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As múltiplas camadas de discriminação

Adotar uma abordagem interseccional que englobe gênero, raça e classe e mostre como essas dimensões se mesclam e afetam as oportunidades disponíveis para as mulheres é o caminho para a equidade de gênero

Por Maira Petrini e Ana Clara Souza

Ela trabalhou por quase 17 anos no mundo corporativo e sofreu discriminação por ser mulher, nordestina e negra. Oitava de uma família de dez filhos e natural de Igreja Nova, sertão de Alagoas, migrou com a família para Diadema, município da Região Metropolitana de São Paulo, na década de 1970. Começou a trabalhar ainda criança para ajudar em casa, conseguiu cursar a faculdade a muito custo e, depois de formada, ingressou em uma grande corporação. Três questionamentos foram recorrentes em sua trajetória: estudou em boa escola?, fala inglês?, fez uma faculdade de primeira linha?. Com o passar do tempo, contornadas essas barreiras do padrão exigido pelo mercado, foi conquistando cargos. Construiu carreira, mesmo com todas as dificuldades, mas vivenciou e continua vivenciando episódios das mais variadas formas de discriminação imagináveis. Certa ocasião, em entrevista buscando uma promoção, ouviu de um diretor que seu currículo era perfeito, assim como seu desempenho e sua história. No entanto, era uma pena ser mulher. Ele queria um homem para a vaga.

O caso de Ana Fontes está longe de ser exceção. Ao ser uma das poucas selecionadas para o Programa 10.000 Mulheres, uma parceria entre a FGV e a Goldman Sachs (35 mulheres aprovadas entre mil inscritas), Ana descobriu-se entre um misto de felicidade e incômodo. O desconforto fez com que começasse a escrever e compartilhar em um blog aquilo que aprendia. Ao final de um ano, cem mil mulheres engajaram-se com a temática, acompanhando as postagens. Era o início da Rede Mulher Empreendedora (RME), primeira e maior rede de apoio a empreendedoras do Brasil. Em 2017, fundou o Instituto RME para capacitar mulheres em vulnerabilidade social, com foco em empreendedoras negras, trans, que moram em comunidades ou com mais de 50 anos. Seu propósito segue o mesmo: fomentar o protagonismo feminino no empreendedorismo, auxiliar quem quer empreender e quem deseja se inserir no mercado de trabalho.

O movimento iniciado por Ana Fontes ilustra a questão central deste artigo: a necessidade de combater a discriminação de gênero, uma realidade naturalizada e recorrente.

Para enfrentar esse desafio, propomos a exploração de mecanismos e de finanças inovadoras que priorizem a equidade na distribuição de recursos, visando a um impacto social significativo contra a discriminação de gênero. Por meio de exemplos concretos, debatemos não apenas a discriminação e a desigualdade de gênero, mas também o empreendedorismo feminino e sua interação com as finanças.

Nossa reflexão enfatiza a necessidade de adotar uma abordagem interseccional que englobe gênero, raça e classe e mostre como essas dimensões se mesclam e afetam as oportunidades disponíveis para as mulheres.

Por fim, destacamos a importância das redes de apoio e colaboração no aprendizado e em avanços significativos na abordagem da problemática lançada.

 

Discriminação e desigualdade de gênero

 

A discriminação de gênero se manifesta quando indivíduos recebem tratamento desigual ou desvantajoso devido a seu gênero, um problema que se fundamenta em estereótipos e concepções errôneas sobre as expectativas relacionadas a gênero. Esse fenômeno transcende a mera discriminação sexual, englobando preconceitos contra a identidade de gênero ou a maneira como alguém expressa seu gênero. Tal discriminação muitas vezes confunde gênero com sexo biológico, impondo expectativas baseadas em características físicas. Contudo, como destaca o SHARE, entidade da Stanford University dedicada a combater o assédio e a violência sexual na comunidade acadêmica, é inaceitável discriminar alguém com base em percepções de gênero.

Em 2021, a pesquisa Por Ser Menina ouviu 2.589 meninas e meninos de 14 a 19 anos, de dez cidades das cinco regiões brasileiras. Lançada pela Plan International e executada pela Tewá 225, a investigação destacou que 69,4% do público feminino ouvido sente seus direitos desrespeitados  por  serem  meninas/mulheres. Além disso, 67,2% relataram realizar o dobro de trabalho doméstico em relação aos meninos. Essa diferença precoce é base para que outras discrepâncias de gênero aconteçam ao longo da vida.

 

A interseccionalidade não se resume a gênero e raça. Ela envolve a multiplicidade de identidades de uma pessoa ao analisar questões sociais, políticas e econômicas, reconhecendo que as formas  de discriminação estão interligadas e podem se reforçar mutuamente

 

O potencial negativo da discriminação de gênero tem impacto até mesmo no combate às crises climáticas, conforme o Relatório Global SIGI 2023 “Igualdade de Gênero em Tempos de Crise”, divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O documento aponta que, nas catástrofes, em geral as mulheres e crianças têm 14 vezes mais probabilidade de morrer do que os homens. Quando se trata de acesso desigual ao uso e à propriedade da terra, por exemplo, as mulheres acabam impedidas de envolvimento pleno em um modelo de agricultura resiliente às mudanças climáticas, de redução do risco de catástrofes e uso de energias renováveis.

Os dados enfatizam ainda que, faltando pouco mais de seis anos para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), previsto para 2030, os avanços rumo à igualdade de gênero são ainda frágeis, demasiado lentos e heterogêneos. Em números globais, 40% das mulheres vivem em países onde a discriminação por gênero é elevada ou muito elevada. Em termos de atuação em empresas, o relatório revela que apenas 15% das companhias em todo o mundo são dirigidas por mulheres e somente 25% dos cargos de gestão são ocupados por elas.

Dessa forma, apesar dos avanços, a discriminação e a desigualdade de gênero são ainda bastante persistentes. A edição de 2023 do Global Gender Gap Report (Relatório Global de Desigualdade de Gênero, publicado pelo Fórum Econômico Mundial) revelou que houve melhora no Brasil e o país subiu para a 57.ª posição entre 146 nações (em 2022 estava em 94.º). O documento destaca que entre 2022 e 2023 aumentou a participação econômica das mulheres, bem como as conquistas na paridade de gênero no que diz respeito a postos de liderança não apenas nos negócios, mas também no governo. Dialogando com esse registro, ressalta-se que no primeiro escalão do governo federal, em 2023, 11 mulheres assumiram os postos de ministras. Ainda assim, o cenário para a América Latina e o Caribe preocupa. Conforme indicam os dados, no atual ritmo de progresso, a região levará 53 anos para atingir a plena igualdade de gênero. A paridade na participação econômica e nas oportunidades é de 65,2%, o que coloca a região com a terceira pontuação regional mais baixa, à frente apenas do Sul da Ásia e do Oriente Médio e Norte da África.

Quanto à diversidade de gênero em conselhos de empresas privadas, o estudo 2023 Him For Her And Crunchbase 2022 Study Of Gender Diversity On Private Company Boards, divulgado pela Crunchbase News, dá conta de que as empresas mais jovens têm maior probabilidade de ter mulheres diretoras, indicando uma mudança de perspectiva em relação às empresas mais antigas. Isso tem levado, também, à diminuição de salas de reuniões com a presença de uma única mulher. Esses dados deixam um indicativo do quanto esforços privados e públicos, em conjunto, são necessários na busca por equidade. Adicionalmente, mantém-se um ponto de atenção fundamental, o entendimento de que, ao tratar de algo na esfera da discussão de gênero, é necessário considerar a multiplicidade de perspectivas e abordagens possíveis, dado que os universos de existências sociais são plurais. Assim, cada abordagem e cada pesquisa abrem novas camadas que vão desenhando a complexidade do que precisa ser considerado em cada momento.

 

A pluralidade do empreendedorismo feminino

 

Uma questão fundamental sobre a temática do empreendedorismo feminino, que ajuda a compreender os dados e a complexidade por trás deles, reside na discussão sobre o que é ser mulher. Este trecho do discurso histórico de 1851 da abolicionista afro-americana Sojourner Truth lança luz exatamente sobre ela: Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?

Ser mulher não é uma coisa só, mas algo constituído de múltiplas camadas. Desde questões de discriminação racial, que as colocam no suposto melhor lugar que mereceriam, passando pelo tipo de trabalho, onde se estabelece o que pode ser o trabalho para mulheres, até a maternidade e os cuidados da casa, um ofício velado e não reconhecido nem remunerado.

Ao analisarem uma década de aplicação da abordagem de impacto coletivo para lidar com problemas sociais, John Kania e colegas apontam a equidade como um componente fundamental nesse processo. Partindo da definição de equidade como “a imparcialidade e a justiça alcançadas por meio da avaliação sistemática das disparidades em oportunidades, resultados e representações e a reparação [dessas] disparidades por meio de ações direcionadas”, os autores de “Priorizar a Equidade no Impacto Coletivo” lembram que a definição “mostra as necessidades de muitos grupos e populações diversos que atuam diariamente sob restrições estruturais que, há gerações, restringem sua capacidade de prosperar, resultando em marginalização e opressão severas e conjuntas, independentemente do lugar do mundo em que vivem”. E alertam que apenas “quando os esforços de impacto coletivo se dedicarem a compreender quem foi marginalizado e por que e como eles estão vivenciando a marginalização e, após tais investigações, adotarem uma ação direcionada para criar políticas, práticas e instituições que abordem iniquidades atuais e históricas, só então essas comunidades irão se libertar para atingir todo o seu potencial”.

É nesse contexto que se destaca o debate do empreendedorismo feminino em uma perspectiva de equidade de gênero. Como as desigualdades de gênero são profundamente enraizadas em normas culturais, estruturas sociais e políticas, para alcançar uma equidade real é necessário abordar e corrigir essas desigualdades implícitas.

Para refletir sobre as múltiplas camadas que fundam as desigualdades de gênero, o conceito de interseccionalidade pode ser utilizado como ferramenta analítica ou como instrumento de resolução de problemas. Para Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge, autoras de Interseccionalidade, tal conceito reconhece e analisa as interconexões entre diferentes formas de discriminação e desvantagem social.

 

Os marcadores sociais são as características socialmente reconhecidas e que podem afetar a maneira como as pessoas são percebidas e tratadas na sociedade. Incluem gênero, raça, classe social,  grau de formação, orientação sexual, religião, idade, deficiência e região geográfica

 

A interseccionalidade pode ser entendida como a compreensão de que as identidades individuais e as experiências de uma pessoa não se reduzem a uma única dimensão, como gênero, raça, classe social ou orientação sexual. Pelo contrário, essas identidades se interseccionam e se sobrepõem, influenciando as experiências de discriminação e privilégio de uma pessoa. Por exemplo, as formas de discriminação que uma mulher preta pode enfrentar devido a seu gênero e raça não são passíveis de serem compreendidas nem tampouco se reproduzem quando os aspectos são tratados isoladamente.

Entretanto, a interseccionalidade não se resume a gênero e raça. Ela envolve a multiplicidade de identidades de uma pessoa ao analisar questões sociais, políticas e econômicas, reconhecendo que as formas de discriminação estão interligadas e podem se reforçar mutuamente. As experiências de cada um na sociedade são influenciadas por essas identidades diversas, e para compreender a complexidade das experiências individuais na interação com as estruturas sociais adotamos a expressão marcadores sociais. Trata-se de outras camadas de complexidade que atravessam o gênero e representam essas multiplicidades.

Os marcadores sociais são as características socialmente reconhecidas e que podem afetar a maneira como as pessoas são percebidas e tratadas na sociedade. Incluem gênero, raça, classe social, grau de formação, orientação sexual, religião, idade, deficiência e região geográfica. Existem também marcadores indiretos, como é o caso de mulheres que são denominadas mães atípicas, cuja deficiência não é diretamente nelas, mas no filho com deficiência, implicando efeitos sobre essa mãe. Outro ponto de atenção é a relação entre a região geográfica e a natureza das atividades econômicas: as atividades primárias, principalmente agropecuárias, estão ligadas ao espaço rural enquanto as atividades secundárias (produção) e/ou terciárias (serviços), ao urbano. Os marcadores sociais devem ser considerados em cruzamento, ou seja, na interseccionalidade, pois funcionam como “categorias” pelas quais as pessoas são “classificadas” e influenciam as oportunidades disponíveis para elas.

Os desafios vividos por Ana Fontes e pelas mulheres atendidas pela RME denotam uma crescente complexidade quando diferentes marcadores sociais se entrecruzam. Com seu peso na dinâmica historicamente estruturada da sociedade, cada marcador criará condições de dificuldade para o acesso dessa mulher a melhores condições de vida e trabalho. Dessa forma, uma mulher negra e pobre, microempreendedora individual, que sonha com o seu negócio tornando-se uma rede de franquias, por exemplo, enfrentará barreiras muito maiores do que uma mulher branca, fundadora de uma startup, uma empresa de base tecnológica, com um modelo de negócios escalável. Quanto mais marcadores associarem uma pessoa a grupos historicamente marginalizados, maiores os desafios.

Os marcadores sociais passam a ser determinantes de desvantagens e, em muitos casos, de injustiças. Ser mulher, por exemplo, pode levar ao enfrentamento da misoginia, uma forma de aversão às mulheres que, mesmo quando não explícita, afeta negativamente suas posições nas relações sociais. Quando o gênero é combinado com outros marcadores sociais, surgem preconceitos que influenciam, entre outras coisas, a capacidade e a legitimidade (ou seja, o acesso) das mulheres para ter apoio financeiro para seus negócios. Para compreender as diferentes experiências de discriminação ou de privilégio, não se pode analisar um marcador social isoladamente, mas deve-se considerar a interseccionalidade.

 

Finanças e empreendedorismo feminino

 

Entre os inúmeros desafios do empreendedorismo feminino, o acesso a recursos financeiros segue no topo da lista. Paradoxalmente, como destaca o Global Gender Gap Report 2022, considerando dados de alta frequência do LinkedIn para 22 países, houve um aumento nos números relativos ao empreendedorismo feminino e uma queda nos investimentos destinados a eles (considerando todos os tipos de recurso). Em 2019, o percentual do investimento total em empresas exclusivamente femininas foi de 3%, tendo caído 4% em relação a 2018. Em 2020, esse número diminuiu ainda mais, para 2%, e manteve-se nesse patamar em 2021.

Diante da tarefa de selecionar entre várias candidatas com tantas nuances, a maioria dos financiadores faz uma avaliação baseada no potencial de cada negócio para gerar mudanças positivas, exigindo métricas de impacto (muitas vezes inexequíveis para uma pequena empreendedora) e que atendam às estruturas de ativos financeiros amplamente utilizados pelos gestores de fundos. Seguindo o fluxo dos padrões convencionais estabelecidos, os gestores de ativos financeiros tendem a direcionar recursos considerando as camadas mais aparentes, distanciando-se do impacto social e estrutural necessário às transformações reais. Compreender as nuances que envolvem o empreendedorismo feminino traz à tona a necessidade de produtos financeiros mais alinhados aos diferentes tipos de negócio protagonizados por mulheres.

Como iniciativas consolidadas nesse sentido, merece destaque a atuação de organizações como a Pro Mujer, uma empresa social que há mais de três décadas trabalha para promover a igualdade de gênero na América Latina e que já impactou mais de 2,5 milhões de mulheres. O objetivo da organização é permitir que mulheres alcancem seu pleno potencial por meio da melhora de suas condições de vida e se tornem agentes de mudança em suas comunidades. São três as áreas estratégicas em que imprimem seus esforços: saúde e bem-estar, inclusão financeira e oportunidades de qualificação.

Com vistas à inclusão financeira de mulheres na América Latina, a Pro Mujer cria produtos e mecanismos financeiros inovadores para fornecer o capital de que necessitam para crescer e investir em seus negócios. A organização trabalha com três conjuntos de serviços: microfinanças, plataforma de financiamento digital e iniciativas inovadoras de investimento na perspectiva do gênero.

Por meio do serviço de microfinanciamento, milhares de mulheres desfavorecidas e excluídas do sistema financeiro tradicional têm acesso ao crédito, o que lhes permite desenvolver seus negócios e trabalhar em conjunto para obter receita e pagar os empréstimos. Entre as possibilidades de crédito, são oferecidos capital de investimento, empréstimos para habitação, empréstimo pessoal, seguro e capital de giro.

 

Tanto a Pro Mujer quanto a BlackWin compartilham uma abordagem centrada nas mulheres e visam criar oportunidades para o crescimento econômico, o empoderamento e a melhoria das  condições de vida das mulheres na América Latina

 

No segundo produto, uma plataforma digital, um algoritmo de pontuação alternativo, inteligência artificial e integração de API (interface de programação de aplicativos) são utilizados para agilizar o processo de solicitação de empréstimo, recebimento e pagamento. O serviço traz como facilidades uma carteira móvel, integração digital e a plataforma de serviços financeiros digitais multicanais.

Como iniciativas inovadoras de investimento na perspectiva de gênero, a Pro Mujer atua com gender bonds (“títulos de gênero”), por meio dos quais foi criado o primeiro título 100% focado em gênero na Argentina. De início, a organização emitiu 200 milhões de pesos argentinos em títulos, o que permitiu ajudar mais de 1.400 microempreendedoras no país a promover seus negócios e projetos. Também como inovação, a Pro Mujer lançou o ILU Women’s Empowerment Fund em parceria com a Deetken Impact. Esse fundo de impacto com perspectiva de gênero apoia empresas de alto impacto que buscam aprimorar a igualdade de gênero em toda a cadeia de valor. Além disso, criou o GLI Forum LatAm, o primeiro evento na América Latina direcionado à promoção do investimento na perspectiva de gênero como uma forma eficaz de impulsionar tanto a igualdade de gênero quanto o desenvolvimento econômico na região.

Durante os 33 anos de operações, a Pro Mujer com suas articulações desembolsou US$ 4,4 bilhões em empréstimos de microfinanciamento. Em 2022, a iniciativa viabilizou acessos a crédito a 250 mil mulheres, US$ 324 milhões em empréstimos e registro de crescimento de 33% na carteira de clientes ano a ano.

Como exemplo entre as mulheres apoiadas pela Pro Mujer, Fernanda Navarro compartilha publicamente seu depoimento. Jovem, de 23 anos, ascendência indígena, mãe solo, baixa renda, Fernanda deixou a casa dos pais aos 18 anos, carregando apenas uma sacola com algumas roupas, sem saber o que fazer. Foi então que conheceu a Pro Mujer e foi acolhida. A empreendedora relata que a organização foi a ajuda financeira que não teve da família e o acompanhamento que não acessou em outras instituições. O seu empreendimento chama-se Agus Vintach, uma revenda de roupas vintage enviadas para todo o país. Está situado em San Pedrito, San Salvador de Jujuy, na Argentina. A empreendedora mostra-se muito satisfeita por poder chegar a outras mulheres por meio das redes sociais, contando sua história e divulgando seu negócio. Diversos marcadores sociais pesaram sobre sua trajetória e dificultaram seu acesso a crédito (mulher não branca, mãe solo, baixa renda e desempregada), interseccionando três categorias sociais de extrema complexidade: gênero, raça e classe.

Outra iniciativa que atua na mesma direção é a BlackWin, a primeira plataforma brasileira dedicada a auxiliar mulheres negras a ingressar como investidoras-anjo, estabelecendo conexões com o ecossistema de inovação e oportunidades de investimento em negócios liderados por pessoas negras. A plataforma tem por missão viabilizar o protagonismo de mulheres negras no fomento da equidade racial como investidoras-anjo, promovendo, de um lado, oportunidade de geração de riqueza pessoal e, de outro, uma fonte alternativa de capital inteligente para as empresas lideradas por pessoas negras que trazem oportunidades de negócios inovadoras e de impacto para o mercado. As mulheres membros da BlackWin atuam em diferentes áreas, como jurídico e due diligence, contábil, finanças corporativas, empreendedorismo, consultoria empresarial, compliance, administração de fundos, investimentos de impacto, entre outras, trazendo diversidade também nas áreas de conhecimento.

Tanto a Pro Mujer quanto a BlackWin compartilham uma abordagem centrada nas mulheres e visam criar oportunidades para o crescimento econômico, o empoderamento e a melhoria das condições de vida das mulheres na América Latina. As suas atividades incluem não apenas serviços financeiros, mas também programas de educação e saúde, pois entendem a pluralidade que envolve a questão de gênero. Entretanto, além da existência de mais organizações que tenham investimentos de gênero como ponto central em sua missão, um outro avanço fundamental é no debate também junto a gestores de investimentos em busca de modelos inovadores e alternativos.

 

Finanças inovadoras em gênero

 

Definir um tipo de produto financeiro para cada perfil considerando marcadores sociais e a interseccionalidade entre eles não é uma opção, dada a complexidade da experiência humana. Mas podemos, sim, colocar em discussão os modelos de captação e financiamento vigentes. É urgente que produtos financeiros possam financiar mais iniciativas que promovam a igualdade de gênero ou que beneficiem especificamente mulheres e reconheçam as nuances que as atravessam. A expressão produtos financeiros é usada aqui para se referir aos mecanismos através dos quais os recursos são mobilizados em larga escala para diferentes empreendimentos, independentemente da classe de ativos em que se inserem. Além disso, um mesmo grupo interseccionalizado pode precisar acessar recursos de diferentes classes de ativos ao longo de sua jornada empreendedora.

Nossa reflexão neste artigo passa pela busca de novos modelos de captação e financiamento que possam ser tão plurais quantosão os negócios de mulheres. E para aqueles que se perguntam se uma proposta plural teria como efeito dissipar os investimentos, um alerta: é a homogeneização do empreendedorismo feminino que leva à perda de melhor direcionamento dos produtos financeiros, não a consideração quanto a suas amplas possibilidades de constituição.

Para que as finanças para impacto possam ser inovadoras no que diz respeito à dimensão de gênero, é fundamental não olhar apenas para esse fator isoladamente, mas também para os marcadores que o atravessam. Considerar o potencial transformador das articulações em rede abre espaço para a inovação buscada a partir dessa perspectiva. Daí o convite para pensar interseccionalidade, articulação em rede e finanças inovadoras para impacto.

O caso de uma iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um bom exemplo. Rodrigo Ferreira, responsável pelo relacionamento no Grupo Gaia, nos contou em entrevista sobre as adaptações realizadas para viabilizar um CRA (Certificado de Recebimento do Agronegócio) de Cooperativas do MST, iniciado em 2021 com duração de cinco anos, no Sul e Sudeste do Brasil. Apesar de não ter sido feito um recorte específico de gênero nessa iniciativa, o objetivo foi compreender os desafios enfrentados para adaptar uma sistemática e dinâmica de financiamento convencional a algo que exigia atenção e esforço bastante particulares. Se, por um lado, muitos produtos financeiros só estão disponíveis para investidores qualificados, por outro, a captação de recursos é tradicionalmente voltada para grandes empresas. Isso significa que esses instrumentos financeiros excluem tanto investidores quanto tomadores, limitando quem pode participar da oferta nas duas pontas. Ou seja: são produtos em que ricos investem em ricos. O CRA do MST democratiza o acesso, uma vez que a captação de recursos não restringe quem investe ao mesmo tempo que direciona os recursos para os pequenos agricultores associados da cooperativa.

Dados da pesquisa Empreendedoras e Seus Negócios 2023, do Instituto Rede Mulher Empreendedora, que ouviu 4.180 pessoas de todas as regiões do país, indicam que a maioria das empreendedoras brasileiras fatura até R$ 2.500,00 por mês.16 A mesma pesquisa revela que, entre os motivos que levaram algumas delas a fechar suas empresas, a principal razão apontada foram os problemas financeiros, seja a falta de crédito para investir e pagar as despesas, dificuldades de arcar com os custos de estrutura e transporte seja problemas para manter uma renda fixa mensal. No universo das empresárias brasileiras, o perfil é de baixo faturamento, 82% são mulheres negras das classes D e E (98%) e com negócios abertos por necessidade (83%). Nesse cenário, democratizar o acesso a recursos torna-se uma premissa. E essa democratização também passa pelo letramento das mulheres sobre produtos financeiros.

Entre os detalhes partilhados por Rodrigo Ferreira, fica evidente o papel da articulação em rede que foi necessária na concepção dos produtos financeiros para esse caso. Não basta um time interno forte em uma organização financeira articuladora de investimentos; é preciso observar, para além de seus muros, que outras organizações já estão atuando em frentes que constituem a base daquilo que se pretende conceber. São essas organizações, mais próximas de quem se beneficia com o recurso, que conseguem compreender as pluralidades e conceber uma tese de impacto robusta. Uma tese de impacto bem elaborada ajuda a orientar os investidores sociais na alocação de recursos e a mensurar o sucesso de suas intervenções, potencializando a captação de recursos.

Tanto a Pro Mujer quanto a BlackWin compartilham uma abordagem centrada nas mulheres e visam criar oportunidades para o crescimento econômico, o empoderamento e a melhoria das condições de vida das mulheres na América Latina

 

Ampliando o envolvimento e a atuação em rede

 

Os dinamizadores de impacto são organizações especializadas que facilitam, conectam e apoiam a parceria entre oferta e demanda de capital, assim como monitoram, avaliam e qualificam a construção do ecossistema de impacto. Podem ser incubadoras, aceleradoras, consultorias, redes de mentores, universidades ou outros agentes de serviços especializados, como escritórios de advocacia. É nesse grupo de atores que os gestores de ativos podem apoiar-se na busca de produtos financeiros inovadores.

O CRA Sustentável na Mata Atlântica17 é um exemplo de um modelo inovador de financiamento que conta com recursos de investidores de mercado e de organizações filantrópicas (blended finance, ou capital misto) para fortalecimento da agricultura familiar. Trata-se de um produto financeiro, com potencial de se tornar escalável, constituído na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), com retorno prefixado para os investidores de 5% ao ano. Em sua primeira emissão, o CRA contou com uma cota sênior de R$ 750 mil, formada por investidores de mercado, e cota subordinada de R$ 300 mil, com recursos da Tabôa. Tal configuração reduz o risco da operação para os investidores, uma vez que a cota subordinada seria a primeira a ser acionada em caso de perdas. Além disso, o Instituto Arapyaú e o Instituto humanize aportaram recursos para cobrir os custos de concessão de crédito da Tabôa. Todos esses atores uniram-se na construção de uma solução sustentável de crédito para famílias agricultoras – com potencial de ser escalável e replicável –, especialmente produtoras mulheres de cacau cabruca. Historicamente elas têm enfrentado muitos desafios no acesso a recursos. O CRA Sustentável adota a metodologia de concessão de microcrédito desenvolvida e implementada pela Tabôa desde 2015. Ela se diferencia por possuir processos mais simplificados e por ofertar financiamento (na modalidade de empréstimo) associado ao acompanhamento técnico especializado sem custos para o agricultor, contribuindo para o fortalecimento das capacidades individuais e coletivas no campo e para a manutenção de baixas taxas de inadimplência.

Nesse contexto, é essencial, por exemplo, ao pensar finanças inovadoras de impacto em gênero, dialogar com organizações de mulheres que possam indicar quais são os maiores desafios observados em termos de marcadores sociais que limitam o acesso a crédito. Da mesma forma, interagir com atores que dominem e possam conceber teorias de mudança que permitam captar nuances de empreendimentos femininos, considerando questões interseccionalizadas.

O Instituto Rede Mulher Empreendedora oferece um mapa do ecossistema de apoio às mulheres brasileiras com diversas categorias de apoio: aceleração de startup e investimentos; advocacy; combate à violência contra mulheres; compras inclusivas; empreendedorismo feminino; empregabilidade feminina; finanças para mulheres; impacto social e mulheres em vulnerabilidade; iniciativas de apoio a mães; iniciativas para meninas; inteligência da informação, pesquisa e dados; liderança feminina corporativa; mulheres 50+; reeducandas do sistema prisional; LGBTQIAPN+; mulheres refugiadas e imigrantes; indígenas e quilombolas; mulheres do agronegócio; mulheres em conselho; mulheres na política; mulheres negras; saúde e bem-estar da mulher; STEM/tecnologia, entre outras. Sabe-se que as transformações quanto à discriminação e às desigualdades de gênero demandam atuação em rede, o que também implica ampla atuação das políticas públicas. Nesse sentido, o Relatório Global SIGI 202319 faz recomendações políticas concretas para intervenientes públicos, privados, filantrópicos e da sociedade civil. O documento da OCDE reforça a necessidade da promoção de uma melhor coleta de dados e indicadores desagregados por gênero, relevantes para o gênero e interseccionalidades.

Considerando a complexidade que marcadores sociais alcançam à medida que se interseccionam, responder a esse desafio requer lançar mão da mesma multiplicidade que envolve tais marcadores. Promover a colaboração entre diferentes organizações com interesses comuns e competências complementares promove um olhar mais atento para os diferentes marcadores que atravessam o empreendedorismo feminino. Essas trocas de experiências entre várias organizações orientam investimentos sociais mais inclusivos e com maior potencial transformador, e são um mecanismo muito importante no combate às desigualdades de gênero e seus atravessamentos.

Retomando a fala de Ana Fontes: “As mulheres estão brigando pelo direito à vida, pela justiça e pelos direitos humanos. Se a gente não pode brigar junto, a gente pode apoiar, é o mínimo. Muitas pessoas me ajudaram a construir a minha história”.

AS AUTORAS

Maira Petrini é professora adjunta na Escola de Negócios da PUC-RS e professora visitante na HEC Montreal – Canadá (2017). Doutora em administração pela FGV- EAESP, é líder do modo  de Impacto e do Farol Hub Social do Tecnopuc (Parque Cientifico e Tecnológico da PUCRS).

Ana Clara Souza tem pós-doutorado pela Escola de Negócios da PUC-RS (2019-2022) e pela HEC  Montréal – Canadá (2024). É doutora em administração pela UFRGS. Foi professora visitante no IFRS, onde também coordenou a Incubadora Social e Tecnológica de Canoas (SocialTec).



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