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Um Conceito em Discussão

Um trecho do livro “Inovação Social em tempos de soluções de mercado”, que aborda a compreensão crítica do conceito de inovação social e seu papel frente ao setor privado.

Por Fábio Deboni

inovação social em tempos de soluções de mercado
Inovação Social em tempos de soluções de mercado
Fábio Deboni
100 páginas, Paco Editorial, 2022
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Inovação Social está em alta. Fala-se tanto do assunto, mas será que falamos sobre a mesma coisa?

Os tempos atuais são complexos. Os problemas sociais e ambientais ganham escala e urgência. Antes vinculadas à atuação da sociedade civil ou do Estado, esses temas foram sendo incorporadas por outros setores, dentre eles, as empresas e o mercado. Junto deles, as chamadas soluções de mercado ganham destaque.

Dentre as muitas expressões destas soluções de mercado, os chamados negócios de impacto (ou negócios sociais) recebem bastante atenção no momento. Eles e tantas outras expressões e maneiras de atacar problemas socioambientais se abrigam sob o guarda-chuva da inovação social.

 Diante da presença cada vez maior do setor privado neste tabuleiro, restará à sociedade civil atuar a serviço do mercado? Será este o lugar reservado à ela neste complexo tabuleiro da inovação social?

Afinal, de qual inovação social estamos falando? Ou de quais inovações sociais? – Fábio Deboni

***

Sob o lema “Mudar o mundo”, em alta na atualidade, é possível encontrar múltiplas expressões e abordagens. Do velho campo das ONGs (hoje sociedade civil), passando pelos emergentes negócios de impacto, pelas empresas B, pela lógica ESG e por outras expressões que emergem com cada vez mais força, para quem hoje desembarca neste universo certamente encontra um tabuleiro muito mais complexo e diverso. Mesmo entre quem já se encontra convertido à ideia de “mudar o mundo”, há diferentes idiomas sendo falados. 

Daí a opção por começar a destrinchar esse emaranhado de conceitos e de expressões pela inovação social, assumindo inclusive ela como título do livro. Reconhecendo que a inovação social talvez seja o guarda-chuva temático que melhor abarca toda esta diversidade de abordagens. Como em qualquer área do conhecimento, essa não é uma premissa cem porcento definida e, portanto, passível de tantas outras percepções e caminhos para organizar esta lógica de pensamento. Reconheço e acolho essa divergência, deixando claro ao(à) leitor(a) qual é a escolha que faço, pois ela guiará a sequência do livro. Muito se tem falado sobre inovação social, afinal os dois termos (inovação e social, e como veremos mais adiante, o ambiental está aí incluso) parecem estar em alta, ainda que com significados diferentes e até mesmo contraditórios. Eu os vejo como sendo o guarda-chuva que abarca essa multiplicidade de expressões que, no final do dia, almejam “mudar o mundo”. A opção por assumir a inovação social neste lugar de guarda-chuva parte da premissa que ele deve abrigar não somente as soluções de mercado, mas também outras abordagens não mercadológicas (as políticas públicas, a sociedade civil, dentre outras).  

Comecemos então pelo conceito² . Afinal, de onde vem a ideia da inovação social e quais suas compreensões? Vamos por partes, voltando alguns milênios para resgatar como o conceito de inovação (ainda sem o “social”) era utilizado. Na Grécia antiga o termo originalmente denominado como kainotomia estava mais vinculado a uma raiz religiosa e tinha significado essencialmente político-filosófico e contestador: visava introduzir transformações na ordem política e social vigentes. Parêntesis necessário: nada mais adequado na atualidade, convém frisar, ainda que passível de despertar polêmicas e divergências entre entusiastas da inovação social. 

Por volta dos séculos 3 e 4 (d.C.) o termo inovação foi inserido no vocabulário latino já com conotação de renovação (innovo), sendo seu uso essencialmente positivo: do lado espiritual (a busca por uma alma mais pura e sem pecado) e do lado jurídico (uma espécie de repaginação do arcabouço legal então vigente, considerado ultrapassado). 

A terceira onda desta trajetória vem na era da Reforma Protestante (início de 1500) quando o conceito se tornou mais próximo do cotidiano das pessoas. Neste período ele foi adotado inicialmente com um caráter de controle – inovações não seriam toleradas pelas Coroas e pelos detentores do poder político, religioso e econômico de então. Não eram aceitas quaisquer tentativas de transformação da doutrina vigente na época, sob pena de punições severas. 

Ao longo deste período – 1500/1600/1700 – o conceito serviu a interesses políticos e eclesiásticos, adquirindo caráter de acusação. O próprio Rei Charles I (1625-1649) foi acusado de ser inovador demais. Neste período arcebispos, bispos e parlamentares acusavam puritanos, católicos e separatistas por inovarem na religião e no governo. Daí o termo ter se tornado polêmico e vinculado a práticas consideradas inadequadas e condenáveis. Curiosamente, neste período a inovação parece ter adquirido um significado totalmente oposto à sua origem, na Grécia antiga. O que antes era um chamado à contestação do status quo, passou a ser o de aceitação do status quo. 

Saltando para o século XX o termo inovação se torna mais amplamente aceito. Neste período seu significado adquire outros contornos, via de regra vinculado à ideia de progresso social, material e político. O que era então considerado um perigo e uma insurgência passa a ser visto como algo bem-vindo e necessário. As teses positivistas de Augusto Comte (1798-1857) exerceram forte influência posterior ao conceito de inovação. Segundo o autor, o progresso social era resultante do espírito inovador. 

Possivelmente o conceito de inovação do século XX seja o que mais se assemelhe ao imaginário senso comum de inovação que nos permeia na atualidade. Ainda hoje se identificam visões majoritárias de inovação como sendo sinônimo de tecnologia (digital), de progresso material e econômico, e de otimização de processos produtivos. Podemos considerar que inovação é também isso, mas não se resume a estas dimensões, como veremos mais adiante. 

No pós-segunda Guerra (segunda metade do século XX) o conceito avança tanto na esfera das organizações (públicas e privadas) quanto na individual. É produzida literatura sobre o tema, trazendo novas camadas ao seu significado: emerge a agenda de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e identifica-se a necessidade de que se crie um mercado para comercializar essas inovações que estavam ganhando corpo. Em nome do crescimento econômico a inovação se transforma numa questão de mercado e parece assumir com força este papel. 

A partir da década de 1980, no entanto, esta lógica passa a receber visões críticas, questionando seu viés majoritariamente vinculado ao mercado, à tecnologia e à indústria. Emergem daí provocações na linha do: será que a sociedade necessitava, naquele momento, apenas de inovações a serviço do crescimento econômico? A serviço de quem estariam essas inovações? É neste período que novos termos são propostos em adição à palavra inovação: disruptiva, aberta, responsável, sustentável. Via-se a necessidade de qualificar com mais profundidade essa inovação, já desgastada e insuficiente para endereçar todos os aspectos da sociedade. 

Embora estes adjetivos acoplados à inovação também tenham se tornado vazios de significado, a intenção por trás deste esforço passava pela tentativa de ressignificar a própria inovação. De modo geral, estes adjetivos buscaram agregar dois aspectos-chave neste esforço de ressignificação: processo e resultado. Em suma, a tese defendida era a de que qualquer inovação deveria almejar endereçar questões relevantes para a sociedade (e não apenas ao mercado e ao crescimento econômico) – resultado – e que a maneira como essa nova inovação seria conduzida deveria ser coerente com os resultados de transformação que eram esperados. 

O primeiro aspecto-chave (processo) diz respeito à maneira como essa inovação ocorre. Na perspectiva da inovação social, a forma como uma inovação é feita é tão importante quanto o resultado almejado, afinal busca-se desencadear resultados relevantes para a sociedade que igualmente sejam construídos e conduzidos de forma coerente ao modelo de sociedade que se almeja alcançar. Em outras palavras, um processo democrático, inclusivo, participativo. 

O segundo aspecto (resultado) dá ênfase ao propósito deste tipo de inovação, evidenciando componentes sociais, éticos e ambientais. Esta inovação deve ser social, responsável e sustentável em suas finalidades e não somente de cunho econômico ou material, nem tampouco estar unicamente e a serviço do mercado, como se preconizava até então. Para alguns, aqui se identificaria uma possível ruptura da inovação social com as soluções de mercado (para questões socioambientais), o que me soa como uma conclusão incorreta e precipitada. O que a inovação social faz ao incorporar o social à inovação é justamente demarcar que não apenas por meio da lógica do mercado que estas questões devem ser enfrentadas. Ao fazê-lo, abre-se espaço para novas abordagens para além das de mercado. Para ser intelectualmente honesto, é preciso explicitar que outras visões são encontradas na literatura (estrangeira) sobre o campo da inovação social que divergem deste ponto de vista. 

Dos vários adjetivos acoplados à inovação, o social foi possivelmente o último a ser empregado. Embora a expressão – inovação social – já fosse conhecida desde meados do século XIX, ela carregava compreensões distintas das atuais. Era interpretada como sinônimo de socialismo e como uma subversão à ordem social vigente (retomando suas origens gregas). Em 1888 uma popular edição da Enciclopédia Britânica incluiu o termo dentro da definição de comunismo: “comunismo é o nome dado aos esquemas de inovação social que têm como ponto de partida a tentativa de derrubar a instituição da propriedade privada”³.

Nada mais curioso notar essa vinculação histórica do conceito de inovação social ao conceito de comunismo, ainda que nos tempos atuais esse tipo de proximidade possa mais atrapalhar a disseminação da agenda da inovação social do que ajudar, em função da desinformação ideológica que o termo comunismo recebe. Por outro lado, nota-se claramente que o caráter de contestação da ordem social e econômica vigente, características que permeiam a inovação (social) ao longo dos séculos, segue ali presente. 

Por fim, vale frisar que embora o termo acoplado seja o social, há plena convergência de que ele abarca as múltiplas dimensões do então conceito de sustentabilidade – o social, o ambiental, o cultural, o ético, etc. Não estou enfatizando o econômico pois, como vimos, ele já estava bastante bem representado no conceito de inovação e segue aí presente. Não é incomum, portanto, encontrar a expressão “inovação socioambiental”, a qual busca enfatizar explicitamente a presença do componente ambiental dentro do conceito de inovação social. Em todo o livro, caro(a) leitor(a), considere o conceito de inovação social incorporando a dimensão ambiental, ética, cultural, dentre outras. Seguirei adotando o termo “inovação social” pois é o termo que globalmente se utiliza, o que permite seguir tecendo comparações e conexões entre as diferentes regiões do globo.

Afinal, o que é Inovação Social?

Como vimos, o caráter contestador político-social da inovação social está presente desde suas origens na Grécia antiga, embora esse histórico não seja muito conhecido por entusiastas do tema. Mas, afinal, o que se entende por inovação social? 

Como costumo dizer, escolha um conceito para chamar de seu e siga em frente tentando colocá-lo em prática. Menos do que uma discussão teórica, embora eu reconheça seu lugar e importância, a ênfase que quero dar aqui é o que fazemos com um dos tantos conceitos de inovação social disponíveis. 

Portanto, deixo aqui a compreensão de inovação social que tem me guiado até aqui, como sendo: novas, inclusivas e colaborativas abordagens para enfrentar problemas complexos. 

Obviamente, o(a) leitor(a) me questionaria de imediato: mas onde estão as questões socioambientais neste conceito? E eu concordaria emendando que na expressão “problemas complexos” estariam contidas as dimensões socioambiental, democrática, civilizatória, sob pena de não nos diferenciarmos da vala comum da inovação convencional.

Portanto, a síntese mais precisa a meu ver (e neste momento, visto que o conceito é vivo, e está em franca construção) sobre o que vem a ser inovação social, seria: novas, inclusivas e colaborativas abordagens para enfrentar questões sociais e/ou ambientais. 

Fica a gosto da freguesia se prefere também embutir no final da frase outros qualificadores destas questões, tais como globais/ locais, civilizatórias, etc. Para mim não fazem falta, embora eu as reconheça ali onipresentes. 

Agora que já temos um conceito para chamar de nosso ou ao menos para balizar nossa conversa, poderíamos nos perguntar: afinal, de que forma ele influencia nossas práticas? 

Antes de explorar esses componentes presentes no conceito, vale frisar que tal como na história da inovação, é possível encontrar na atualidade inúmeros outros conceitos de inovação social. Uma busca pela internet, pelo universo acadêmico ou por outras bandas, permitirá ao(à) leitor(a) encontrar diversas outras compreensões sobre inovação social. Algumas mais à direita, outras mais à esquerda, digamos. Algumas mais plasmadas na lógica de mercado, quase como um sinônimo de empreendedorismo social (e afins), outras mais rebuscadas do mundo acadêmico. Como em qualquer área do conhecimento, não há um único conceito, uma única abordagem. 

Além disso, ao longo das duas décadas de 2000 a 2020, o ecossistema europeu de inovação social (minha principal referência) produziu intenso repertório sobre o tema. É possível encontrar vasto repertório de referências, publicações e iniciativas superinteressantes sobre o tema. Esse processo, no entanto, acabou gerando uma armadilha que a própria inovação social procura evitar: a especialização temática e setorial e, portanto, o esvaziamento da sua capacidade de propor leituras mais sistêmicas e profundas sobre as realidades sociais, econômicas, culturais, políticas e ambientais dos nossos tempos. Veremos mais adiante essa questão. 

Ao longo deste rico e produtivo período diversas iniciativas foram geradas na perspectiva de ressignificar a inovação social, a partir do contexto europeu. Dentre essas várias iniciativas vale destacar: Atlas de Inovação Social⁴; Projeto SI Drive⁵; Projeto Sike⁶, dentre diversas outras redes e projetos⁷. 

Ao longo deste período floresceu um boom de debates, materiais e reflexões sobre inovação social inicialmente a partir de uma visão mais panorâmica para, em seguida, ser direcionada para diferentes verticais temáticas: inovação social na educação, no Ensino superior, no mundo do trabalho, na habitação, etc. Em outras palavras, o termo inovação, que já havia recebido o termo social, passou a ser acoplado a outros termos e áreas temáticas, com a boa intenção de tentar materializar ainda mais a abstrata formulação do conceito e tangibilizar sua aplicação (da inovação social) junto a agendas temáticas com desafios claros a serem enfrentados e respectivas fontes de recursos (no âmbito da União Europeia).

Esta encruzilhada temática onde o movimento da inovação social europeu se colocou parece ilustrar o momento de aparente refluxo que ele se encontra, impulsionado obviamente pelo contexto da pandemia. Avançou-se tanto na compreensão, reflexão e mapeamento de iniciativas de inovação social ao longo dos últimos anos; somas expressivas de recursos fomentaram diversos projetos, iniciativas nacionais foram criadas e o momento atual parece ser o de certa ressaca. Afinal, todo esse esforço tão bem empreendido resultou em quais mudanças nos problemas socioambientais e civilizatórios que a Europa enfrenta? Ajudou a mexer ponteiros destes problemas? Esta talvez seja uma das questões na mesa neste momento entre atores-chave deste movimento. Afinal, a inovação social produziu que tipos de resultados no enfrentamento ou mitigação destes vários problemas que a Europa vem lidando ao longo deste período? 

Enquanto lá o cenário seja este, no chamado sul global (em especial na América Latina e no Brasil, que é de onde focarei minha reflexão) seguimos ainda sedentos pela oferta de espaços de reflexão e discussão sobre o conceito de inovação social e suas múltiplas vertentes e aplicações práticas numa região repleta de problemas sociais, ambientais e civilizatórios. Enquanto na Europa estes aspectos já foram endereçados, aqui parece haver certa suposição de que estejamos na mesma página, o que não parece refletir necessariamente a nossa realidade. 

Na nossa região, em especial no Brasil, parece haver certo entendimento sobre o que seria inovação social, ainda que sequer tenhamos um conceito debatido e sedimentado por aqui. Não à toa e com certa facilidade se encontra a expressão “inovação social” com múltiplos significados, em geral como sinônimo de empreendedorismo social e/ou de negócios de impacto socioambiental. Observa-se a expressão sendo utilizada como selo para qualificar determinados projetos como sendo inovadores. Como vimos no histórico do tema, resumir a inovação social à vertente do empreendedorismo social ou empregá-la como um selo de “boas práticas” estão longe de significar toda sua potência. Como vimos, a inovação social emerge justamente com a intenção de questionar a finalidade da inovação meramente a serviço do crescimento econômico e do mercado. Obviamente a agenda do empreendedorismo social e dos negócios de impacto busca ir além desta finalidade, assumindo para o seu núcleo impactos sociais e/ou ambientais positivos para a sociedade e para o planeta, no entanto, restringir a inovação social a apenas esta vertente seria simplificar muito seu conceito. 

No momento em que estamos – de crises econômica, social, ambiental e sanitária – a América Latina e em especial o Brasil lidam com um cenário bastante desafiador. De um lado, uma coleção de problemas civilizatórios – dos antigos (de séculos anteriores desde o período colonial) aos recentes (pré, durante e pós-pandemia da covid-19); e de outro lado os Estados nacionais com limitada capacidade de financiar políticas públicas para enfrentar estes problemas. Neste tabuleiro temos ainda a sociedade civil numa encruzilhada, buscando novas maneiras de se financiar e de se manter relevante frente à dinamicidade dos problemas e também enfrentando retrocessos autoritários e antidemocráticos em muitos países da região. Além dela, o setor privado parece cada vez mais se reconhecer como um player ativo nestas agendas, ainda que, no entanto, siga num claro dilema entre equilibrar seus interesses econômicos de curto prazo e sua potencial contribuição à esfera pública e às questões socioambientais.

É neste emaranhado de setores e atores que a agenda da inovação social se apresenta no contexto latino-americano. Traz consigo um potencial enorme de ressignificar esse rol de problemas e de práticas, e, ao mesmo tempo, busca se firmar como uma agenda em si capaz de propor novas maneiras de articular esse conjunto de atores de modo a encontrarem arranjos mais complexos e mais múltiplos de atuação.

Enquanto isso, esta mesma agenda da inovação social segue em busca de espaços de construção de compreensões sobre si. Para que ela possa se firmar, é preciso construir entendimentos mais convergentes sobre qual é esta agenda e o que ela propõe como tal. Será que todo o aprendizado gerado a partir da experiência europeia pode nos ajudar a encurtarmos etapas em nossa caminhada por aqui? 

Os problemas da inovação social tupiniquim

Além do aspecto conceitual, abordado até aqui, temos pelo menos mais um problema na agenda da inovação social no Brasil. Vou me ater mais no contexto brasileiro, que por si só já é suficientemente complexo e diverso, mas eventualmente algumas ideias aqui desenvolvidas possam fazer sentido para outros países latino-americanos. 

Quem compõe o tal ecossistema de inovação social? Ele seria uma somatória de subecossistemas afins?

Note que a questão central passa pela palavra da moda – ecossistema(s). Retomando referências europeias me dá uma certa angústia ver que há cases em diferentes países e cidades do norte global apresentando como o tal ecossistema de inovação social local foi mapeado e fomentado; quais são os atores-chaves que o compõem, papéis e responsabilidades de cada um, como se financia esse tipo de iniciativa, etc. Tudo isso está devidamente sistematizado e disponível⁸. O que se observa nestes estudos é que há uma ampla diversidade de atores e organizações que costumam compor esses ecossistemas locais de inovação social, nos quais os empreendedores sociais e os negócios de impacto são apenas um dos atores. Daí decorre uma pergunta para refletirmos olhando para nossa realidade tupiniquim: afinal, temos um ecossistema de inovação social por aqui? Onde? Quem faz parte?

Estas perguntas nos levam a refletir sobre quais atores/setores teriam legitimidade e potência para pautarem um arranjo ecossistêmico deste tipo? Uma suposta mobilização partiria de quem? Da sociedade civil? Da universidade? Do governo? Das empresas?

A experiência de outros países (da Europa) nos mostra que independente do ator que busca dinamizar esse processo, é de praxe que haja um claro envolvimento do poder público como um ator-chave nesse processo, em especial colocando recursos (financiamento), em menor ou maior grau. Afinal, alguém precisa pagar essa conta e isso, no contexto europeu, é marcadamente assumido pelo poder público, em geral, com uma boa forcinha de recursos da União Europeia, convém lembrar.

Vejamos o caso da Portugal Inovação Social, uma agência criada anos atrás com a missão de fomentar esta agenda no país e que conta com alguns milhões de Euros para potencializar o ecossistema local. Não é minha intenção nem discorrer sobre essa iniciativa, nem tampouco refletir se ela se mostrou acertada ou não. Conversando com alguns atores de Portugal, é possível identificar visões positivas e críticas sobre a atuação da Portugal Inovação Social. Nem tudo são flores na estratégia desenhada e na sua implementação, ainda que, como costumo dizer, como uma agência como esta faz falta no Brasil! Como um recurso expressivo como o da União Europeia (para fomentar a Portugal Inovação Social) faz falta à realidade brasileira! Lamentos à parte, voltemos ao racional.

Olhando para os atores-chave e considerando que parece ser uma premissa que o poder público participe ativamente deste processo, caberia então perguntar: como contar com o poder público no Brasil atual? Com quem podemos contar em âmbito federal? E nos âmbitos estadual e municipal?

Convém lembrar que nenhum governo é monolítico e, por pior que seja a penetração desta agenda socioambiental no atual contexto brasileiro, sempre é possível encontrar espaços de interlocução e de possibilidades. Como vimos, a presença Estatal costuma ocorrer (não exclusivamente) por meio de financiamento (fomento) a esta agenda, notadamente por meio de recursos não reembolsáveis e quando reembolsáveis, com condições de repagamento bastante camaradas. Ainda que potencialmente o Estado disponha de condições para fomentar essa agenda, voltamos à questão anterior: qual seria o locus responsável por este papel no Brasil atual? Na ausência de uma Portugal Inovação Social por aqui, quem deveria tocar este bumbo? Apesar de nossas semelhanças com Portugal, nossa realidade é bem diferente e seria bastante razoável pensar numa multiplicidade de órgãos tocando este bumbo de forma articulada e coordenada. Para o contexto atual, nada mais improvável e incerto, infelizmente. Não à toa diversas iniciativas de articulação de entes públicos em âmbito subnacional têm emergido nos últimos anos no Brasil, justamente visando suprir a lacuna de liderança para temas sociais e/ou ambientais (e afins).

Sem lenço, nem documento

O(a) leitor(a) há de convir que o cenário atual para a inovação social no Brasil não é dos mais animadores, embora o tema siga em alta. Desta forma, resta à inovação social um espaço marginal e uma cena mais independente. Aliás, esta tem sido a ginástica que tenho feito de escavar mais fundo este tema há tempos, na linha do faça você mesmo. Não fico feliz com essa estratégia, apenas constato que é o caminho que tenho trilhado desde então. 

A ausência de um ecossistema próprio, a falta de tocadores de bumbo potentes, a falta de densidade no uso do termo, além, obviamente, da falta de fomento (leia-se recursos para mapear, compreender e disseminar o tema) fazem com que a agenda da inovação social no Brasil siga sendo marginal e pouco compreendida, em outras palavras uma terra sem dono(a). Os poucos que tentam navegar pelas suas águas turvas acabam se guiando pelos canais mais óbvios – do empreendedorismo e das soluções de mercado e do mundo da tecnologia – como sendo as expressões mais presentes e com maior campo gravitacional na atualidade (leia-se: oferta de recursos e de narrativas pró). No final do dia reforça-se a ideia equivocada de que inovação social é sinônimo de empreendedorismo social, de negócios de impacto e da adoção de ferramentas tecnológicas para lidar com questões socioambientais. Volto a frisar que inovação social também é isso, mas não se resume a isso. 

Esse talvez seja o motivo pelo qual me conectei (e me mantenho conectado) à agenda da inovação social. Ela me possibilita enxergar o sedutor campo do empreendedorismo social e dos negócios de impacto (em suma, o campo das “soluções de mercado”) com uma lente mais ampla e menos ingênua. Por meio da inovação social é possível enxergar que ser inovador no enfrentamento das questões sociais e/ou ambientais não se resume à lógica de mercado. As outras possibilidades – das políticas públicas, à formação de profissionais (via Ensino superior ou não), passando pela potência dos movimentos sociais e da sociedade civil e tantas outras – nos oferecem um leque mais amplo de caminhos, de modos de fazer e de subecossistemas que tendem a ser preteridos na lógica pró-mercado. Esse viés mais contestador e transgressor que o campo socioambiental trazia/traz em seu bojo e que a inovação social também traz em sua raiz, parece ter esvaziado estas utopias em prol de abordagens mais pragmáticas, mais gerenciais e mais afeitas à lógica do mercado. Isso talvez ajude a compreender algumas das razões que possam ter levado ao entendimento de que inovação social se resume a soluções de mercado. Veremos mais adiante que mesmo neste campo (das soluções de mercado) há dissensos e abordagens dissonantes em seu interior. Que bom. 

A necessidade de mobilização permanente de recursos para manutenção de equipamentos e projetos têm empurrado cada vez as organizações do campo socioambiental em direção ao que o mercado apoia. É o que nos diz o ditado follow the money (siga o dinheiro), nos mostrando que essas iniciativas precisam de recursos para se manterem, logo, elas por bem ou por mal precisarão adequar seus discursos, suas teorias de mudança e seus projetos ao apetite dos financiadores. Dentre eles, convém frisar, cada vez mais o setor privado vem assumindo papel central nesta prateleira de financiadores/investidores. 

Para onde vai a inovação social?

posso sair daqui pra me organizar 

posso sair daqui pra desorganizar 

Chico Science & Nação Zumbi (Da lama ao caos)

Licença poética para refletir: organizar ou desorganizar? Em outras palavras, o ecossistema e a agenda de inovação social parecem seguir para quais direções? Sim, me parece que o termo correto é no plural – direções – pois sempre há múltiplas possibilidades, ainda que já tenha ficado claro qual parece ser o caminho mais óbvio (o das soluções de mercado). Frente a esta tendência, talvez uma alternativa seja “desorganizar”, não no sentido de sabotagem, mas sim no sentido de provocar reflexões distintas deste caminho carro-chefe. Seguindo nesta linha de raciocínio e explorando melhor a proposição de outras alternativas nos caberia organizar uma estratégia robusta e um mapa da mina que nos permita colocar em marcha essa utopia. Ainda que não pareça existir respostas simples e únicas sobre qual caminho a inovação social pode seguir no Brasil (e na América Latina), é necessário fazer escolhas. Para onde eu gostaria que esta agenda fosse em nossa região? Neste momento consigo enxergar três direções complementares entre si:

a. Qualificar e adensar mais a compreensão sobre o tema, nos tirando do senso comum e do lugar onde tudo e todos se dizem como sendo de “inovação social”. Aqui convém salientar que o termo não tem dono e, portanto, cada um se apropria dele como bem entender. No entanto, um balizamento conceitual mínimo nos permitiria saber se estamos, afinal, falando a mesma língua sobre este tema, ou se seria algo na linha do washing (maquiagem);

b. Construir mais conexões e intercâmbios entre organizações e atores afins a esta agenda dentro da nossa região e dela com outros ecossistemas mais maduros no tema (tal como a Europa já citada aqui). Embora eu venha forçando a barra aqui ao mencionar a América Latina nesta reflexão, tenho clareza de que cada país da nossa região guarda sua complexidade e aspectos próprios que intercâmbios e conexões como estas permitiram que toda a região avançasse muito neste tema;

c. Refletir sobre o que/qual seria o formato mais adequado ao ecossistema de inovação social no Brasil (e na região), à luz dos aprendizados já sistematizados das experiências de outros países. 

Há muitas outras direções a seguir e na medida em que nos aprofundemos cada vez mais neste tema seremos capazes de identificar outros caminhos e outras prioridades.

O AUTOR

Fábio Deboni é engenheiro agrônomo e mestre em Recursos Florestais (Esala/USP). Atuou no governo federal – iniciativa privada e terceiro setor -, foi gerente-executivo do Instituto Sabin e, desde outubro de 2020 é diretor do Programa CAL-PSE da Aliança pela Biodiversidade/Ciat. Entusiasta do tema “inovação social”, sendo este seu quinto livro sobre o tema, publica diariamente em seu blog e em seu LinkedIn.

 

Notas

  1. Pegando carona na expressão mineira “doncovim” – de onde vim/viemos; “oncotô”- onde estou/estamos. 

  2. Para este trecho de resgate conceitual e histórico do tema essa foi a referência utilizada: Atlas of Social Innovation (2nd Volume): a world of new practices, disponível aqui.

  3. Godin, Benoît. From Innovation to X-Innovation to Critical Innovation. Atlas of Social Innovation. 2nd volume, p. 12-15. Disponível aqui.

  4. Disponível aqui.

  5. Disponível aqui.

  6. Disponível aqui.

  7. Convém destacar o papel da Young Foundation, no Reino Unido, com o Open Book da Inovação Social e a fundação da SIX.

  8. Só para citar uma referência, dentre inúmeras disponíveis, ofereço este estudo sobre o caso de Viena, na Áustria. Disponível aqui.



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