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Por que tratar a saúde mental masculina pode ajudar a todos

Um dos maiores desafios para os líderes de impacto social é alcançar pessoas historicamente marginalizadas pelas normas sociais e culturais

Por Kelly Davis, Rukudzo Mwamuka, Erla Magnúsdóttir e Gabriella Brent

(Ilustração de iStock/Kubkoo)

No mundo todo, o estigma e as normas de gênero continuam impedindo que muitos homens procurem ajuda para tratar de sua saúde mental. A masculinidade tóxica diz a eles que não são “homens de verdade” a menos que guardem suas lutas dentro de si – sendo a raiva ou estoicismo as únicas respostas consideradas aceitáveis diante de adversidades. Essas convicções sociais também limitam a capacidade dos homens de reconhecer e expressar o seu mundo emocional, o que pode resultar em comportamentos de escape, como o uso de drogas, que impactam negativamente a si mesmos e aos outros, especialmente em seu círculo íntimo. Esses comportamentos são normalizados em muitas sociedades, perpetuando culturas prejudiciais que afetam todos os gêneros e originam indicadores negativos, como a decadência da saúde física e dos relacionamentos dos homens e das pessoas próximas deles.

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Apesar dos benefícios já comprovados dos recursos para melhorar a saúde mental, nos Estados Unidos, por exemplo, homens têm metade da probabilidade de requerir serviços nessa área do que as mulheres. Pesquisas demonstram que, geralmente, os homens consideram que a procura de serviços de saúde mental significa “ser fraco” e “pouco viril” e têm preocupações sobre como essa atitude será percebida pelos outros. Os impactos disso são enormes; nos Estados Unidos, e no mundo todo, a chance de suicídio é maior entre eles do que entre mulheres. Embora essa diferença seja motivada por muitos fatores, ela indica uma falha cultural para responder às necessidades de metade da população. A relutância dos homens em participar de conversas sobre o tema também contribui para o fato de as mulheres constituírem a maioria esmagadora dos prestadores de cuidados de saúde mental, o que por sua vez diminui ainda mais a disposição masculina para  se engajarem nesses serviços. Intersecções com outros aspectos como raça, identidade LGBTQ e estado socioeconômico agravam ainda mais os problemas de acessibilidade e representação.

A questão é que as conversas sobre a procura de ajuda na saúde mental por parte dos homens não dizem respeito exclusivamente a eles ou ao pessoal da área em questão. Em todos os setores de impacto social, as iniciativas muitas vezes não conseguem envolver plenamente os membros da comunidade, mesmo quando eles provavelmente se beneficiariam dos serviços e recursos oferecidos. Ao examinar algumas das formas como as organizações globais de saúde mental têm feito progressos para dar início a debates e fornecer recursos eficazes e responsivos para os homens, os líderes de impacto social podem promover um engajamento melhor dos indivíduos especialmente aqueles que foram historicamente excluídos ou enfrentam barreiras culturais adicionais para o sucesso.

 

Dê lugar de liderança a protagonistas vulneráveis

 

A educação em saúde mental é essencial, pois muitas pessoas não têm as ferramentas para identificar desafios como a depressão ou para saber onde procurar ajuda. Contudo, simplesmente fornecer informações sobre saúde mental é insuficiente. O compartilhamento de narrativas costuma ser um caminho muito importante para dotar as pessoas de uma melhor compreensão e de perspectiva sobre os dados que lhes chegam. A capacidade de nos reconhecermos e a nossas experiências em histórias que nos contam é fundamental para isso.

No caso da saúde mental masculina,  isso significa ressaltar a forma como esse tópico pode afetar os homens de forma diferente. Por exemplo, dizer a um homem para pedir ajuda sem admitir que muitos outros sofrerão rejeição ou foram humilhados em suas tentativas de mostrar vulnerabilidade provavelmente será menos eficaz para que eles se identifiquem com a questão do que ouvir de um outro homem como a sua procura por ajuda se conecta com aspectos de sua própria identidade. Embora as iniciativas para reduzir o estigma dos homens muitas vezes ressaltem modelos associados à masculinidade tradicional, como atletas profissionais, dar destaque a histórias de pessoas com as quais eles se identifiquem suscita mais impacto e, para alguns, é preferível.

Em vez de simplesmente falar sobre a possibilidade e a eficácia de tratar da saúde mental, a comunidade pode se valer da narrativa para modelar a vulnerabilidade, demonstrar o impacto dos recursos e ajudar indivíduos a se identificarem com histórias de seus pares. Contar histórias pessoais é uma prática padrão no trabalho de transformação social. No entanto ela é geralmente utilizada para fins de obtenção de financiamento, sendo muitas vezes deixada de lado quando se trata do envolvimento comunitário. Isso contribui para que os membros da comunidade não levem em conta recursos que parecem irrelevantes para as suas experiências.

Embora devam evitar narrativas simbólicas que se servem da voz alheia para destacar seu próprio trabalho, lideranças voltadas para o impacto social podem firmar parcerias locais com defensores da causa, além de fornecer recursos, na forma, por exemplo de apoio, capacitação e financiamento, que permitam que as pessoas contem suas histórias de modo a inspirar os outros. Além disso, podem se unir a organizações da sociedade civil, negócios sociais, instâncias governamentais e escolas, ou criar campanhas de mídia para ampliar o alcance de sua mensagem por meio de espaços comunitários confiáveis.

A campanha Speak Up, promovida pela BasicNeeds Kenya, uma organização sem fins lucrativos que trabalha na saúde mental do Quênia há mais de 15 anos, é um ótimo exemplo. A ação se vale de membros da comunidade local  para sensibilizar homens e capacitá-los como defensores da causa, com foco em suas próprias histórias sobre a saúde mental, incluindo a respeito do impacto que teve nelas a busca por apoio. A organização se valeu de vídeos de alta qualidade no YouTube que podiam ser compartilhados nas redes sociais e se uniu a noticiários locais para compartilhar as histórias. Uma avaliação bastante rigorosa comprovou efeitos positivos para alterar o estigma em torno do tema.

Qualquer que seja o destinatário da mensagem, os agentes de mudança devem priorizar o compartilhamento de narrativas e perspectivas daqueles que, no mais das vezes, não são consideradas lideranças, a fim de  demonstrar que essas pessoas fazem parte da comunidade e podem mudar a opinião dos demais muito além do público-alvo.

 

Capacite membros da comunidade a fornecerem apoio e recursos

 

Além do compartilhamento de histórias como forma de romper com estigmas sociais, os membros da comunidade devem estar à frente do fornecimento de  recursos. Existem evidências consistentes de que, no concernente à saúde mental, eles podem ser  tão eficazes quanto médicos na prestação de algumas formas de apoio à saúde mental. Seu envolvimento pode ajudar na identificação daqueles que buscam pelos serviços, construindo confiança e meios mais sensíveis às suas necessidades e experiências.

Em vista da sub-representação masculina na força de trabalho da saúde mental e diante da alta formação exigida para ser um profissional clínico na área, treinar membros da comunidade é uma forma de acelerar o atendimento de muitos que enfrentam problemas como depressão e ansiedade, em número crescente. Satisfazer as necessidades dos mais desprovidos depende de parcerias e ações de sensibilização para que os membros da comunidade sejam também fornecedores, e não só consumidores  de recursos.

A Amna, uma organização que fornece serviços comunitários de saúde a refugiados, recruta e contrata facilitadores com vivência para comandar intervenções psicossociais com o objetivo de melhorar a saúde mental e o bem-estar. O programa Dinami se destina a jovens e se compõe de ações como o Dinami Friend, um clube juvenil para rapazes, e o Football4all, um evento mensal que conjuga atividades esportivas e de cura psicossocial. Formar e contratar facilitadores com cuja experiência os participantes podem se identificar amplia o alcance entre os rapazes e ao mesmo tempo atrai mais deles para que se tornem responsáveis por programas. Lideranças voltadas para o impacto social podem seguir princípios semelhantes, contratando e capacitando membros da comunidade afetada para estar à frente de esforços de em divulgação e serviços e em posições de liderança mais amplas.

 

Vá aonde as pessoas estão

 

Em vez de esperar que as pessoas procurem informações quando tiverem tempo para isso, as organizações podem ir até essas pessoas no local onde estão. Por exemplo, é essencial que recursos de saúde mental estejam disponíveis nos locais onde se prestam serviços de saúde geral – mas estes também são pouco procurados pelos homens. Além disso, mesmo que os homens se prestem a compartilhar suas histórias e a prestar serviços, esses recursos terão alcance limitado se não forem oferecidos de forma eficaz ao  público-alvo.

A fim de fomentar o debate em lugares onde os homens costumam passar bastante tempo, foi criado no Zimbábue o Banco da Amizade. A ação de combate  à depressão resultou de uma parceria entre a Organização Mundial de Saúde e a Fifa, o órgão internacional que governa o futebol, durante a Copa do Mundo de 2022 no Qatar. Como parte da campanha #ReachOut da Fifa, que incentiva a busca de ajuda e ações em prol da saúde mental, 32 Bancos da Amizade representando países participantes do torneio foram instalados em estádios e espaços comunitários. Líderes governamentais, esportivos e ONGs promoveram a ação nos meios de comunicação social, e os bancos foram utilizados para criar espaços de conexão entre membros de uma comunidade esportiva masculina, em meio à qual os estigmas de saúde mental são mais elevados do que em outros grupos. A parceria entre a OMS e a Fifa foi renovada e deve ocasionar novas campanhas destinadas a aumentar o bem-estar mental através do esporte, ao longo dos próximos quatro anos.

Além de utilizarem fóruns públicos para diálogo e sensibilização, as organizações que registrem baixo engajamento podem adaptar debates em curso na comunidade para que elas se alinhem mais às expectativas de utilização dos recursos. Por exemplo, a Mentally Aware Nigeria Initiative (Mani) oferece conversas terapêuticas gratuitas via WhatsApp como forma de fornecer apoio eficaz e eliminar custos. Embora esse recurso tenha sido bem recebido, a Mani percebeu que cerca de 85% das chamadas eram de mulheres. Determinada a alcançar mais homens, a equipe realizou pesquisas comunitárias e descobriu que os homens preferiam serviços baseados em texto para se expressarem e receberem apoio. Após o lançamento desse recurso, houve um aumento de 40% no número de homens que pediram ajuda.

 

Conclusão

 

A dificuldade de líderes para alcançar e envolver aqueles que mais se beneficiariam dos recursos é comum em todos os âmbitos do impacto social. Destacar histórias da comunidade, capacitar líderes comunitários para prestar serviços e entender e priorizar as preferências dos membros da comunidade, são maneiras como as lideranças podem responder às necessidades das pessoas, aumentar seu envolvimento e criar caminhos para que os indivíduos afetados transformem os recursos e as suas comunidades.

 

AS AUTORAS

Kelly Davis é vice-presidente associada de defesa da Peer and Youth Advocacy na Mental Health America, onde está à frente de esforços para expandir o apoio e a liderança de jovens adultos. Entre seus projetos atuais, está uma parceria com estudantes universitários para promover o direito à saúde mental no ensino superior e a colaboração com jovens para definir prioridades para a política de saúde mental no âmbito escolar.

Rukudzo Mwamuka é uma psiquiatra que vive e trabalha no Zimbábue. Nos últimos sete anos, ela tem prestado atendimento clínico a pacientes de comunidades marginalizadas. Durante seu trabalho com os Bancos da Amizade, Rukudzo adquiriu experiência de liderar esforços para ampliar ações psicológicas contra a depressão.. Atualmente atende no Hospital Central Sally Mugabe em Harare, Zimbábue.

Erla Magnusdottir é coordenadora de saúde mental na CBM UK e colabora estreitamente com parceiros globais envolvidos em iniciativas da área. Ela também desempenha um papel central na facilitação da Rede BasicNeeds, composta por dez organizações dedicadas a iniciativas comunitárias de saúde mental em vários países.

Gabriella Brent é chefe de programas e líder clínica da Amna, organização que fornece saúde mental e apoio psicossocial a comunidades de pessoas em deslocamento forçado. Ela é conselheira e psicoterapeuta e supervisiona os programas internacionais de serviços diretos, treinamento e capacitação da Amna. Sua especialidade é a psicologia da libertação, que leva a terapia para fora dos consultórios com o objetivo de desenvolver, testar e defender sistemas de atendimento mais holísticos para comunidades marginalizadas. Antes de trabalhar na Amna, Gabriella passou por serviços de direito de família, justiça criminal, saúde mental e tratamento de drogas, dirigindo e ampliando modelos de atendimento mais humanos.



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