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Uma economia sem dinheiro vivo não é boa

O futuro das finanças pode ser digital, mas não devemos subestimar a resiliência e a liberdade que a moeda em espécie traz

Por Seema Prem

(Ilustração de David Plunkert)

Com imenso apoio de governos e da indústria tecnológica, os pagamentos digitais estão se tornando regra. A pandemia deu um impulso inesperado, com pessoas no mundo todo migrando para pagamentos online e por aproximação. Há um clamor crescente por uma economia 100% sem dinheiro vivo, e países como Noruega, Suécia e Holanda estão bem avançados nesse sentido.

Embora eu seja cofundadora e CEO de uma fintech de impacto social que cria infraestrutura de pagamentos digitais, acredito que o fim do dinheiro em espécie traz riscos inerentes – e não só para aqueles que estão nas margens da sociedade digital. É fato que pagamentos digitais têm vantagens tanto para consumidores como para empresas. Para os consumidores, eles eliminam a necessidade de carregar dinheiro físico ou cartões. As transações geralmente são rápidas e seguras, graças a medidas avançadas de segurança, como encriptação, biometria e autenticação em duas etapas e, em muitos casos, são acompanhadas de recompensas oferecidas por bancos, cartões de crédito e instituições de pagamento parceiras.

Para as empresas, a conveniência e a rapidez se traduzem em maiores vendas e fluxo de caixa. Com os pagamentos digitais, os usuários interagem com seus bancos por meio do celular pelo menos uma vez por semana. Essa conexão faz dos aplicativos de pagamento excelentes plataformas para vender produtos e serviços adicionais. Os pagamentos digitais também deixam um rastro de informações valiosas para gerar conhecimento sobre o consumidor.

Por outro lado, porém, o dinheiro físico diminui a dependência de um método único, como a internet ou as plataformas digitais. O dinheiro é “gratuito”, no sentido de que pode ser trocado diversas vezes sem a necessidade de infraestruturas digitais complexas. A redundância que ele representa ajuda o sistema a se adaptar e a se recuperar de desacertos, além de reduzir o risco de falhas catastróficas resultantes de erros pontuais. Se usado em paralelo aos métodos digitais, o dinheiro garante uma infraestrutura financeira mais resiliente.

Dadas essas e outras vantagens, não creio que rumar para uma economia sem dinheiro em espécie seja uma decisão acertada, ao menos num futuro próximo.

 

Duas histórias

 

Para entender melhor a marginalização financeira que uma economia sem dinheiro físico pode trazer, conto duas histórias (nomes e dados pessoais foram alterados para proteger a identidade dos personagens).

Bandana Kumari (33), Gurugram, Índia | Todos os dias, Bandana Kumari caminha três quilômetros da sua residência numa favela superpopulosa até o arranha-céu onde trabalha como doméstica em Gurugram. Kumari, que abandonou os estudos no terceiro ano, nunca usou um smartphone, muito menos uma carteira digital. Ela nunca havia trabalhado fora até seu marido, que é operário, perder o emprego, na pandemia.

Um ano depois disso, ele morreu de cirrose hepática. A família tinha gastado todas as suas economias na tentativa desesperada de salvar sua vida. Viúva, com três filhos de 16, 14 e 12 anos, Kumari tem de arcar com as dívidas feitas para o tratamento do marido. Famílias como a sua, sem convênio médico, precisam fazer empréstimos para pagar despesas de internação hospitalar.

Para piorar a situação, Kumari perdeu INR 3.000 (US$ 36) – o equivalente a dez dias de seu salário. Não em um furto ou golpe, mas para a carteira digital de seu marido. Quando o celular dele quebrou, o custo do conserto, US$ 50, era alto demais para ela. Quando ficou viúva, não teve condições de continuar recarregando o chip, que foi desativado.

 

Quando as economias buscam transações 100% digitais, tiram o direito e a liberdade das pessoas de controlar e usar seu dinheiro de forma independente

 

Esse é um prejuízo significativo para uma família em dificuldades financeiras. Kumari só sabia reconhecer o valor do dinheiro pela cor das cédulas. Nunca tinha usado um celular para nada além de telefonar para a família. Em seu mundo, onde é difícil garantir três refeições por dia, possuir um celular e conseguir recarregá-lo já são luxos – que dirá fazer pagamentos digitais.

Emil Nystrom (41), Estocolmo, Suécia | Emil Nystrom é um empreendedor sueco completamente habituado ao mundo digital. Em julho de 2023, foi convidado a falar numa conceituada conferência sobre design em Singapura. Embora estivesse se recuperando de uma lesão no joelho, não hesitou. Com menos de dois dias para planejar sua viagem, não teve tempo de converter dinheiro. Acostumado a viver sem dinheiro em espécie na Suécia e sabendo que viajaria de uma economia desenvolvida a outra, Nystrom não se preocupou muito.
Chegando a Singapura, ele se deparou pela primeira vez com a exclusão que pode haver em um mundo sem dinheiro físico, quando tentou comprar um cartão EZ-Link para utilizar o MRT, sistema de transporte público local. Seu cartão foi recusado pelo sistema. Como era quase meia-noite, teve de tomar um táxi até seu hotel, o que lhe custou SGD 40 (US$ 30).

Para piorar, ele descobriu que não havia caixa eletrônico na estação do MRT nem na loja de conveniência mais perto do hotel. O caixa eletrônico mais próximo ficava a 21 minutos a pé. A caminhada poderia ter sido agradável, se não fosse pelo seu joelho. Ele trocou apressadamente um punhado de euros que tinha por dólares de Singapura no hotel, tendo que arcar com uma taxa de câmbio significativa. Além disso, os terminais de recarga de seu cartão EZ que aceitavam pagamento em dinheiro eram poucos e distantes. Ele tinha de andar bastante no interior da estação para conseguir fazer a recarga usando moeda em espécie.

 

O digital não é inclusivo

 

Kumari e Nystrom representam estratos populacionais diversos com diferentes necessidades e graus de experiência e familiaridade com sistemas financeiros. Suas histórias, contudo, demonstram problemas de uma sociedade sem dinheiro físico. Os governos precisam usar de empatia ao fazer essa mudança, reconhecendo que ainda existem os pobres, os desbancarizados, os idosos e os analfabetos, bem como possíveis emergências.

Para pessoas como Nystrom, além de preocupações, o ônus inclui a acessibilidade e a conveniência. Para outras, como Kumari, trata-se de familiaridade e custo. O dinheiro, para ela, é gratuito. O digital, não. Toda e qualquer transação requer conectividade e acesso a dados. Também demanda intimidade com a tecnologia e consciência financeira que nem todos têm ou podem ter.

De forma mais geral, o digital aumenta a dependência em relação a instituições, como bancos, fintechs e operadoras de telefonia. Quando as economias buscam transações 100% digitais, tiram o direito e a liberdade das pessoas de controlar e usar seu dinheiro de forma independente. Em novembro de 2023, o New York Times informou que estava se tornando mais comum que bancos encerrassem contas sem aviso, deixando centenas de indivíduos e de pequenos negócios desassistidos.

Embora os bancos aleguem que isso se deveu a suspeitas de atividade fraudulenta detectada por algoritmos, em muitos casos, os afetados nem sabem o que houve. “Não há humanização nenhuma, só números numa tela”, disse ao Times um programador que trabalhava com esses algoritmos. “Eles não dizem ‘essa é uma mãe solteira que trabalha como babá’, dizem ‘ei, segundo tais quesitos, ela é suspeita – então cai fora’.”

Além disso, as redes digitais muitas vezes ficam inacessíveis em tempos de crise. Na Guerra da Ucrânia, muitos países impuseram sanções à Rússia, e Visa, Mastercard e outras empresas suspenderam suas operações no país. Assim, cidadãos russos não podiam mais fazer pagamentos digitais em nível global, o que gerou pânico e uma corrida aos caixas para sacar dinheiro.

No início de 2023, a Nigéria tentou combater a inflação e as falsificações substituindo cédulas antigas para promover os pagamentos digitais. Mas os bancos simplesmente não tinham infraestrutura para atender à demanda por cédulas novas, e o caos se instaurou, com filas enormes e pessoas comuns impossibilitadas de comprar alimentos ou ir trabalhar.

Emergências climáticas são outro exemplo. Durante as enchentes de 2019, por exemplo, Kerala, na Índia, ficou sem eletricidade por vários dias, e a maioria da população perdeu acesso a caixas eletrônicos. Como os celulares não funcionavam, as pessoas usaram suas reservas em espécie para comprar suprimentos essenciais. O problema se repetiu quando o ciclone Michaung atingiu Chennai, na Índia, em dezembro passado, afetando os pagamentos digitais e impossibilitando a compra de alimentos.

Diante dessas limitações, devemos buscar uma economia com menos dinheiro vivo, e não uma economia sem dinheiro vivo. Cabe aos bancos centrais definir a direção que cada economia seguirá e, para isso, precisam encontrar o equilíbrio. A digitalização deve andar de mãos dadas com a alfabetização, tanto a básica quanto a financeira. A ponte entre os familiarizados com o meio físico e o meio digital precisa ser construída por meio de sistemas financeiros humanizados e empáticos.
Atualmente, na Índia, circula uma quantia equivalente a US$ 397 bilhões. Algumas das nações mais economicamente avançadas, como Estados Unidos, Singapura, Japão e Alemanha ainda usam dinheiro físico em muitos âmbitos. As transações em espécie vêm diminuindo no mundo todo, e as digitais, crescendo – e essa é a direção certa a tomar. Assim como os aviões substituíram opções mais lentas e ineficientes e o Zoom substituiu reuniões presenciais que exigiam viagens, transações digitais se tornaram uma alternativa moderna e eficiente, trazendo conveniência, segurança e rapidez.

No entanto, o verdadeiro progresso não está em superar métodos tradicionais tidos como antiquados, mas em reconhecer a necessidade de coexistência entre os diversos modos. Fatores como a ascensão de governos autoritários pelo mundo, desequilíbrios climáticos, crescente desigualdade e demanda cada vez maior por privacidade e cibersegurança também requerem ponderamento antes de rumar para um mundo digital.

Em última instância, o dinheiro físico não deve ser erradicado por completo. Ele dá liquidez, controle, resiliência, privacidade e proteção contra regimes autoritários. São vantagens importantes demais para serem ignoradas. Governos e bancos centrais precisam defender a redução do dinheiro vivo, em vez de buscar uma sociedade sem ele. Caso contrário, ameaçam colocar pessoas vulneráveis em circunstâncias desesperadoras.

A AUTORA

Seema Prem é CEO e cofundadora da FIA Global, uma fintech de impacto social que atende a populações rurais de baixa renda no Sul Asiático.



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