Alegria negra em meio à dor
Acadêmico e ativista revê a história dos movimentos negros em prol de uma política de dor, alegria e cuidado
Por Geraldine Mukumbi
Fotos e vídeos de pessoas negras mortas pela polícia se tornaram ubíquos nas mídias sociais. Essa proliferação pública da dor negra ampliou a reflexão acerca do que significa testemunhar a violência sem perder a capacidade de imaginar um futuro que não seja não marcado por tal brutalidade.
Em To Build a Black Future: The Radical Politics of Joy, Pain, and Care [Construir um futuro negro: a política radical de alegria, dor e cuidado, ainda sem tradução no Brasil], o acadêmico e ativista Christopher Paul Harris argumenta que, para criar esse porvir, precisamos reconhecer “a dor negra, exaltar a alegria negra e praticar uma ética de cuidado radicalmente inclusiva”. Para Harris, o cuidado é uma “força contracivilizacional, que nos empurra para longe das relações sociais capitalistas e liberais”. É, em outras palavras, uma maneira de olhar para as pessoas não como peões, mas como humanos com uma dignidade a respeitar.
À primeira vista, basear-se na dor, na alegria e no cuidado para especular sobre um futuro negro pode parecer abstrato – e até pouco sério. No entanto, a força do livro reside em como ele situa esses componentes em momentos culturais específicos e em tradições negras que configuram uma crítica ao capitalismo e à antinegritude. Harris repassa o trabalho de ativistas e organizações para demonstrar as formas que esses três fatores assumem e que, mais recentemente, se materializaram na era do #BlackLivesMatter, em particular no Movement for Black Lives (M4BL, movimento por vidas negras), uma vasta rede de entidades, ativistas e trabalhadores culturais comprometidos com a extinção de todas as instituições racistas e em prol de uma abordagem anticapitalista para a libertação do povo negro.
Harris é professor assistente de estudos globais e internacionais na Universidade da Califórnia em Irvine, tendo sido antes organizador de base no grupo de advocacy Black Youth Project 100 (BYP100). Essa experiência no campo fundamenta sua teoria de uma “política do despertar” (politics of the wake), que ele define como uma “estratégia emergente que marca os contornos da conjuntura atual do desenvolvimento político negro” rumo à abolição de todos os sistemas de opressão, de prisões a vigilância tecnológica.
Uma “política do despertar” requer que as pessoas “habitem de forma consciente o pleno estado de antinegritude e forjem novas maneiras de ver e agir que possam informar e reconstituir nossas práticas críticas, distanciando-as do traço histórico da escravidão e além, não só imaginando, mas conquistando um mundo diferente”. Isso exige um esforço deliberado de reconhecer o passado e aprender dele para, assim, dele se libertar. Não no sentido de apagar como séculos de escravidão e outras formas de racismo moldaram a atual violência contra negros, mas de modo a que esse passado não impeça a alegria negra no futuro.
Harris evoca a tradição radical negra, termo que ele toma emprestado do cientista político Cedric Robinson. Em Marxismo negro (Perspectiva, 2023), Robinson o define como “o desenvolvimento contínuo de uma consciência coletiva impregnada das lutas históricas por libertação e motivada pelo senso compartilhado da obrigação de preservar o ser coletivo”.
O desenvolvimento contínuo de uma consciência coletiva é a ideia subjacente à premissa da política do despertar de Harris, uma vez que é o que une séculos de ativismo negro. Ela também representa a mudança de mentalidade que Harris discute – a de que há que reconhecer e habitar esse mundo estruturado pela antinegritude a fim de superar a violência sistêmica e cultural.
Harris também dialoga e reelabora o trabalho de outros pensadores, como Saidiya Hartman, Aimé Césaire e Frantz Fanon, a fim de demonstrar como militantes negros são a mais nova instância de uma tradição de protesto. Harris coloca o M4BL dentro da tradição radical negra para iluminar dois princípios dos movimentos: o protesto negro é historicamente um esforço coletivo que depende da produção de conhecimento como parte integrante do processo de sobrevivência negra. Ele vê o M4BL como a versão atual dessa tradição, ao afirmar que ele “criou o terreno ideológico para que as pessoas se movam de acordo com sua recusa [a ignorar a dor negra] e abracem, ao mesmo tempo que combatem, as contradições subjacentes à vivência, pensamento e movimento negros”.
Em contraste com o academicismo tradicional, Harris busca suas referências na cultura negra – memes, música, artes visuais, festas e moda. Ele põe a tradição radical negra em operação ao valorizar esse conhecimento contra o descrédito histórico na produção negra.
Apesar da evidente reverência aos movimentos negros do passado, To Build a Black Future não se esquiva de apontar suas deficiências. Ele expõe cuidadosamente as contradições entre a busca da liberdade e ações que limitaram o acesso a essa liberdade para uma porção da população negra – mulheres, pessoas queer, de baixa renda ou com deficiência.
“O pensamento político negro sempre colocou os marginalizados no centro”, ele explica. “Mas o fez prioritariamente de forma paternalista, reproduzindo seu status marginal ao adotar e adaptar padrões ideológicos ocidentais que, no fim das contas, reforçam [hierarquias supremacistas] em vez de corrigir [essas hierarquias]”.
À guisa de exemplo, Harris descreve como a classe média negra adotou uma política de respeitabilidade – “a crença que educação e autoajuda eram caminhos para se tornar digno de cidadania” – em resposta à convicção paternalista da inferioridade negra manifesta no abolicionismo branco.
Para deslocar e alijar essa política, Harris eleva o trabalho de produtores de cultura historicamente excluídos das narrativas mainstream sobre o movimento pelos direitos civis.
A exclusão de determinadas pessoas negras no bojo de movimentos de libertação mais amplos traz ensinamentos para os que atuam por justiça e inclusão. Como fonte de reflexão, e como inspiração para quebrar nossa cumplicidade com isso, ele cita Audre Lorde, poeta e ativista negra, que, em um discurso de 1982 na Universidade Harvard, perguntou ao público “de que forma eu contribuo para a subjugação de qualquer parte desse que eu defino como meu povo?”.
A história crítica de Harris ilustra as contradições entre o que as comunidades pretendem e o que elas realmente fazem pelos mais marginalizados dentro delas. Como ele mostra, “o passado é ao mesmo tempo uma fonte de orgulho e uma fábula moral que deveria informar o crescimento do nosso presente e construir um futuro melhor e diferente”. Ao estudar esse passado e suas contradições, torna-se essencial criar uma ética do cuidado que possa definir um futuro negro para todas as pessoas negras.
O aspecto mais instigante da “política do despertar” é a análise que Harris faz da alegria negra, definindo-a como “um sentimento e uma prática que visam criar espaços para discutir como, apesar da longa sombra da escravidão, todas as pessoas negras poderiam viver, deveriam viver e vivem e quais são os futuros possíveis que podemos construir”. Essa definição sublinha a impossibilidade aparente de uma alegria negra. No entanto, é do seio dessa história de dor e morte que esta emerge.
De fato, Harris argumenta que a “alegria negra não se dá a ler sem o reconhecimento da força limitadora da violência racial, em todas as suas formas”. A imparável e onipresente cultura antinegritude é o motivo pelo qual expressões da alegria negra – na música, na literatura, na arte e na mídia – são atos de rebelião, pois são formas ativas de presença em um ambiente hostil. Como ele sustenta, são “expressões da Presença Negra e […] um prelúdio do futuro por vir”.
Ainda assim, se esse prelúdio de alegria forma uma trama tão intrincada com a dor, que tipos de alegria são possíveis para as pessoas negras? Talvez esse paradigma reflita o pragmatismo inerente a ser um historiador e militante. Mas é de pensar o que perdemos – que as pessoas negras perdem – com essa visão. Essa questão se relaciona a uma crítica mais ampla: o trabalho intelectual de criar uma política do despertar – trabalho interno necessário à compreensão da dinâmica entre a dor e a alegria negras – não está plenamente mapeado para os leitores. A meu ver, isso advém do foco do livro na disciplina histórica. Em consequência, a ênfase de Harris no desenvolvimento de uma consciência crítica não se desenvolve por completo, o que limita sua persuasão.
Em última análise, To Build a Black Future é a conversa de Harris com pessoas negras sobre pessoas negras trabalhando pela resistência e pela alegria. Ele convoca a transpor os sistemas capitalistas por uma ética do cuidado.
“Apelos à empatia e ao reconhecimento dentro do atual estado de coisas não vão nos salvar”, adverte. “Em vez disso, o legado histórico e espacial da antinegritude deve ser desfeito, o que requer o desejo coletivo de abolir todos os seus vestígios e, em seu lugar, reconstituir a comunidade.”
O argumento é lindamente incisivo. Um futuro negro virá se estivermos dispostos a desmantelar sistemas de opressão usando todas as ferramentas a nosso dispor, incluindo nossa dor e nossa alegria.