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Quem sabe mais sobre agrofloresta?

Em certos contextos, os métodos atuais para alcançar a sustentabilidade agrícola podem ser contraproducentes à preservação ambiental

Por Evelyn R. Nimmo, André E. B. Lacerda, Leandro Bonfim e Joel Bothello

Práticas agrícolas voltadas às commodities são responsáveis por pelo menos três quartos do desmatamento no mundo. Aproximadamente um terço dessas perdas ocorreu apenas no Brasil.

Diversos ecossistemas no país – entre eles, as florestas pluviais amazônicas – sofreram reduções drásticas em cobertura florestal e biodiversidade. O uso generalizado e não controlado de agroquímicos e pesticidas também causou contaminação substancial do solo, da água e do ar. As consequências socioeconômicas incluem a redução das populações rurais e a migração de comunidades indígenas.

O problema é tanto epistemológico quanto econômico. O conhecimento tradicional e indígena das práticas agrícolas no Brasil está sendo rapidamente substituído por práticas de monocultura promovidas por métodos científicos que descontextualizam a agricultura, enfatizam experimentos controlados e otimizam a produção em torno de uma única variável de interesse – em geral, o rendimento das lavouras. Esses métodos não levam em consideração o valor de sistemas altamente complexos, específicos aos seus contextos, difíceis de mensurar e profundamente interligados a arranjos sociais e culturais.

A organização sem fins lucrativos brasileira CEDErva (Centro de Desenvolvimento e Educação dos Sistemas Tradicionais de Erva-Mate) está enfrentando esse problema de frente. A CEDErva está na vanguarda dos esforços de combate à comoditização da erva-mate, árvore nativa das florestas subtropicais sul-americanas. Paralelamente, a organização promove práticas tradicionais e indígenas de cultivo da erva-mate na sombra.

Com sede em Curitiba, a CEDErva lidera o Observatório dos Sistemas Tradicionais e Agroecológicos de Erva-Mate, uma rede integrada de apoio composta por formuladores de políticas públicas, representantes da indústria, organizações da sociedade civil e cientistas. O observatório trabalha para promover a preservação e a regeneração de conhecimentos ancestrais que possibilitem a pequenos produtores agrícolas e comunidades indígenas e tradicionais proteger e regenerar ecossistemas florestais nativos por meio da produção de erva-mate e, ao mesmo tempo, obter sua subsistência.

 

Produção tradicional da erva-mate

 

A erva-mate ocupa posição de destaque nos mitos de origem e cosmologias dos povos indígenas locais guarani e kaingang há séculos, se não milênios. O cultivo da erva-mate à sombra também é comum entre outros grupos na região Sul do Brasil, incluindo grupos tradicionais, como quilombolas, descendentes de escravos foragidos, e os faxinalenses, descendentes de colonos do Leste Europeu que utilizam a terra de forma comunitária como pastagem para animais. No sul, grupos indígenas, pequenos produtores e comunidades tradicionais desenvolveram, ao longo de décadas de experimentação, práticas de cultivo agroflorestal sustentável relacionadas à erva-mate. Este sistema emprega uma grande diversidade de espécies vegetais e animais nativas e introduzidas, proporcionando manejo diversificado da terra nas fazendas. O uso continuado dessas práticas desempenhou uma função importante na manutenção das florestas nativas da região.

No entanto, um estudo econômico recente sobre o valor da cadeia de produção da erva-mate sugere que a produtividade das práticas tradicionais não é suficiente para que elas sejam economicamente viáveis para pequenos agricultores. O estudo defende uma volta à monocultura, com base em estudos científicos estreitos que demonstram que a produção de erva-mate em campo aberto é maior devido à maior exposição à luz. O que se omite, porém, é o custo dessa maior produtividade, não apenas em termos de insumos, mas também das externalidades relacionadas à deterioração do ambiente sociocultural e ecológico no qual se cultiva a erva-mate. A forma como ocorre esse debate, portanto, ofusca outros aspectos importantes do cultivo tradicional da erva-mate à sombra.

Ela tem benefícios pouco valorizados: requer pouco investimento de insumos e mão de obra. O ciclo natural da floresta gera nutrientes permitindo que as árvores e o ecossistema prosperem, apesar das colheitas regulares.

O método da monocultura defendido por interesses científicos e corporativos, por sua vez, exige a remoção da sombra oferecida pelo dossel da floresta. Embora possa aumentar o rendimento, essa remoção rompe o delicado equilíbrio do ecossistema: as pragas e doenças da erva-mate, normalmente controladas por predadores naturais e por fontes de alimento alternativas, proliferam na lavoura em campo aberto, demandando a utilização de pesticidas e outros produtos químicos caros e nocivos. O incentivo às práticas de monocultura também não é ideal para pequenas propriedades que abrigam importantes reservas florestais.

O apoio às alternativas tradicionais

Quais soluções alternativas podem promover a permanência de práticas tradicionais de cultivo tão essenciais à manutenção da biodiversidade e da segurança alimentar? Para responder a esta pergunta, a CEDErva tem implementado uma série de medidas para empoderar comunidades tradicionais e pequenos agricultores, de modo a proteger os sistemas socioecológicos e o patrimônio cultural do cultivo tradicional da erva-mate, que faz parte da identidade dessas comunidades tradicionais.

Desenvolvimento de identidades e conhecimentos comunitários | Os sistemas agroflorestais tradicionais são encontrados em comunidades indígenas, comunidades tradicionais de colonos e pequenas propriedades onde se pratica a agricultura familiar; a produção da erva-mate, baseada na utilização de conhecimento e de práticas locais e agroecológicas e na preservação das florestas nativas, é o elo que une essas comunidades. A CEDErva percebeu que, embora esses grupos tenham histórias diferentes, seu conhecimento e práticas comuns e sua ligação com a terra têm raízes semelhantes e um claro impacto sobre a paisagem. Além disso, as identidades, histórias e memórias dos produtores estão intrinsecamente relacionadas às práticas de cultivo de ambientes florestais diversos, de colheita das árvores e de consumo da erva-mate com amigos e familiares.

 

A manutenção de práticas que existem há diversas gerações é essencial para a gestão dos sistemas socioecológicos locais

 

Promoção de soluções locais e inovadoras de preservação e regeneração florestal | A CEDErva também apoia modelos locais de manejo florestal e agrícola comprovadamente mais sustentáveis que a monocultura. Nos últimos anos, a região onde atua a CEDErva tem sido afetada por algumas das piores secas já registradas, entremeadas com períodos de chuva excessiva e prejudicial, o que tem impactado comunidades tradicionais e pequenos fazendeiros de forma desproporcional. Para lidar com esses desafios, muitos fazendeiros adotaram práticas regenerativas – baseadas em técnicas agroflorestais – que permitem restaurar a cobertura florestal e recuperar nascentes naturais em suas propriedades. A CEDErva e suas parceiras vêm estudando, monitorando e facilitando a implementação desses sistemas.

Conscientização e reconhecimento de sistemas de conhecimento tradicionais locais | A CEDErva também lidera um esforço pelo reconhecimento dos sistemas tradicionais de cultivo da erva-mate por meio do programa Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam), da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês). Este programa traz reconhecimento a sistemas agrícolas desenvolvidos ao longo de diversas gerações e intimamente ligados aos ecossistemas e culturas singulares dos locais onde são encontrados. O programa reúne elementos de patrimônio cultural, organização social, preservação da agrobiodiversidade, segurança alimentar e soberania, preservação de paisagens e conhecimento tradicional, proporcionando, assim, uma visão sistêmica e holística da importância dessas práticas. O reconhecimento desse sistema socioecológico trará legitimidade aos sistemas tradicionais de produção da erva-mate, o que, por sua vez, gera a oportunidade de aumento do valor de mercado da erva-mate produzida nas propriedades reconhecidas, em comparação com a de sistemas não tradicionais.

Busca de compensações alternativas para as comunidades | Por fim, a CEDErva procura aumentar a vitalidade econômica das práticas agrícolas tradicionais. Embora as previsões baseadas em métricas financeiras e científicas convencionais sejam certamente insuficientes para atender às necessidades das comunidades produtoras de erva-mate tradicionais, ignorar por completo a viabilidade econômica constituiria uma ameaça à sobrevivência desses produtores. Por isso, a CEDErva e suas parceiras do Observatório vêm investindo na promoção de compensações justas aos agricultores pela ampla gama de serviços que prestam ao ecossistema de sua região, como água potável e ar limpo, biodiversidade, solos saudáveis e hábitats para polinizadores naturais, entre muitos outros. Dessa forma, estão envolvendo diversos atores no debate em nível regional e nacional.

Embora tenham chamado a atenção de grandes corporações que procuram neutralizar suas pegadas de carbono, os mercados de carbono e outros mecanismos muitas vezes deixam para trás os pequenos produtores e comunidades tradicionais, pois estes têm acesso limitado a mecanismos de compensação. É importante defender essa comunidade de prática, garantindo que seus membros sejam recompensados por seu papel na proteção e na regeneração dos ecossistemas onde a erva-mate cresce naturalmente.

O que se conclui é que as técnicas convencionais de agricultura sustentável não funcionam mais. A ênfase no agronegócio e nas soluções sustentáveis de cunho econômico talvez prejudique mais do que ajude as comunidades que habitam e retiram seu sustento de sistemas tradicionais.

A manutenção de práticas que existem há diversas gerações é essencial para a gestão dos sistemas socioecológicos locais. Ao expandir o escopo do valor para incluir elementos socioculturais e ambientais de sistemas de conhecimento tradicionais, a CEDErva procura demonstrar que há um futuro viável para esses sistemas.

OS AUTORES

Evelyn R. Nimmo é presidente da CEDErva.

André E. B. Lacerda é engenheiro florestal e pesquisador da Embrapa Florestas.

Leandro Bonfim é professor assistente de gestão e organizações da Faculdade de Administração Kenneth W. Freeman da Universidade Bucknell.

Joel Bothello é professor adjunto de administração da Faculdade de Administração John Molson da Universidade Concordia.



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