites do impacto e incluir outros aspectos do sistema. Ou, como ilustra a experiência da Pratham na Índia, melhorar um aspecto do sistema educacional pode aumentar ainda mais as expectativas dos stakeholders. Apesar do enorme sucesso e crescimento da Pratham, as habilidades gerais de leitura e matemática das crianças da Índia rural mostraram um declínio na última década. Associar equivocadamente a Pratham a essa falta de impacto no sistema educacional pode criar tensões com o governo.

As iniciativas que se baseiam em premissas de sistemas rígidos são sensíveis até aos mínimos desvios de suas premissas, sobretudo quando as estratégias e as expectativas dos financiadores são formalizadas em planos claros que, se malsucedidos, podem restringir caminhos alternativos de ação. Grandes mudanças podem exigir uma transformação mais profunda da arquitetura do sistema para reduzir sua tendência de recriar os mesmos problemas – um argumento defendido por Russell Ackoff, influente teórico de sistemas. Os implementadores podem então descobrir que a abordagem de sistema flexível – que, por design, trabalha com vários objetivos e tensões divergentes – poderia ter sido a mais eficiente, apesar de ser mais lenta e menos previsível.

As perspectivas de sistemas rígidos aparentemente foram as mais adequadas para projetar sistemas técnicos para atingir objetivos claros e observáveis: armas, motores, circuitos elétricos, sistemas modernos de água e esgotos. Infelizmente, a maior parte dos problemas sociais não se encaixa nesse modelo, e conceituados teóricos de sistemas já sugeriram abandonar as perspectivas de sistemas rígidos.

 

Perspectivas de Sistemas Flexíveis/Críticos

 

Uma abordagem flexível ou crítica se fundamenta na ideia de que os sistemas constituem situações multifacetadas, dinâmicas e impossíveis de entender pela simples observação. Os envolvidos nesse sistema têm diferentes visões de mundo, prioridades, vulnerabilidades, preferências, poder e objetivos. Aspectos importantes dos sistemas podem não ser observáveis. Os limites das questões envolvidas devem ser discutidos e negociados. Aprender junto é muito mais importante que aplicar e aumentar conhecimento e expertise já existentes. Por isso, essas situações são muitas vezes chamadas “desorganizadas” ou “perversas”.

Frustrado com a inadequação das abordagens de sistemas rígidos, o especialista em gestão Peter Checkland se empenhou no desenvolvimento de métodos de sistemas flexíveis que propõem metas mais modestas. Ele recomendou fazer perguntas do tipo: podemos criar situações alternativas em que pessoas com diferentes papéis, status e preferências possam conviver, mesmo se essas situações não forem ideais de seu ponto de vista? Podemos projetar mudanças que sejam técnica e culturalmente factíveis e que não provoquem resistência que impeça o progresso? Os pesquisadores Michael Jackson e Werner Ulrich, entre outros, extrapolaram os métodos dos sistemas flexíveis para situações caracterizadas por conflitos. Suas perspectivas de sistemas críticos focam principalmente em considerar as pessoas menos favorecidas como cidadãos que precisam ser capazes de participar efetivamente das decisões que os afetam. As perspectivas críticas procuram dar voz aos marginalizados e silentes e balancear essas desigualdades com decisões pragmáticas para trabalhar com garra e fazer o que se sente que é justo, e não procurar criar uma “utopia na qual não haja desigualdades”.

Perspectivas de sistemas flexíveis/críticos projetados | A Sekem, organização fundada em 1977 que acompanhei durante quinze anos, é um bom exemplo desse arquétipo. Para enfrentar problemas ambientais e sociais do Egito, a Sekem criou uma comunidade aberta na qual as pessoas podiam ver e vivenciar por si mesmas uma realidade diferente para poder, lentamente, formar uma opinião a respeito de futuros alternativos e refletir coletivamente – em um ambiente seguro – sobre sua própria vida, sobre normas e hábitos que contribuem para a desagregação social. A Sekem possibilitou às pessoas que expressassem sua individualidade, deliberassem sobre seus problemas e ambições e formassem um consenso sobre como se relacionar com outras pessoas e com o ambiente natural. Com o tempo, a comunidade formada já contrastava claramente com a complexa realidade do Egito – o sistema que a Sekem pretendia transformar. Atualmente, a Sekem atua como um espelho que mostra ao país que ela pode oferecer um futuro desejável e com novas possibilidades. Sua visão arrojada tornou-se um símbolo bem-vindo de orgulho e ambição contra um pano de fundo de pessimismo e desesperança no restante do Egito.

Perspectivas de sistemas flexíveis/críticos orgânicos | A Co-Impact apoia uma iniciativa liderada pela JEEViKA para treinar famílias vulneráveis em Bihar, na Índia, a se envolver em atividades comerciais nas comunidades rurais com a aplicação da abordagem de graduação, um modelo de desenvolvimento preestabelecido para lidar com a extrema pobreza. A pesquisa de meu laboratório no vilarejo rural de Odisha, na Índia, revela um ambiente no qual as pessoas continuam a ser marginalizadas e agredidas por seu gênero e casta preestabelecida e impedidas de participar de atividades econômicas. Nesse sistema, atores influentes podem se opor às mudanças de normas e estruturas de poder. O sucesso da JEEViKA nesse ambiente também pode depender de como ela conseguirá equilibrar as premissas do sistema rígido com as perspectivas do sistema flexível/crítico, para permitir que as pessoas discutam suas divergências e encontrem formas produtivas de se comportar e relacionar. A JEEViKA é um excelente exemplo para entender o arquétipo desse sistema nos próximos anos.

 

Arquitetura Geral dos Sistemas Sociais

 

Cada arquétipo analisado constitui uma perspectiva limitada que pode reduzir o potencial dos praticantes de adotar intervenções eficazes. Em geral, as perspectivas rígidas ignoram a complexidade social e subestimam o potencial local de conhecimento, recursos, comprometimento e propriedade. As perspectivas flexíveis/críticas em geral parecem esforços utópicos incompatíveis com nossas tendências pragmáticas. Para superar essas diferenças, propus uma arquitetura geral de sistemas sociais que engloba três dimensões. Ao adotar uma perspectiva de sistema é preciso estar atento a:

Espaço da situação, a realidade de uma situação que exige atenção: objetivamente, as condições em que as pessoas se encontram oferecem oportunidades ou impõem restrições? Qual é a dinâmica de mudanças?

Arquitetura comportamental, a ação de forças observáveis e não observáveis que criam as características de uma situação: quais são os fatores econômicos, cognitivos, normativos e de poder/político que permitem ou impedem as pessoas de pensar e agir? Como essa arquitetura cria situações problemáticas e qual é sua dinâmica de mudança?

Espaço do problema, a interpretação e avaliação subjetiva se uma situação é problemática, e para quem: qual é a natureza e legitimidade da indicação de que uma situação é um problema social que precisa ser resolvido? Qual é sua importância em comparação com outros problemas e prioridades, quem se beneficia e quem é mais afetado?

A perspectiva que oferecemos integra as premissas objetivas das perspectivas de sistemas rígidos (espaços da situação) e as premissas subjetivas das perspectivas flexíveis/críticas (espaços do problema). A terceira dimensão dessa abordagem, a arquitetura comportamental, é o principal alvo da mudança de sistema e é igualmente aplicável aos sistemas projetados e orgânicos.

As três dimensões não são independentes. São perspectivas – formas de ver, explorar e intervir na realidade social. Essa arquitetura desafia as premissas tradicionais de existência de contornos, que aqui representam escolhas que dependem dos interesses ou pressões de algumas populações, localidades ou problemas. Os contornos podem refletir pragmaticamente os recursos e competências disponíveis e representar a identidade de alguém como ator ou financiador ou implementador e onde se traça a linha de responsabilidade. Assim, os sistemas são situações problemáticas, configuradas por várias interpretações e realidades observadas pelos atores que procuram mudar os sistemas.

A seguir explicamos cada dimensão separadamente:

Espaço da situação | Uma situação é a conjuntura de um sistema, a realidade na qual as pessoas se encontram. Podemos considerar fatos relevantes sobre situações, por exemplo, oportunidades de trabalho, acesso à saúde ou serviços jurídicos e capacidade de participar da vida cívica, econômica e política. As situações também restringem as escolhas das pessoas, como altos níveis de analfabetismo, poluição, dependência química, fome, criminalidade, discriminação. O termo “espaço” indica que decidimos nos concentrar em uma fatia da realidade social, uma determinada situação na qual uma pessoa sofre discriminação, uma comunidade apresenta problemas de saúde ou um país é impedido de crescer devido a um abuso de poder.

O equilíbrio entre oportunidades e restrições determina a dinâmica com que um sistema muda: a situação está melhorando lentamente e essa tendência ascendente pode ser acelerada? Está estagnada, a ponto de precisarmos articular uma saída do status quo? Está deteriorando, e precisamos descobrir como estabilizá-la e depois redirecionar a dinâmica da mudança para melhorá-la aos poucos? Ao refletir sobre essas dinâmicas, podemos entender melhor as prioridades para organizar uma intervenção na qual interagimos com os sistemas.

Situações e fatos observáveis representam uma visão superficial da realidade que pode nos levar a menosprezar os problemas e aplicar modelos de solução já prontos, como microfinanças ou aplicativos para smartphones. Essa atitude motiva a busca por novas e brilhantes tecnologias que podem não resolver significativamente o problema ou produzir consequências indesejadas. Veja, por exemplo, as pressões atuais sobre a Zipline, startup da Califórnia que usa drones como mecanismos eficientes para fornecer suprimentos médicos quando e onde eles são necessários, em países como Gana, Serra Leoa e Ruanda. Apesar do sucesso dos drones, os profissionais de saúde nesses países criticam sua utilização, afirmando que os dispositivos são caros e inviabilizam o desenvolvimento de outras prioridades de um sistema de saúde eficiente.

Se, por um lado, as perspectivas de sistema nos induzem a adiar a busca de soluções, por outro, parecem nos encorajar a investir mais tempo e esforço em formas criativas de explorar e valorizar a arquitetura das situações num contexto específico e em sintonia com as várias perspectivas dos stakeholders locais. O trabalho do sistema equivale a identificar as principais peças de um quebra-cabeça, entender como os sistemas estão configurados para fazer o que fazem e só então planejar caminhos para criar uma configuração diferente que todos veem como um avanço.

Toda intervenção para melhorar as situações enfrenta dois desafios fundamentais. Primeiro, muitos aspectos dos sistemas sociais não são notados diretamente. Crenças, valores, ambições, poder e estrutura de dependência, por exemplo, quase sempre estão ocultos no bojo das arquiteturas comportamentais. Segundo, as pessoas como atores de sistemas observam realidades muito distintas. Elas podem discordar, por exemplo, se uma situação é um problema e a quem afeta, ou se o suposto problema é importante ou urgente. Esses aspectos fazem parte dos espaços do problema.

Arquitetura comportamental | Arquiteturas comportamentais são as partes de sistemas que formatam as situações. Para explorar a arquitetura comportamental é preciso entender as pessoas em suas relações interpessoais, com as instituições e com o ambiente físico e natural. Se considerarmos suas quatro dimensões – econômica, cognitiva, normativa e política/poder –, podemos ter insights em vários níveis do sistema: individuais, comunitários, organizacionais, institucionais e sociais. Esses insights ajudam a explicar padrões de comportamento como competição, cooperação, exclusão, dominação e abuso. Pense, por exemplo, em como as elites poderosas de uma comunidade podem impedir certos grupos de participar de decisões comunitárias. São as normas, tradições e estruturas permanentes de poder e dependência que moldam a arquitetura comportamental que mantém a desigualdade na comunidade. As quatro dimensões geram uma tensão criativa entre as aspirações das pessoas e seu contexto social e ambiente físico. Esse contexto influencia o que elas podem ou não fazer. Uma análise da arquitetura comportamental também permite identificar com mais facilidade quais stakeholders são essenciais ou quais podem bloquear os esforços de mudança, como campeões locais influentes, líderes de grupos sensíveis e opositores poderosos. As organizações que pesquisei praticamente só progridem quando encontram formas de identificar as normas, habilidades cognitivas e econômicas ou papéis e dependências nas quais as pessoas com quem se preocupam foram socializadas.

Para promover uma mudança sistêmica precisamos intervir na arquitetura comportamental (causas) e não nas situações (sintomas). Essa perspectiva pode nos ajudar na desaceleração por duas razões. Primeiro, os aspectos importantes dessa arquitetura não são observados diretamente. Para termos consciência de que eles existem, e entendê-los, precisamos nos aproximar muito da situação problemática e estabelecer uma relação de confiança e entrosamento com os stakeholders. Somente então eles começarão a compartilhar coisas que não conseguimos ver de imediato, como as causas de suas vulnerabilidades e as formas de marginalização, agressão e exclusão que sofrem. Muitas vezes, esse esforço requer tomar atitudes que não estão alinhadas com a missão da organização. A IDEO.org e Marie Stopes International descobriram que para enfrentar a situação problemática da gravidez não planejada de meninas adolescentes em Zâmbia são necessários investimentos em atividades aparentemente desconectadas, como abrir uma esmaltaria, e criar um vínculo com as adolescentes. Com o tempo, esse ambiente aberto, isento de julgamentos permitiu que as garotas falassem sobre tópicos desagradáveis e polêmicos como anticoncepcionais e as razões para sua adoção limitada.

Segundo, diferentes arquiteturas comportamentais podem gerar situações aparentemente similares. Por isso, precisamos conter nosso desejo de nos basearmos em nossa experiência em outros contextos para não aplicar arquétipos de situações conhecidas que não estão em jogo na situação em pauta. Por outro lado, devemos entender a arquitetura comportamental específica que causa uma determinada situação problemática. Essa variação de arquiteturas em situações aparentemente similares é o que muitas vezes inviabiliza os esforços para replicar uma solução em diferentes contextos que parecem similares na superfície.

 

“Não há objetos mágicos ou forças nos sistemas ou alavancas potentes que possamos aplicar: o que existe é somente uma realidade social complexa.”

 

Na perspectiva de sistemas é essencial entender o elo entre a arquitetura comportamental e as situações, mas também é importante entender como as pessoas interpretam uma mesma situação de formas diferentes. As diferenças determinam quem apoiará, quem se oporá, quem se beneficiará ou sofrerá com os esforços de mudanças e quais caminhos devem ser efetivamente explorados.

Espaço do problema | Objetivamente os problemas não existem. Seria mais produtivo pensar nos problemas sociais se refletíssemos sobre a natureza e a legitimidade das indicações de que uma situação é, de fato, problemática e que precisa ser tratada. Até mesmo em comunidades fechadas, as pessoas podem criar imagens muito diferentes do mundo e das situações em que se encontram. Suas atitudes, motivações, senso de sua função ou propósito, percepções, crenças, expectativas e hábitos são muito distintos. Julgar uma situação como problemática com base em um conjunto de valores e expectativas pode não coincidir com a percepção dos stakeholders locais.

As situações sempre refletem assimetrias nas vulnerabilidades e nas formas como os benefícios são distribuídos. As pessoas afetadas por uma situação em geral coexistem com outras que se beneficiam dela. Qualquer mudança para situações permanentes, independentemente de quanto possam afetar alguns, possivelmente vai enfrentar resistência. Aplicações recentes de sistemas flexíveis e críticos procuram envolver os stakeholders em situações problemáticas para criar espaço para discutir suas diferenças e formas de superá-las. Essa abordagem tem por objetivo trazer à tona as várias perspectivas com que as pessoas veem uma situação, explicitar diferenças e fontes de mal-entendidos e conflitos e explorar tensões e perspectivas divergentes de forma construtiva e estruturada.

Atrasar a resolução de conflitos, em vez de assumir compromissos prematuros e temporários, pode ser uma fonte de soluções criativas. As abordagens flexíveis/críticas procuram desenvolver o potencial das pessoas ao trabalhar com elas, em vez de “para” elas, para dar-lhes voz e a oportunidade de definir e propor suas próprias soluções e não lhes impor soluções prontas. A ênfase dos implementadores é não só para resolver diferenças, mas também fazer aflorar a sabedoria local e mobilizar a engenhosidade dos menos favorecidos. O foco não é “resolver” o problema dos desfavorecidos ou “reinventar” seus sistemas, mas construir em conjunto, em pequenas doses, uma trajetória positiva de mudança.

Pensando Seriamente nos Sistemas

 

Dessa arquitetura geral de sistema podemos tirar uma conclusão importante: não há objetos mágicos ou forças nos sistemas ou alavancas potentes que possamos aplicar. O que existe é somente uma realidade social complexa. Toda vez que nos referimos a uma realidade social, nos referimos sempre a um sistema, porque todas as pessoas, situações sociais, grupos, problemas e relações de poder formam naturalmente um sistema. Na abordagem de situações problemáticas, usar simplesmente o termo “sistema” sem mudar a mentalidade não traz nenhum benefício, seja para esclarecer ou para intervir.

Uma perspectiva de sistema também implica a coexistência de várias realidades e a necessidade de explorar e resolver diferenças subjetivas. Os sociólogos nos alertaram para não sermos vítimas de um subjetivismo ingênuo sobre problemas sociais e para não ignorarmos as restrições objetivas que, nas palavras do sociólogo Robert Merton, “afetam tanto as escolhas que as pessoas fazem como as consequências pessoais e sociais dessas escolhas”. Se quisermos pensar seriamente nos espaços de situação, precisamos embasar as decisões em evidências objetivas. Se quisermos pensar seriamente nos espaços do problema, precisamos entender que nem toda evidência importante é objetiva. Se quisermos pensar seriamente nas arquiteturas comportamentais, precisamos ter em mente que nem toda a evidência é visível. Dessa perspectiva de sistema, projetar estratégias de intervenção no conforto do home office é, obviamente, uma prática ineficaz, com probabilidade quase nula de sucesso. Já o trabalho do sistema exige que estejamos próximos dos sistemas, mesmo que desconfortavelmente próximos. A disposição para assumir esse trabalho lento e difícil da mudança sistêmica servirá para testar nossa determinação e revelar o que realmente nos preocupa: procuramos gerar impacto e demonstrar nossa eficiência ou procuramos atender as comunidades e ajudá-las a descobrir e criar suas próprias trajetórias de mudança em seu sistema?

O benefício mais importante que observei na adoção de uma perspectiva de sistema pode ser a redução e eliminação de algumas patologias no setor da filantropia. Essas patologias incluem uma obsessão por soluções técnicas, um sentido de urgência para demonstrar impacto de larga escala e uma formulação de estratégias com objetivos predeterminados propostos por pessoas que não fazem parte do sistema-alvo. A perspectiva de sistema nos ajuda a reduzir os riscos de problemas e situações sem especificação detalhada (uma patologia que Johanna Mair e eu chamamos “ilusão da compreensão”) e de superestimar nossa capacidade de intervir e mudar as situações para melhor (“ilusão da competência”). Essas patologias alimentam altos níveis de empolgação e ambição; testemunham a atual onda da filantropia de doações milionárias. Mas um gap crescente entre ambição e competência em geral é uma receita para o desastre.

Sugestões para Pesquisas Futuras

 

Como ser bem-sucedido na difícil tarefa de mudança de sistema? Precisamos com urgência de pesquisas mais bem estruturadas e mais informações sobre perspectivas e manifestações do Sul Global. Este artigo documenta o que pretendi desenvolver, corrigir e ampliar à medida que ganhava novos insights. Questões que abordarei em minhas próximas pesquisas e que, espero, os leitores da SSIR ajudarão a explorar nos próximos anos incluem: como adotamos e interagimos efetivamente com os sistemas?; em que situações as premissas dos quatro arquétipos de sistema são mais adequadas?; quais práticas ajudam a descobrir e mapear as dimensões das arquiteturas comportamentais?; como construir plataformas para comunicação aberta e para resolver tensões e conflitos?; como adotar as ferramentas dos usuários de sistemas flexíveis e críticos no trabalho filantrópico?; como apoiar e estabilizar estágios intermediários da mudança de sistemas e processos de transformação de sistemas ou o colapso de sistemas de risco?

Adotar uma abordagem sistêmica requer reflexão profunda e tomada de decisão sobre aspectos importantes de nossas organizações. Isso vale independentemente de sermos financiadores, implementadores ou ambos. A seguir são apresentados três aspectos que as organizações que pretendem adotar as perspectivas de sistema deveriam discutir com todo o seu staff. Essa discussão pode estimulá-los a questionar suas intenções e melhorar suas competências na mudança de sistema e, consequentemente, de ações filantrópicas eficazes em geral.

Missão e identidade | Quais situações ou problemas chamam mais nossa atenção e por quê? Onde traçamos os contornos das situações e quais são nossos limites de responsabilidade como agentes da mudança? Como desenvolvemos papéis, identidades, ambições e capacidades? O que significa adotar uma lente de sistema e que resultados esperamos? Quais atitudes e mentalidades precisaremos mudar?

Competências | Como avaliamos o progresso e que áreas precisaremos dominar? E se nosso conhecimento e expertise tiverem pouca importância nos sistemas, com o que devemos substituí-los? Com que frequência os financiadores tomam decisões sobre financiamentos? Devemos continuar realizando ciclos rápidos de doações sucessivas ou devemos alinhar a frequência dos ciclos de doações com nossa capacidade de refletir sobre os resultados e aprender com as doações anteriores? Como as perspectivas de sistema mudam nossas relações com nossos beneficiários? Quais estruturas de apoio e competências precisamos criar? Como desenvolver uma prática de abordagem de sistema flexível/crítico? Essa prática deve se tornar uma unidade dedicada separada ou a forma como trabalhamos normalmente?

Perspectiva | Como olhamos o mundo: explícita ou implicitamente? Acreditamos que os sistemas “existem” no mundo real? Em nosso trabalho, priorizamos a perspectiva rígida ou a flexível/crítica? Estamos comprometidos com a arquitetura tridimensional da maneira como foi esboçada? No caso negativo, como vemos o mundo ou um sistema e o que valida essa perspectiva?

A noção de que perspectivas de sistemas idealmente nos desaceleram não é só atraente. Os líderes de intervenções precisam encontrar formas de gerenciar essas longas jornadas de aprendizado e adquirir um profundo conhecimento do contexto para justificar seus investimentos. Como essa abordagem lenta pode não entregar “resultados” no curto prazo e, portanto, corre o risco de perder apoio do staff, de financiadores e das comunidades com as quais as organizações trabalham, precisamos encontrar formas de manter a motivação e uma percepção de progresso. Reduzir o ritmo de tomada de decisão, de promover a mudança, de romper as normas sociais e de alimentar nossa ansiedade para relatar números que demonstrem como somos bons, espertos e responsáveis provavelmente será a maior contribuição para tornar o trabalho filantrópico mais efetivo.

 

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O AUTOR

CHRISTIAN SEELOS é codiretor do Laboratório de Inovação Global para o Impacto do Centro de Filantropia e Sociedade Civil da Stanford University.



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