Uma economia sem dinheiro vivo não é boa
O futuro das finanças pode ser digital, mas não devemos subestimar a resiliência e a liberdade que a moeda em espécie traz
Por Seema Prem
Com imenso apoio de governos e da indústria tecnológica, os pagamentos digitais estão se tornando regra. A pandemia deu um impulso inesperado, com pessoas no mundo todo migrando para pagamentos online e por aproximação. Há um clamor crescente por uma economia 100% sem dinheiro vivo, e países como Noruega, Suécia e Holanda estão bem avançados nesse sentido.
Embora eu seja cofundadora e CEO de uma fintech de impacto social que cria infraestrutura de pagamentos digitais, acredito que o fim do dinheiro em espécie traz riscos inerentes – e não só para aqueles que estão nas margens da sociedade digital. É fato que pagamentos digitais têm vantagens tanto para consumidores como para empresas. Para os consumidores, eles eliminam a necessidade de carregar dinheiro físico ou cartões. As transações geralmente são rápidas e seguras, graças a medidas avançadas de segurança, como encriptação, biometria e autenticação em duas etapas e, em muitos casos, são acompanhadas de recompensas oferecidas por bancos, cartões de crédito e instituições de pagamento parceiras.
Para as empresas, a conveniência e a rapidez se traduzem em maiores vendas e fluxo de caixa. Com os pagamentos digitais, os usuários interagem com seus bancos por meio do celular pelo menos uma vez por semana. Essa conexão faz dos aplicativos de pagamento excelentes plataformas para vender produtos e serviços adicionais. Os pagamentos digitais também deixam um rastro de informações valiosas para gerar conhecimento sobre o consumidor.
Por outro lado, porém, o dinheiro físico diminui a dependência de um método único, como a internet ou as plataformas digitais. O dinheiro é “gratuito”, no sentido de que pode ser trocado diversas vezes sem a necessidade de infraestruturas digitais complexas. A redundância que ele representa ajuda o sistema a se adaptar e a se recuperar de desacertos, além de reduzir o risco de falhas catastróficas resultantes de erros pontuais. Se usado em paralelo aos métodos digitais, o dinheiro garante uma infraestrutura financeira mais resiliente.
Dadas essas e outras vantagens, não creio que rumar para uma economia sem dinheiro em espécie seja uma decisão acertada, ao menos num futuro próximo.
Duas histórias
Para entender melhor a marginalização financeira que uma economia sem dinheiro físico pode trazer, conto duas histórias (nomes e dados pessoais foram alterados para proteger a identidade dos personagens).
Bandana Kumari (33), Gurugram, Índia | Todos os dias, Bandana Kumari caminha três quilômetros da sua residência numa favela superpopulosa até o arranha-céu onde trabalha como doméstica em Gurugram. Kumari, que abandonou os estudos no terceiro ano, nunca usou um smartphone, muito menos uma carteira digital. Ela nunca havia trabalhado fora até seu marido, que é operário, perder o emprego, na pandemia.
Um ano depois disso, ele morreu de cirrose hepática. A família tinha gastado todas as suas economias na tentativa desesperada de salvar sua vida. Viúva, com três filhos de 16, 14 e 12 anos, Kumari tem de arcar com as dívidas feitas para o tratamento do marido. Famílias como a sua, sem convênio médico, precisam fazer empréstimos para pagar despesas de internação hospitalar.
Para piorar a situação, Kumari perdeu INR 3.000 (US$ 36) – o equivalente a dez dias de seu salário. Não em um furto ou golpe, mas para a carteira digital de seu marido. Quando o celular dele quebrou, o custo do conserto, US$ 50, era alto demais para ela. Quando ficou viúva, não teve condições de continuar recarregando o chip, que foi desativado.
Quando as economias buscam transações 100% digitais, tiram o direito e a liberdade das pessoas de controlar e usar seu dinheiro de forma independente
Esse é um prejuízo significativo para uma família em dificuldades financeiras. Kumari só sabia reconhecer o valor do dinheiro pela cor das cédulas. Nunca tinha usado um celular para nada além de telefonar para a família. Em seu mundo, onde é difícil garantir três refeições por dia, possuir um celular e conseguir recarregá-lo já são luxos – que dirá fazer pagamentos digitais.
Emil Nystrom (41), Estocolmo, Suécia | Emil Nystrom é um empreendedor sueco completamente habituado ao mundo digital. Em julho de 2023, foi convidado a falar numa conceituada conferência sobre design em Singapura. Embora estivesse se recuperando de uma lesão no joelho, não hesitou. Com menos de dois dias para planejar sua viagem, não teve tempo de converter dinheiro. Acostumado a viver sem dinheiro em espécie na Suécia e sabendo que viajaria de uma economia desenvolvida a outra, Nystrom não se preocupou muito.
Chegando a Singapura, ele se deparou pela primeira vez com a exclusão que pode haver em um mundo sem dinheiro físico, quando tentou comprar um cartão EZ-Link para utilizar o MRT, sistema de transporte público local. Seu cartão foi recusado pelo sistema. Como era quase meia-noite, teve de tomar um táxi até seu hotel, o que lhe custou SGD 40 (US$ 30).
Para piorar, ele descobriu que não havia caixa eletrônico na estação do MRT nem na loja de conveniência mais perto do hotel. O caixa eletrônico mais próximo ficava a 21 minutos a pé. A caminhada poderia ter sido agradável, se não fosse pelo seu joelho. Ele trocou apressadamente um punhado de euros que tinha por dólares de Singapura no hotel, tendo que arcar com uma taxa de câmbio significativa. Além disso, os terminais de recarga de seu cartão EZ que aceitavam pagamento em dinheiro eram poucos e distantes. Ele tinha de andar bastante no interior da estação para conseguir fazer a recarga usando moeda em espécie.
O digital não é inclusivo