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A busca pela equidade

Combater o viés inconsciente de gênero no acesso ao capital é fundamental para promover a igualdade de oportunidades para mulheres empreendedoras

Por Maira Petrini e Ana Clara Souza

As crenças de que somos excessivamente sensíveis, frágeis, inaptas para negócios, propensas a gastos excessivos e deficientes em tomar decisões estratégicas são estereótipos persistentes que moldam a percepção e o tratamento das mulheres na sociedade. Essas noções preconcebidas questionam a competência das mulheres para ocupar posições como engenheiras, investidoras, presidentes de multinacionais, gerentes financeiras, motoristas de caminhão, mecânicas de automóveis, pilotos de avião ou cirurgiãs cardíacas. Tais estereótipos não só coexistem com outras percepções equivocadas como também influenciam profundamente os papéis e posições historicamente designados às mulheres. A construção social do papel feminino tem sido fator determinante na perpetuação da disparidade entre a presença de homens e mulheres em diversos campos profissionais, o que mantém a representação feminina em espaços de poder significativamente mais baixa.

Números divulgados em 2023 confirmam esse cenário. Apenas um em cada quatro líderes de alto escalão é mulher. Enquanto cem homens são promovidos do nível inicial a gerente, 87 mulheres têm a mesma sorte. Como resultado desse “degrau quebrado”, elas ficam para trás e não conseguem alcançá-los. Devido à disparidade de gênero nas primeiras promoções, os homens acabam por ocupar 60% dos cargos de gestão em uma empresa padrão, ante 40% de mulheres. Dado que o número de homens é significativamente maior, há menos mulheres para promover a quadros superiores e os níveis subsequentes têm menor presença feminina.

Observado com evidente facilidade no cotidiano, e dadas as disfuncionalidades e disparidades que causa, o problema é também objeto de pesquisa. Contribuições acadêmicas destacam a necessidade de reconhecer e desafiar as normas de gênero que moldam os ambientes de trabalho. E como lembram Karen Dale e Gibson Burrel, homens cis são historicamente associados a comportamentos racionais, sóbrios, firmes, seguros e proposi- tivos, ao passo que mulheres tendem a ser vistas sob aspectos contrários, como se fosse a “natureza feminina”.

Ninguém está livre de pensamentos e ações enviesados No entanto, para que as mudanças ocorram em prol de uma sociedade mais justa e igualitária, é necessário que cada vez mais pessoas aceitem o convite para fazer diferente

 

A definição de práticas laborais e até mesmo os discursos para a ocupação de postos não são definidos necessariamente pelo tipo de trabalho exercido, mas alicerçados sobre questões de gênero, ressaltam Charlotte Gascoigne, Emma Parry e David Buchanan. Os pesquisadores observam que, a priori, um trabalhador é considerado produtivo quando pode atuar em longas jornadas de trabalho sem que seja acionado por outras demandas da vida privada, como cuidar da casa e de filhos. Dessa forma, está preestabelecido um perfil de quem apresenta mais condições de assumir um posto, o que resguarda a desigualdade na estrutura dessas definições. Tem-se, assim, o reforço de uma configuração de ambientes e postos de trabalho predefinidos por existências masculinas privilegiadas em corpos e papéis sociais.

O conceito de “organizações genderificadas” (gendered organizations) foi desenvolvido por Joan Acker para compreender de que maneira o gênero molda as estruturas, práticas e dinâmicas organizacionais. O seu trabalho explora como os espaços organizacionais contribuem para a reprodução das desigualdades de gênero. Acker cunhou o termo referindo-se a ele como “a vantagem e desvantagem, exploração e controle, ação e emoção, significado e identidade de homens e mulheres” dentro desses espaços. As reflexões de Acker têm sido utilizadas para analisar as razões pelas quais as mulheres tentam adaptar-se a um modelo de local de trabalho que foi codificado em disposições e regras apoiadas pela suposição de que o trabalho era separado do resto da vida e que tinha prioridade sobre o trabalhador. Para a autora, além de atributo individual, o gênero é um aspecto fundamental das estruturas sociais – um elemento estruturante das relações – e está incorporado em práticas organizacionais como um princípio organizador essencial que molda como o trabalho é estruturado e valorizado. Esse é um ponto-chave para compreender o viés inconsciente de gênero.

Viés diz respeito à tendência para uma distorção de julgamento, de caráter irracional, que poderá incorrer em um julgamento favorável ou desfavorável para alguém, um grupo ou situação, aponta Acker. O viés opera no âmbito do inconsciente. Ninguém está livre de pensamentos e ações enviesados, já que os comportamentos humanos também são fruto dos processos de socialização. Graças às transformações geracionais, o que num dado momento da história pareceu o mais correto e inquestionável mostra-se passível de mudança. No entanto, para que as mudanças ocorram em prol de uma sociedade mais justa e igualitária, é necessário que cada vez mais pessoas aceitem o convite para fazer diferente.

 

O que condiciona as escolhas, afinal?

 

Como condicionantes de pensamento e comportamento, os vieses se colocam na estrutura das relações sociais, o que nos possibilita considerar seu reflexo em todos os espaços. Os vieses de gênero estão presentes no mercado de trabalho em diversas dimensões, das oportunidades de emprego, promoção, à destinação de investimentos, por exemplo. Isso torna ainda mais evidente a relevância de pensar sobre como os fundos de investimento em negócios podem ser mais inovadores ao considerar que vieses de gênero condicionam a tomada de decisões internas. Um relatório da International Finance Corporation aponta que apenas 15% das equipes de investimento são equilibradas em termos de gênero, enquanto quase 70% são exclusivamente compostas de homens. Na América Latina, as gestoras de venture capital e private equity que têm uma mulher na liderança não ultrapassam 8%. Assim, a maioria das decisões relacionadas a investimentos e alocação de capital é tomada por equipes predominantemente masculinas.

Em uma pesquisa que analisou a carreira de mulheres em organizações do setor financeiro no Brasil foi identificada uma série de desafios. A lista inclui a dificuldade de credibilidade, como necessidade de trabalhar arduamente para a aprovação de colegas homens; autocobrança, sentimento de inferioridade e consequente dedicação intensa à carreira para superação; conciliação de papéis que envolvem o dilema vida versus carreira; penalidade pela maternidade, em que se discorre sobre adiar (ou até evitar) a gravidez em prol da carreira; e comparação com homens, referente a atitudes e papéis “esperados” dentro da divisão sexual do trabalho. Esses resultados tornam evidente que o setor financeiro também se caracteriza pela genderificação. Em uma análise sobre investimentos de impacto no Brasil, 47% dos investidores afirmam ter políticas de equidade de gênero e raça nos processos de contratação. Entretanto, 58% não têm política de equidade de gênero e raça ao escolherem as empresas a serem investidas. Em um espaço ocupado predominantemente por tomadores de decisão homens brancos e heterossexuais, há de se questionar quais vieses estão implicados em suas decisões e que condicionam escolhas.

 

O viés inconsciente

 

Com o propósito de aprofundar a discussão e trazer uma abordagem científica relevante para sustentar o argumento aqui tecido, é essencial destacar que, em Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases, Amos Tversky e Daniel Kahneman (notável intelectual, falecido em 2024) exploram de que forma atalhos mentais para julgamentos de probabilidade, chamados heurística, facilitam a tomada de decisões em contextos de incerteza. Embora em geral úteis, esses atalhos ocasionalmente levam a erros graves: ao simplificar decisões complexas, podem também induzir a equívocos sistemáticos, ou vieses cognitivos. Enraizados no subconsciente por meio da socialização, tais vieses condicionam pensamentos e atitudes e afetam a tomada de decisão tanto na vida pessoal quanto na profissional. Ou seja, os vieses cognitivos são padrões sistemáticos de desvios do raciocínio lógico que influenciam nossas decisões e julgamentos de maneira muitas vezes não percebida.

Os vieses derivam de processos diversos, desde atalhos no processamento de informação até influência social. Os principais atalhos são a heurística da ancoragem, a heurística da disponibilidade e a heurística da representatividade. Enquanto a primeira descreve a tendência das pessoas em manter seus julgamentos iniciais, até mesmo quando novas informações são apresentadas, a heurística da disponibilidade indica que as pessoas tendem a fazer julgamentos com base na facilidade com que exemplos ou informações vêm à mente.

Já a heurística da representatividade envolve julgar a probabilidade de algo com base na similaridade com um estereótipo conhecido. Esses atalhos mentais podem levar a diversos vieses cognitivos.

Quando as pessoas tendem a ser influenciadas por informações apresentadas antes da tomada de decisão, falamos de viés de ancoragem. O indivíduo tem propensão a depender excessivamente da primeira informação recebida, chamada de “âncora”, o que pode distorcer a avaliação de informações subsequentes. Por exemplo, numa negociação salarial, um recrutador pode oferecer um salário inicial inferior a uma candidata, influenciado por padrões de gênero que sugerem que mulheres aceitam ofertas menores. Esse valor inicial estabelece uma “âncora” que prejudica a candidata na busca por uma compensação justa.

Enraizados no subconsciente por meio da socialização, (os vieses cognitivos) condicionam pensamentos e atitudes e afetam a tomada de decisão tanto na vida pessoal quanto na profissional. São padrões sistemáticos de desvios do raciocínio lógico que influenciam nossas decisões e julgamentos de maneira muitas vezes não percebida

 

O viés da disponibilidade refere-se à tendência de fazer julgamentos com base em informações que podem ser facilmente recuperadas da memória, o que as faz superestimar a probabilidade de eventos mais facilmente recordados. Num contexto de recrutamento, esse viés pode influenciar a percepção de competência e favorecer candidatos retratados com mais frequência em determinadas profissões. Por exemplo, para posições em tecnologia, às quais homens são frequentemente associados, os entrevistadores podem tender a perceber os candidatos masculinos como mais competentes, o que dificulta oportunidades para mulheres, até mesmo quando suas habilidades são equivalentes.

O viés de confirmação ocorre quando as pessoas tendem a buscar, interpretar e lembrar informações que confirmam suas crenças preexistentes. Em processos seletivos para cargos de liderança, por exemplo, se os entrevistadores têm preconceitos sobre características de liderança associadas a estereótipos de gênero, eles podem ser influenciados por essas crenças e afetar suas avaliações sobre competências. Da mesma forma, em avaliações de desempenho, gestores valorizam ou desvalorizam comportamentos com base em estereótipos de gênero, como associar emoções femininas à fraqueza, o que resulta numa avaliação injusta do desempenho de mulheres.

O viés de afinidade é uma tendência comum de preferir pessoas com as quais há identificação em termos de ideologia, atitudes, aparência, religião, entre outros. No contexto empresarial, isso muitas vezes leva gestores à escolha de colaboradores com base na identificação pessoal, o que prejudica avaliações objetivas de desempenho para promoções ou benefícios.

O viés do estereótipo é um prejulgamento de pessoas com base em grupos distintos, não em atributos específicos, como no viés de afinidade. Por exemplo, as mulheres frequentemente enfrentam estereótipos que questionam suas competências e habilidades com base no gênero. Os erros de uma mulher podem ser atribuídos à suposta falta de competência, ao passo que os erros de um homem podem ser explicados de forma mais benevolente. Esses julgamentos refletem estereótipos historicamente enraizados que limitam as oportunidades das mulheres. Critérios de seleção e promoção muitas vezes carregam viés inconsciente de gênero.

Quando um julgamento é baseado nos aspectos físicos de uma pessoa, em que padrões de beleza historicamente repetidos muitas vezes são usados para determinar a adequação de alguém para uma função profissional ou social, falamos de viés da aparência. Comentários sobre aparência física, como cabelo e vestimentas, são comuns, e o termo “boa aparência” já foi amplamente utilizado em descrições de vagas de trabalho. Um exemplo desse viés pode ser observado em entrevistas de emprego nas quais um candidato bem vestido e apresentável pode ser inconscientemente percebido como mais qualificado pelo entrevistador.

O viés da maternidade é um fenômeno em que mulheres, especialmente em idade fértil, enfrentam preconceitos ou discriminação no ambiente de trabalho devido à expectativa social de que elas vão assumir responsabilidades relacionadas à maternidade. Isso em geral resulta em demissões após o retorno da licença-maternidade e na exclusão de mulheres de promoções e aumentos salariais. Cerca de metade das mulheres que tiram licença-maternidade está fora do mercado de trabalho após 24 meses e essa tendência persiste ainda após 47 meses. Esse viés se manifesta em diversos aspectos, de preconceitos na contratação e promoção ao receio de investir em treinamento, com medo de que as mulheres deixem o emprego para cuidar dos filhos. Muitas mulheres recorrem ao empreendedorismo como uma forma de conciliar trabalho e maternidade sem enfrentar discriminação. Nenhuma pessoa está livre da prática de olhares e comportamentos “enviesados”. Os vieses inconscientes reforçam preconceitos e comportamentos tóxicos que excluem pessoas e impossibilitam a transformação de padrões historicamente reforçados.

 

Nosso cérebro enviesado – o Projeto implícito

 

Com foco na investigação das preferências e preconceitos que estão escondidos no inconsciente humano, três cientistas nos Estados Unidos (Mazharin Banaji, da Universidade Harvard; Tony Greenwald, da Universidade de Washington; e Brian Nosek, da Universidade da Virginia) fundaram a organização sem fins lucrativos Projeto Implícito, com a qual colaboram pesquisadores de diferentes culturas e países interessados na pauta. Entre os testes de associação implícita (TAIs) oferecidos gratuitamente, é possível responder a questões direcionadas sobre raça, gênero, orientação sexual, idade, peso, etnia, entre outros. Cada um leva cerca de dez minutos.

Os testes partem de respostas dos respondentes sobre si mesmos, para então explorar suas visões quanto a aspectos específicos a respeito da percepção do mundo e das relações estabelecidas e identificar os vieses inconscientes. O projeto oferece uma base potente para reflexão e discussão a respeito dos mecanismos subjacentes e subconscientes às condutas humanas, que podem ser uma referência segura para indivíduos quanto a suas percepções e para organizações que passem a considerar
como esses vieses se apresentam em suas dinâmicas institucionais.

 

Viés inconsciente, desigualdade de gênero e acesso a capital

Em 2019 a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou uma pesquisa referente ao futuro do trabalho na qual aponta que as mulheres têm maior probabilidade do que os homens de trabalhar em empregos mal-remunerados e menor probabilidade de trabalhar em empregos bem-remunerados. A publicação dá ênfase ao fato de que a falta de resposta a essas disparidades vai produzir um futuro do trabalho com divisões sociais mais profundas, o que poderá resultar em ramificações negativas para a produtividade, o crescimento, o bem-estar e a coesão social. Cientes de que há diversos fatores que podem ser considerados quando se trata das diferenças impostas a homens e mulheres, o destaque dado neste texto relaciona-se aos vieses permeados por questões de gênero.

A ONU Mulheres, em parceria com a PWC, Insper e +Mulher 360 (movimento empresarial pelo desenvolvimento econômico da mulher), publicou um guia com as lições da oficina Vieses Inconscientes, Equidade de Gênero e Mundo Corporativo. A publicação contextualiza que o fato de os espaços públicos terem sido ocupados por homens ao longo de muitos séculos, enquanto as mulheres estavam na esfera da vida privada, serve como pano de fundo para muitas das preferências e percepções que ainda permanecem. Fatores como educação, família, país, idade, gênero, orientação sexual, religião, entre outros, baseiam essas crenças e preferências de forma automática e inconsciente na maior parte das situações. Os vieses se manifestam de formas surpreendentes. Investidores e financiadores talvez prefiram investir em empreendedores com os quais se identificam ou que se encaixam nos estereótipos tradicionais de sucesso (viés de afinidade e estereótipo). Isso pode resultar na subvalorização dos negócios liderados por mulheres, já que os investidores podem ter uma afinidade inconsciente com empreendedores do sexo masculino ou uma visão estereotipada de que as mulheres não são tão capazes de liderar negócios.

 

Na busca por decisões deliberadas e intencionais que visam à diversidade no portfólio de investimentos para melhorar resultados sociais e de negócios, os fundos de mulheres para mulheres  podem ajudar a compreender quais os preconceitos inconscientes que influenciam nas decisões de investimentos e ser um caminho rumo a mudanças necessárias

 

Por outro lado, a percepção de “boa aparência” pode influenciar o financiamento de empresas lideradas por mulheres (viés da aparência). Se uma empreendedora não se encaixa nos padrões tradicionais de beleza ou se sua aparência não é considerada “profissional”, ela pode enfrentar dificuldades para obter financiamento.

Dessa maneira, todos os vieses discutidos podem influenciar as decisões de investimento à medida que o mercado financeiro ainda é considerado um setor predominantemente masculino. Uma vez que as equipes gestoras de fundos de investimentos são pouco diversas, isso, potencialmente, leva a um vazio de diversidade na alocação dos investimentos. Diante da baixa diversidade, os gestores de fundos tendem a preferir investir em empresas lideradas por pessoas do mesmo gênero, devido a uma percepção inconsciente influenciada pelo viés de proximidade.

Na busca por decisões deliberadas e intencionais que visam à diversidade no portfólio de investimentos para melhorar resultados sociais e de negócios, os fundos de mulheres para mulheres podem ajudar a compreender quais os preconceitos inconscientes que influenciam nas decisões de investimentos e ser um caminho rumo a mudanças necessárias, já que é sabido que diversidade e equidade dentro dos fundos resultam em portfólios mais diversos e justos.

 

De mulheres para mulheres

 

Ao buscar financiamento para seus empreendimentos, as mulheres ainda enfrentam desafios adicionais devido a preconceitos de gênero. Fundos dedicados ajudam a combater esses vieses e quando liderados por mulheres têm sua representatividade potencializada. Os fundos convencionais não levam em conta questões fundamentais devido aos vieses inconscientes não observados, apenas reproduzidos. Nesse sentido, para que haja um movimento de transição que combata esses vieses com ênfase, serão necessários tempo e metodologias desenhadas e aplicadas com esse objetivo. Não somente que considerem os desafios técnicos do método, mas quem os conduz.

A importância desses fundos vai além do combate aos vieses de gênero e da redução de barreiras financeiras, para proporcionar acesso ao capital a mulheres que podem ter dificuldades em obter investimentos de fontes mais tradicionais. Ao direcionar recursos para negócios liderados por mulheres, esses fundos contribuem para criar um ambiente mais inclusivo e equitativo, o que ajuda na promoção da diversidade no ecossistema.

Além do financiamento, muitos fundos voltados para mulheres oferecem suporte adicional, como mentoria e desenvolvimento de redes profissionais. Formações que trabalhem e estimulem a autoestima feminina na condução de negócios também são essenciais, como conteúdo fundamental na construção de lideranças fortes.

Estudos mostram que o investimento em empresas lideradas por mulheres pode ter impactos positivos na economia, ao criar empregos, estimular a inovação e contribuir para o crescimento econômico de forma mais ampla. A empresa de consultoria McKinsey prevê uma oportunidade de crescimento anual do Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 2,6 trilhões para a América Latina em 2025, em um mundo no qual as mulheres participam da economia de mercado em uma extensão idêntica à dos homens. Em resumo, os fundos de investimento dedicados a empreendimentos liderados por mulheres desempenham papel crucial na redução das disparidades de gênero no empreendedorismo, incentivam a inovação e contribuem para um ecossistema econômico mais inclusivo e equitativo.

 

Os fundos de investimento dedicados a empreendimentos liderados por mulheres desempenham papel crucial na redução das disparidades de gênero no empreendedorismo, incentivam a  inovação e contribuem para um ecossistema econômico mais inclusivo e equitativo

 

A falta de acesso ao capital é percebida como a principal razão para o fracasso de empresas lideradas por mulheres, e na América Latina registra-se a segunda maior taxa de falência de empresas de propriedade de mulheres em todo o mundo. A lacuna de crédito na América Latina é significativa, atinge US$ 5 bilhões para microempresas de propriedade de mulheres e US$ 93 bilhões para pequenas e médias empresas (PMEs) lideradas por mulheres. Empreendedoras mulheres com negócios inovadores, escaláveis e de alto crescimento não estão recebendo financiamento suficiente em termos de dívida ou participação acionária. O setor de investimento de impacto na América Latina investiu apenas 10% do capital em empresas lideradas por mulheres. O que se argumenta é que tais fundos estão mais livres (embora não totalmente) no que diz respeito à reprodução de vieses inconscientes típicos de espaços predominantemente geridos por homens, brancos, heterossexuais.

Os fundos de mulheres para mulheres têm potencial de maior sensibilidade à questão da maternidade e da necessidade que muitas mulheres têm de migrar para o empreendedorismo e a vê-las como algo não determinante da capacidade e merecimento das mulheres mães para o recebimento de suporte financeiro. É importante destacar que a presença de mulheres na liderança de fundos de investimento não garante sensibilidade automática em relação à maternidade e a outras questões aqui abordadas. Algumas mulheres podem adotar os mesmos padrões de comportamento associados aos homens como forma de se integrar a um ambiente em que a presença masculina é dominante. Soma-se a isso a existência de movimentos organizacionais que colocam mulheres em cargos de decisão como forma de evitar críticas e melhorar seus indicadores de diversidade de gênero.

No Brasil, o Fundo Agbara, nascido em 2020, durante a pandemia de covid-19, foi criado e é gerido por um grupo de mulheres negras. O empreendimento tem como missão o estabelecimento de um fundo filantrópico com vistas à sustentação e ao fortalecimento de direitos econômicos e inclusão socioprodutiva de mulheres negras. Por meio dos programas oferecidos, o fundo busca promover uma jornada formativa que inclui capacitações técnicas, políticas cidadãs com mentorias e aporte financeiro e proporcionar a autonomia dessas mulheres em três frentes: econômica, intelectual e emocional. Os aportes financeiros variam entre R$ 1.250,00 e R$ 5.000,00 ao longo de três anos e já foram impactadas mais de 2.500 mulheres negras no país. O Fundo Agbara foi reconhecido com o Prêmio Empreendedor Social 2023 na categoria “Soluções que inspiram”, promovido pelo jornal Folha de S.Paulo e pela Fundação Schwab. Um ponto nevrálgico desse fundo é a consideração da interseccionalidade de gênero, raça e classe no trabalho realizado, se alinhando, nesse sentido, ao combate às discriminações que ocorrem, também, em decorrência da presença dos vieses sociais ressaltados.

A Fundação WWB Colômbia é um exemplo de projeto latino-americano que busca gerar iniciativas e programas para fortalecer capacidades pessoais e empresariais de mulheres empreendedoras, especialmente aquelas que vivem em situações socioeconômicas de vulnerabilidade. A WWB Colômbia tem seu conselho administrativo formado, predominantemente, por mulheres e atua em duas frentes fundamentais: promover a geração de conhecimento e fazer investimentos de impacto social. O pilar de investimento fomenta o investimento de impacto social com uma perspectiva de gênero, ou seja, negócios e iniciativas sustentáveis que incorporem políticas de igualdade de gênero ou ainda que objetivem originar a liderança das mulheres. Observa-se, nessa premissa, um modelo que enfrenta desigualdades de gênero possíveis, também combatendo efeitos de vieses preexistentes. Adicionalmente, há a promoção da participação ativa dessas mulheres, ao desenvolver soluções para suas necessidades. Os investimentos de impacto social realizados pela WWB Colômbia seguem os Princípios de Investimento Responsável (PRI), por meio dos quais são estabelecidas altas exigências para a gestão de riscos e a geração de retornos sustentáveis a longo prazo para todas as pessoas beneficiadas pelas iniciativas da fundação.

No papel de investidor de impacto social adotado pela Fundação WWB Colômbia busca-se contribuir para a mudança social e diversificar as receitas, com o objetivo de continuar implementando iniciativas por meio de três mecanismos: a promoção de iniciativas que contribuam para preencher lacunas enfrentadas pelas mulheres, realizar investimentos que promovam a igualdade de gênero nas organizações e fortalecer negócios que oferecem produtos ou serviços voltados para as necessidades das mulheres ou que estimulem sua participação em alguma parte da cadeia de valor.

 

Os fundos de financiamento que partem de mulheres e são voltados a empreendimentos de mulheres, num entendimento de “nós para nós” que é financeiro, mas também afetivo, são uma  alternativa para que a desigualdade no campo de investimentos deixe de ser normalizada

 

Os investimentos de impacto social da fundação incluem recursos não reembolsáveis e recursos de capital paciente destinados a startups em fase de crescimento ou a fundos de investimento de impacto social. A organização atua como investidora de impacto social com perspectiva de gênero por meio de fundos e títulos, entre os quais o Limited Capital Partners Fund, da Rede WWB, do qual a organização faz parte desde 2014. O objetivo desse fundo é contribuir para a inclusão financeira com perspectiva de gênero em diferentes países do mundo.

A fundação também oferece um curso de formação virtual com base na personagem Ofelia, no qual aborda estereótipos e papéis de gênero atribuídos socialmente a homens e mulheres pautado em seu sexo biológico e que têm constituído, ao longo da história, vantagens e oportunidades diferentes que criam desigualdades e estabelecem as bases da violência.

Os fundos de financiamento que partem de mulheres e são voltados a empreendimentos de mulheres, num entendimento de “nós para nós” que é financeiro, mas também afetivo, são uma alternativa para que a desigualdade no campo de investimentos deixe de ser normalizada. Não se está definindo os fundos de mulheres para mulheres como uma solução, mas se reconhece que seu papel é fundamental na construção de caminhos que diminuam essa desigualdade. No Brasil, startups fundadas só por mulheres receberam apenas 0,04% do total aportado em 2020. Não somente o volume é inexpressivo como também concentrado em investidor-anjo e capital semente.

Compreender a presença de vieses e identificar as situações em que eles são mais prevalentes possibilita detectar e prevenir conclusões e tomadas de decisão enviesadas. Ao reconhecer e identificar o pensamento automático, torna-se mais provável libertar-se do estado hipnótico causado pelas “convicções” que ele pode induzir. Esses vieses cognitivos não operam isoladamente e muitas vezes se entrelaçam, criando padrões complexos de discriminação inconsciente.

O combate aos vieses inconscientes necessita, inicialmente, de vontade para que sejam percebidos e para que haja mudanças. São necessárias pesquisas para identificar como esses vieses se manifestam e estão presentes na conduta da organização financiadora. Convocar um conselho de mulheres que investem em mulheres com o propósito de escutar quais são as nuances veladas pelos vieses, e confrontar com as práticas dos fundos de investimentos, pode servir de base para estratégia de atenção e combate aos vieses, com indicadores e avaliações periódicas quanto aos resultados de sua implementação.

Os fundos de mulheres podem ser vistos como espaços nos quais se busca uma atenuação dos vieses replicados em fundos usualmente geridos por homens. Esses espaços são essenciais para que tais vieses sejam observados e contornados, em direção a outras possibilidades que possam ser mais amplamente igualitárias. Comumente, os critérios para as decisões de investimento – quem recebe e quem fica de fora – não são claros e, potencialmente, carregados de vieses.

 

Combatendo o viés inconsciente

 

Uma das contribuições centrais de Tversky e Kahneman, que desde os anos 1970 deram impulso ao tema dos vieses e heurística, é dar clareza sobre a natureza arraigada dos vieses inconscientes, sobretudo devido à forma como nossa mente processa e armazena informações.

Os fundos de investimento de mulheres para mulheres desempenham papel importante no combate aos vieses inconscientes, ao promover a diversidade, reconhecer o potencial feminino, fornecer modelos positivos e estimular a conscientização sobre questões de gênero no mundo dos negócios. Ao focar em investimentos específicos em empresas lideradas por mulheres, esses fundos aumentam a conscientização sobre a existência de vieses de gênero no mundo dos negócios. Isso ajuda a superar esses vieses e destaca a importância de promover a inclusão nos círculos de investimento e networking. Nesse sentido, para promover a diversidade e a inclusão em fundos de investimento que não de mulheres para mulheres, uma prática já adotada em alguns fundos é estabelecer metas claras e mensuráveis para aumentar a diversidade em suas equipes de gestão.

Estratégias como o uso de testes de associação implícita são sugeridas como maneiras de mitigar o impacto desses preconceitos. Testes de associação implícita (TAI) são uma ferramenta psicológica desenvolvida para medir a força das associações mentais de forma implícita e indireta. Esses testes são frequentemente usados para examinar atitudes, preconceitos, estereótipos e crenças inconscientes. Nos TAI, os participantes são solicitados a categorizar rapidamente estímulos visuais ou verbais em grupos específicos. A rapidez na categorização sugere associações mentais fortes entre os conceitos. Os resultados são interpretados com base na diferença de tempo de reação entre as categorias, mas é importante considerar fatores como cultura e características individuais ao interpretá-los.

Outra prática é fornecer treinamentos regulares e obrigatórios sobre vieses inconscientes para investidores, empreendedores e profissionais de agências de recrutamento e seleção. Esses treinamentos podem ampliar a conscientização sobre preconceitos sutis e ajudar a garantir que as decisões de investimento e recrutamento tenham como base critérios objetivos e equitativos.
Adicionalmente, é importante estabelecer políticas claras e transparentes para a seleção de empreendedores para financiamento. Isso pressupõe introduzir a adoção de critérios de seleção fundamentados no mérito e na qualidade do negócio, em vez de fatores subjetivos como proximidade pessoal ou afinidade. Associado a isso, pode-se incluir a divulgação regular de dados sobre o portfólio de investimentos.

Por fim, essa problemática social, teórica e prática requer atenção e mudanças efetivas a partir das nuances mais sutis que são parâmetro na definição de como são coordenados os espaços que historicamente privilegiam alguns grupos em detrimento de outros. A questão central trata de entender como crucial a valorização da presença de mulheres em ambos os lados da equação: como receptoras de recursos e como tomadoras de decisão nos investimentos direcionados a esse público. Desfazer esses vieses estruturais, subconscientes e produtos da cultura requer esforço consciente, o que inclui educação, exposição a perspectivas diversas e autorreflexão.

AS AUTORAS

Maira Petrini é professora adjunta na Escola de Negócios da PUC-RS e professora visitante na HEC Montreal – Canadá (2017). Doutora em administração pela FGV- EAESP, é líder do modo  de Impacto e do Farol Hub Social do Tecnopuc (Parque Cientifico e Tecnológico da PUCRS).

Ana Clara Souza tem pós-doutorado pela Escola de Negócios da PUC-RS (2019-2022) e pela HEC  Montréal – Canadá (2024). É doutora em administração pela UFRGS. Foi professora visitante no IFRS, onde também coordenou a Incubadora Social e Tecnológica de Canoas (SocialTec).



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