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Grande mudança estrutural

O livro Reinventando o Capitalismo num Mundo em Chamas, de Rebecca Henderson, apresenta cinco maneiras pelas quais podemos reformar o capitalismo para superar a mudança climática, desigualdade e o colapso da democracia.

Por Mark R. Kramer

 

Uma certa esquizofrenia se espraiou recentemente pelo campo do impacto social em se tratando do capitalismo. Por um lado, investidores de impacto, empreendedores sociais e líderes de corporações estão cada vez mais abraçando o poder do lucro a fim de encontrar soluções para os problemas do mundo e aplicá-las em grande escala. Ao mesmo tempo, outros têm declarado ser o capitalismo um fracasso irremediável em razão da destruição ambiental, de trabalhos opressivos e mal pagos, do preconceito racial e de gênero e da produção de enorme desigualdade econômica que resultam do sistema. A intensa anomalia global causada pela pandemia de Covid-19 exacerbou ainda mais a discordância, realçando a fragilidade e as implacáveis iniquidades do capitalismo.

Rebecca Henderson entra nesse debate com seu novo livro, Reinventando o Capitalismo num Mundo em Chamas (recém-publicado no Brasil pela AltaBooks). Com um texto envolvente e revigorante, Henderson expõe sua visão de um capitalismo justo e sustentável e enumera as mudanças necessárias para nos fazer chegar lá. As empresas precisam abraçar um senso de propósito para além da maximização dos lucros, encontrar novas oportunidades de negócios para fazer frente às necessidades da sociedade e levar em conta o bem-estar de todas as partes interessadas. Os investidores devem focar o longo prazo e considerar os impactos sociais e ambientais. E os governantes têm de regular o mercado de maneira mais rigorosa e impor um imposto sobre carbono. Por fim, todos os setores precisam atuar em conjunto para enfrentar os desafios globais por meio de ação coletiva. Henderson sustenta que tais mudanças não apenas criariam um mundo melhor, mas também proporcionariam empresas mais lucrativas e uma economia mais vigorosa.

Ainda que seu plano possa parecer impossível, o otimismo de Henderson está calcado num profundo conhecimento como estudiosa que tem atuado junto a líderes empresariais. Professora renomada da Harvard Business School (HBS) e já há muito prestando consultoria a CEOs de corporações globais, Henderson traz uma compreensão pormenorizada do modo como operam corporações, investidores e nosso sistema capitalista. Seu curso de MBA intitulado “Reconfigurando o capitalismo” (concebido com seu colega George Serafeim) inspirou este livro.

Existem evidências consideráveis de que as mudanças que Henderson defende já estão começando a aparecer. Larry Fink, CEO da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, tem insistido em que as empresas devem ter um propósito para além de gerar lucro. Muitas empresas adotaram a ideia de criar valor partilhado mediante a busca de estratégias competitivas baseadas em impacto social (abordagem inicialmente descrita por mim e pelo meu colega professor da HBS Michael Porter num artigo de 2011 da Harvard Business Review). Há uma dinâmica crescente para que investidores e líderes empresariais atentem para o desempenho de longo prazo. Iniciativas de impacto coletivo e parcerias público-privadas são cada vez mais comuns.

Mas se todas essas recomendações são boas para os negócios, por que tantas empresas resistem tenazmente às mudanças? O trabalho que Henderson realizou anteriormente é aqui relevante. Ela é especialista no modo como empresas enfrentam mudanças radicais. Por exemplo, por que a Kodak, que foi a primeira a inventar a fotografia digital, terminou em falência? Ou como foi que a Nokia, que produzia mais da metade dos telefones celulares do mundo, acabou surpreendida pela Apple?

A resposta de Henderson opera uma distinção entre inovação incremental, que é fácil, e inovação arquitetural, que requer uma reconsideração profunda das relações entre componentes num sistema. A Kodak poderia construir uma câmera melhor, mas jamais foi capaz de apreender a ideia de que uma câmera pode se tornar parte de um telefone, o que tornou obsoletas quase todas as operações da empresa. Diante das pressões do dia a dia, ninguém tem tempo de reconfigurar uma empresa inteira. É difícil até mesmo visualizar quais mudanças seriam requeridas, já que o conhecimento arquitetural se torna profunda e invisivelmente incorporado à estrutura da empresa.

A inovação arquitetural se parece muito ao que nós, no setor social, temos chamado de “mudanças sistêmicas”. Na verdade, um modo de descrever este livro é como uma abrangente abordagem de mudança sistêmica visando a refazer o capitalismo, que, de uma “destruição do mundo e do tecido social a serviço do dinheiro fácil”, como escreve Henderson, passa a ser uma “construção de prosperidade e liberdade no contexto de um planeta habitável e de uma sociedade saudável”.

Os céticos do capitalismo vão se identificar com as afiadas críticas de Henderson, enquanto seus partidários vão apreciar a visão de futuro por ela esboçada, de um capitalismo nobre e mais construtivo. A promessa do livro é ir além dos debates superficiais e reducionistas quanto a ser o capitalismo bom ou mau e chegar a uma discussão mais profunda sobre o que seria preciso para redirecionar seu inegável poder a uma equidade e sustentabilidade. Afinal de contas, o capitalismo retirou mais de um bilhão de pessoas da pobreza extrema e proporcionou tecnologias que teriam sido inimagináveis um século atrás. Se existe um meio de domar essa fera a serviço de um mundo melhor, certamente vale tentar.

Ao contrário de outras críticas recentes ao capitalismo, como a do Os Vencedores Levam Tudo: A farsa de que a elite muda o mundo, de Anand Giridharadas, Henderson centra seus esforços em soluções. Valendo-se do método de caso da HBS, ela ensina por meio de complexas histórias da vida real. Não promete que a solução vá ser fácil ou mesmo alcançável e nem todas as histórias têm um final feliz. Ainda assim, mesmo que a transformação de que necessitamos não seja fácil nem certa, é extremamente útil dar-nos uma visão clara das mudanças interdependentes que alinhariam empresas, investidores, ativistas e governo a serviço de um capitalismo justo e sustentável. É difícil mirar num objetivo sem saber como ele se parece.

 

REINVENTANDO O CAPITALISMO NUM MUNDO EM CHAMAS
Por Rebecca Henderson
Editora Alta Books; 1a edição, 2022

 

Henderson vê as mudanças climáticas, a extrema desigualdade de riquezas e a desagregação das instituições da família, da fé e do governo como os três maiores desafios que o mundo enfrenta. O capitalismo global “saiu dos trilhos”, ela argumenta, e a primazia do acionista tem chegado a um ponto em que “muitas das empresas do mundo acreditam ser seu dever moral nada fazer pelo bem público”.

Henderson explica o raciocínio falacioso que nos conduziu a uma armadilha, qual seja a destruição da nossa fé no governo pelo equívoco dos CEOs em pensar que sua única responsabilidade é maximizar a renda dos acionistas, o que motiva os gestores de investimento a manter o foco no curto prazo e a fazer campanha para que a elite se livre de impostos e suas empresas, de regulamentação.

Chegar a um capitalismo justo e sustentável demanda cinco mudanças. E a maior parte do livro é dedicada a mostrar, por meio de exemplos, como essas mudanças poderiam se dar e o grau em que já estariam se dando. Em primeiro lugar, as empresas podem criar valor partilhado mediante a busca de modelos de negócios que criem valor simultaneamente para os negócios e para a sociedade. Empresas inovadoras que têm repensado suas estratégias para criar resultados sociais e ambientais positivos efetivamente trabalham melhor do que aquelas aferradas a abordagens mais convencionais.

Desse modo, também, empresas “high road”, que procuram confiar nos funcionários, pagar bem, oferecer benefícios, além de dar autonomia e oportunidades de crescimento, são mais lucrativas do que empresas “low road”, que tratam os funcionários como engrenagens sem rosto numa máquina, prescrevendo cada movimento deles e pagando o mínimo.

Por que motivo nem todas as empresas criam valor partilhado e tomam a high road (autoestrada)? Será que estamos mergulhados demais em nosso modo de pensar antiquado para reconhecer a oportunidade, assim como a Kodak foi incapaz de migrar para as câmeras de celular?

A resposta, e segunda proposição de Henderson, é a de que as únicas empresas capazes de fazer mudança arquitetural tão radical são as comprometidas com um propósito que vá além do lucro. É esse senso de propósito que confere a líderes de empresas a visão e coragem para fazer mudanças sistêmicas. Comprometer-se com um objeto social, segundo Henderson, é ela própria uma mudança arquitetural.

A terceira proposição é reconectar as finanças, e isto requer que nossos sistemas de contabilidade financeira incluam métrica social e ambiental, que os investimentos de impacto continuem o seu crescimento e que a gestão da empresa seja mais protegida da pressão do investidor de curto prazo.

Mudar o comportamento do investidor pode parecer algo impossível, porém Henderson salienta que a concentração de poder de investimento é tão grande – os 15 maiores gestores de investimento juntos direcionam metade da riqueza do mundo – que um punhado de pessoas poderia mudar as práticas de investimento global da noite para o dia.

A quarta proposição é a construção de cooperação, porque nenhuma empresa individual pode enfrentar sozinha os desafios do mundo. Consórcios industriais podem criar soluções, como os esforços da Unilever em unir indústrias de bens de consumo para combater o desmatamento para a produção de óleo de palma. Mas Henderson é honesta quanto às limitações de tal autorregulação, e o combate ao óleo de palma tem tido resultados desiguais. A autorregulação funciona apenas quando os benefícios são claros para todos, quando os participantes estão comprometidos com o longo prazo e quando os transgressores são punidos.

Finalmente, esses problemas não podem ser resolvidos sem governo. Modelos de governo inclusivo, que são democráticos e priorizam o bem-estar do cidadão, criam maior prosperidade e crescimento econômico mais intenso do que modelos extrativos, pelos quais o governo atua apenas em função dos interesses da elite. Henderson usa os exemplos reconhecidamente homogêneos da Dinamarca e Alemanha para fazer essa observação. Mas acrescenta também as Ilhas Maurício, que tiveram uma sociedade altamente diversificada e um histórico de escravidão. Porém, depois que rebeliões derrubaram o regime extrativista, um modelo de governança inclusivo conduziu a décadas de forte crescimento econômico, redução da desigualdade de renda e uma taxa de pobreza que caiu de 40% para 11%.

Esses cinco elementos de um capitalismo reconfigurado podem realmente se realizar no mundo que temos hoje? Os estudos de caso por vezes sugerem que tudo que necessitamos é de um líder com uma visão clara para intervir e assumir responsabilidade. Na maior parte dos exemplos, contudo, uma crise de algum tipo desencadeou a mudança – como uma tragédia pessoal, uma crise financeira, um protesto espetacular do Greenpeace ou, no caso particular das Ilhas Maurício, uma revolução. Mesmo assim, a transição por vezes leva cinco ou dez anos.

Se uma crise é necessária para desencadear uma reforma fundamental do capitalismo, poderia o coronavírus ser o catalisador? A pandemia certamente demonstrou o papel essencial do governo e a ação coletiva para sustentar o capitalismo. Se líderes de empresas e investidores alguma vez se iludiram pensando que seu sucesso não dependia do bem-estar da sociedade, seu erro está agora à vista de todos. Seria promissor pensar que os temíveis números que o vírus assumiu em vidas humanas poderiam conduzir a uma reconfiguração fundamental do capitalismo, como as linhas de Henderson sugerem. Se a economia global continua moribunda, ela pode realmente dar origem a uma fé renovada no governo e a uma versão mais benéfica do capitalismo. Em contrapartida, se esse desastre não for suficiente, é realmente assustador pensar na crise que seria necessária.

Mas uma crise por si só não é suficiente. Nós também precisamos ser inspirados, e a visão de Henderson é tão convincente que o leitor é instado a ajudar na sua realização. O capítulo final, “Pedrinhas numa Avalanche de Mudança”, traz cinco gestos simples que cada um de nós pode realizar para contribuir com o esforço: descobrir o seu próprio propósito; colaborar com aqueles que compartilham de seus objetivos; trazer seus valores para o trabalho; trabalhar para uma ONG que exponha empresas, para levá-las a agir ou para que um investidor de impacto financie a mudança; e ter em mente que você não pode mudar o mundo sozinho. Pode apenas fazer a sua parte. Eu mesmo estou tentando seguir o conselho dela, promovendo as mudanças que ela propõe entre empresas e investidores com meu trabalho na FSG e na HBS. Essas mudanças têm de vir o mais rápido possível.

O AUTOR

Mark R. Kramer é cofundador e diretor-executivo da empresa de consultoria FSG e professor sênior da Harvard Business School. É autor de numerosos artigos na Stanford Social Innovation Review, incluindo “Impacto Coletivo”, na edição do inverno de 2011.



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