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Luz e sombra na filantropia da elite brasileira

Jessica Sklair analisa o comportamento dos grandes doadores no país, trazendo à tona suas incoerências

Por Leonardo Letelier

Brazilian Elites and Their Philanthropy Por Jéssica Sklair Routledge, 2022, 208 págs., disponível em inglês na Amazon (R$ 226, em ebook)

Jessica Sklair é uma observadora privilegiada da realidade filantrópica da elite brasileira e, em Brazilian Elites and Their Philanthropy – Wealth at the Service of Development, (As elites do Brasil e sua filantropia – riqueza a serviço do desenvolvimento), disponível apenas em inglês, traz histórias às quais a maioria de nós não teria acesso.

A partir de uma pesquisa etnográfica, metodologia qualitativa que consiste em estudar e descrever a cultura e o comportamento de um dado grupo, trazendo o que podemos chamar de “estudos de caso” de quatro representantes de famílias brasileiras e sua filantropia, a autora conecta conceitos, contextos e tendências mais amplos do setor, no período de 2008 a 2019.

Na verdade, as entrevistas foram realizadas entre 2008 e 2010, e Sklair se valeu de um segundo período no Brasil, entre 2018 e 2019, para retomar conversas e avaliar os avanços no campo quase dez anos depois, o que gerou o capítulo final do livro – e boa parte das minhas críticas a ele.

Apesar de traços acadêmicos – como as várias páginas para justificar a pesquisa etnográfica, ou as dezenas de notas e referências bibliográficas ao fim de cada capítulo – pesarem contra a fluidez do livro, levei poucas horas para lê-lo.

É interessante ver como a autora conta histórias com maestria, preservando o anonimato dos personagens – muitos dos quais conheço fora das páginas da obra.

No início do livro, a autora traça um histórico da evolução do terceiro setor no Brasil, colocando as ONGs no campo do ativismo – sobretudo político –, e as famílias, no daqueles que se beneficiam do statu quo. Esse “vício de origem da filantropia brasileira” é usado, ao longo da narrativa, como parte da explicação que ela dá para forma como a filantropia é aplicada pela elite brasileira: a partir de uma lógica de contraposição, e não de confiança.

Jessica Sklair abre uma janela para observar a atuação filantrópica de quatro personagens, com os nomes fictícios de Fernando, Claudia, Bruno e Julia, cujas histórias se cruzam na Fundação Futuro – nome também inventado para a instituição que funciona como um quinto personagem. Essa entidade, que naquele momento se voltava para educar a próxima geração da elite brasileira, não existe mais.

Dos quatro protagonistas, Fernando é o único que gerou a própria riqueza, atuando no mercado financeiro; os demais eram herdeiros. Claudia havia trabalhado em companhias de sua família, passou a comandar a fundação da empresa familiar e queria “profissionalizá-la”. Bruno herdou, no divórcio dos pais, um volume substancial de recursos, advindos de uma empresa familiar reconhecida por práticas de responsabilidade social corporativa. Julia começou a trabalhar na fundação da empresa familiar após concluir o mestrado, enquanto se preparava para seu próximo passo acadêmico, e passou a liderá-la com a morte repentina do avô.

Todos os protagonistas demonstram um desejo sincero de tentar exercer um papel positivo na sociedade por meio da filantropia. No entanto, variam as formas como cada qual busca exercer tal papel, segundo uma combinação de questões e contradições pessoais (a relação do indivíduo com dinheiro, com sua família e com seus pares); corporativas (as práticas da empresa familiar e/ou da fundação a ela ligada); e históricas (tendências em relação à filantropia corporativa, como o investimento social privado, foco em profissionalização e/ou empreendedorismo).

Ao retratar a jornada de cada um dos quatro personagens e a narração que fazem de sua trajetória e da de sua família, Sklair se esforça para não fazer julgamentos de valor – sem, por isso, esconder as contradições presentes.

É o caso do empresário que diz querer o melhor para os funcionários, mas que, em seu memorial, tem omitida sua profunda decepção com a atuação sindical destes na resolução de questões trabalhistas. Ou, em outro exemplo que a autora sublinha, o relatório de sustentabilidade de uma empresa que lista o cumprimento de obrigações legais como se fossem parte de suas atividades de responsabilidade social.

Ao descrever as práticas da elite (e de suas empresas), Jessica Sklair tenta fazer a conexão destas com movimentos nacionais – como a emergência do termo “investimento social privado” – ou globais, como o filantrocapitalismo.

Sklair aponta que, em ambos os casos, atende-se mais ao agente que pratica o ato – o filantropo ou a empresa – do que aos supostos beneficiados pelo ato de incorporar à filantropia a lógica de “eficiência empresarial”. Isso decorreria de tal atitude ser tomada como solução dos desafios globais, sem incluir no desenho dos programas a discussão das condições que deram origem à riqueza das elites e aos problemas a serem enfrentados – e sem contemplar a participação dos tais supostos beneficiários.

Uma crítica ao filantrocapitalismo, o livro Winners Take All: The Elite Charade of Changing the World, de Anand Giridharadas, já foi objeto de resenha da SSIR nos Estados Unidos (o texto está disponível aqui). Muitas vezes, o investimento social privado, pelo fato de ser centrado nas necessidades da empresa (marca, geografia, novas prioridades e negociações anuais de orçamento), exacerba ainda mais esse fato.

Jessica Sklair não gasta palavras tentando florear uma prática muito comum no setor social brasileiro: a subcontratação de ONGs por fundações e institutos.

Ainda que as instituições contratantes se refiram a esse fato como “parceria”, muitas dessas ONGs cumprem na realidade o papel de fornecedores, ou seja, não têm autonomia programática. Há, ainda, uma desvantagem importante. Enquanto um fornecedor, ao colocar um “preço” no seu serviço, inclui uma margem de lucro na operação que pode ser reinvestida no negócio, de uma “ONG parceira”, não se aceita “preço” (com margem) – apenas “custo”. E, na quase totalidade dos casos, nem mesmo se aceita o “custo cheio”, apenas o “custo descontando atividades que o financiador não quer pagar” (tipicamente, os custos de gestão).

A autora dedica um capítulo inteiro ao trabalho das organizações intermediárias – como o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) e a própria Fundação Futuro. Com isso, registra a importância de organizações que conseguem fazer pontes, em termos de linguagens e abordagens, entre os centros de poder e recursos e os centros de necessidades (e potência). Mas também revela as limitações na atuação dessas entidades, uma vez que, normalmente, dependem de financiamento das mesmas organizações que gostariam de ver transformadas. Como gestor de uma organização intermediária, a Sitawi, reconheço o dilema e acrescentaria que a percepção da importância dessa classe de organização é bastante heterogênea na sociedade.

Por outro lado, Sklair perde a oportunidade de explorar a conexão das histórias relatadas no livro com discussões atuais como “filantropia decolonial” e “filantropia baseada em confiança”. Acredito que poderíamos ter insights interessantes a partir desses nexos.

Ao retornar ao Brasil (e ao tema) dez anos mais tarde, ainda no início do nascimento do investimento de impacto, a autora traz duas colocações das quais discordo frontalmente.

A primeira, mais técnica, é a descrição de investimento de impacto como uma nova classe de ativo. Em 2019, essa discussão já havia sido finalizada e pacificada havia muito. Investimento de impacto não representava nem representa uma classe de ativo, e, sim, uma estratégia ou lente de investimento (com intencionalidade de impacto positivo e expectativa de retorno financeiro) para qualquer classe de ativo.

A segunda, mais relevante, é um contraponto feito entre investimento de impacto e grantmaking como caminhos alternativos (ou opostos?) para a filantropia das elites brasileiras. Como testemunha e participante dessa discussão em nível nacional e global desde 2008, posso afirmar que investimento de impacto não representava e não representa uma evolução da filantropia – isso é o que algumas pessoas procuravam vender, para visível benefício próprio. É, sim, uma estratégia de investimento, como indicado acima.

No Brasil, essa posição era expressada abertamente tanto pelo Gife – pelo lado dos operadores do investimento social privado – quanto pela então Força-Tarefa de Finanças Sociais (hoje Aliança pelo Impacto) – pela parte dos fomentadores do investimento de impacto –, entre tantos outros.

Da mesma forma, em países de forte tradição filantrópica, como os Estados Unidos e o Reino Unido, o argumento do “investimento de impacto como evolução da filantropia” nunca foi levado a sério por especialistas (a não ser, novamente, como argumento por parte daqueles que se beneficiariam disso).

Uma pesquisa lançada neste ano pela Sitawi sobre a atuação de famílias de alto patrimônio em investimento de impacto e filantropia aponta para um mix de atuações filantrópicas, com maior prevalência de doações para entidades da própria família do que para ONGs ou causas.

Vale adicionar que números recentes do Censo Gife (realizado após a publicação do livro de Sklair) indicam que o grantmaking vem ganhando força nos últimos anos – em especial após a pandemia – entre os membros empresariais e fundações/institutos familiares. Mas esses dados refletem o que acontece com as doações após chegarem à fundação ou instituto familiar. Esse aumento da presença de grantmakers também se relaciona ao fato de que mais fundos independentes passaram a integrar o censo como respondentes. Quanto a esse levantamento, o primeiro fator pode ser temporário, mas o segundo tende a ser mais permanente.

Na minha opinião – e especialmente devido ao meu foco de atuação em “finanças do bem” –, o grande buraco na narrativa de Sklair é a ausência de dados, ou ao menos comentários, sobre o volume movimentado pelas famílias a cada evolução do entendimento dos personagens do livro sobre sua atuação filantrópica.

A narrativa seria muito bem complementada – e seus achados teriam maior sentido – se a autora houvesse adotado a máxima do jornalismo investigativo, follow the money, ou “siga o dinheiro”, mandamento popularizado a partir de uma fala do personagem Garganta Profunda, fonte na reportagem sobre o escândalo de Watergate, no filme Todos os homens do presidente.

Não digo que seria uma tarefa fácil, dada a discrição das famílias de alto patrimônio em relação a temas de dinheiro. Mas, ao nos privar dessa vertente de pesquisa, o livro nos deixa sem saber se (e quanto) as convicções filantrópicas das famílias se materializam na prática de forma relevante ou se estão mais para palavras ao vento. Para usar outra expressão, permitiria ver se as famílias, de fato, “colocam a mão no bolso” e praticam o que pregam.

O AUTOR

Leonardo Letelier é CEO da Sitawi Finanças do Bem e diretor-executivo da Endowments do Brasil, organizações que trabalham desenvolvendo infraestrutura para a economia de impacto no país.



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