Imprimir artigo

Intermediários, tradutores da filantropia

Panorama do campo mostra que agentes que medeiam doações podem promover novas soluções no setor e intervenções sociais mais efetivas

Por Marcello Stella

Em uma definição simples e já bastante difundida, a filantropia pode ser compreendida como o uso de recursos privados para fins públicos.  No Brasil, boa parte dela é, hoje, praticada pela elite organizada por meio de grandes fundações familiares ou empresariais. Segundo a pesquisa Doação Brasil 2022, realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), o total das contribuições de indivíduos para ONGs foi da ordem de R$ 12,8 bilhões. Se considerarmos que, no mesmo ano, os 137 associados que participaram do Censo Gife 2022-2023 responderam por R$ 4,8 bilhões em doações, chegamos à conclusão de que um terço dos recursos doados no período aponta para um ticket individual elevado. Na outra ponta do ecossistema, estão organizações sociais que recebem os recursos, algumas delas tradicionalmente vinculadas a lutas populares, com engajamento antissistema ou de base comunitária. E, entre ambas, os intermediários filantrópicos.

Leia também:

Equidade no emprego contra o racismo estrutural no Brasil

Decolonizando a construção de saberes

No livro Brazilian Elites and their Philanthropy: Wealth at the Service of Development (As elites brasileiras e sua filantropia: riqueza a serviço do desenvolvimento), de 2021,  Jessica Sklair localiza o surgimento das organizações intermediárias no Brasil no fim dos anos 1990. Foi nessa época que, na esteira de outras organizações, como o Grupo de Institutos Fundações e Empresas (o já citado Gife, de 1995), surgiram entidades como o Idis e o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, ambos em 1998. Não por acaso, aqui, como em boa parte do mundo, esse foi o momento de fortalecimento do neoliberalismo, com a consequente retirada do Estado como financiador de um sistema de bem-estar social.

O setor intermediário é, portanto, bastante recente, acolhendo atores com origens e objetivos bastante díspares. Ele nasce com a finalidade de profissionalizar e fiscalizar o uso de recursos. E, por sua própria posição, atua sob a marca de certa ambiguidade. De um lado os intermediários têm de lidar com organizações sociais tradicionais; de outro, devem agir para convencer os filantropos – no Brasil, a elite – a doar diretamente a essas organizações, que conhecem seus territórios melhor que ninguém.

A operação cotidiana das instituições intermediárias ainda é pouco estudada. Pensando nisso, nós, do Instituto Phi – organização sem fins lucrativos que assessora indivíduos e empresas a realizar sua filantropia de forma estratégica e com mensuração de resultados –, efetuamos um levantamento sobre o perfil de origem social e trajetórias pessoais e profissionais dessas organizações no Brasil.

Dentro desse trabalho, também procuramos dimensionar essas entidades, por meio de dados quantificáveis, como orçamentos, tamanhos de equipe e recursos movimentados para o setor. Trabalhamos os dados a partir de indicações e de nossa rede de conhecimento e parceiros, além de consultar o estudo publicado em 2023 pela Rede Comuá, o qual também mapeou organizações intermediárias filantrópicas que fossem “independentes” – isto é, que não dependam única e exclusivamente de um só doador. O resultado, se não esgota as organizações brasileiras, oferece uma boa fotografia 3×4 do que deve ser  esse ecossistema.

Para compor o levantamento, visitamos sites e redes sociais de aproximadamente 50 instituições, verificamos seus relatórios anuais e balancetes para coleta e registro de informações, bem como registramos dados públicos sobre suas lideranças, equipes e projetos apoiados. Avaliamos os perfis de lideranças de organização em redes sociais profissionais e, de suas páginas pessoais, extraímos outros dados, como escolaridade e carreira, pertinentes ao levantamento.

Encontramos, ao todo, 39 organizações que realizam trabalhos de intermediação entre doadores e projetos sociais. Destas, 75% nasceram no século 21, o que indica que, no país, essas instituições têm 20 anos de existência ou menos. A região Sudeste concentra 79,5% das organizações – com sede principalmente nos estados do Rio (35,9%) e de São Paulo (38,4%) – e as demais se distribuem entre Nordeste e Norte, com 7%, e Sul e Centro-Oeste, respondendo por 2,5%.

Não foi possível levantar custos administrativos e de gestão de pessoas para todas as instituições. Dentre as 26 que tinham o dado à disposição, esse valor empregado é de até R$ 5 milhões anuais. Destas, a maioria (64%) tem equipes de até 20 funcionários.

Quanto a recursos movimentados para o setor, informação obtida junto a 28 organizações, a maioria delas (21) doa até R$ 10 milhões por ano, e as demais doam acima desse valor. O número de projetos apoiados anualmente vai até 50. A soma das cifras destinadas por meio dessas 28 instituições foi de cerca de R$ 257 milhões em 2022.

Em geral, as organizações intermediárias recebem sua remuneração através da emissão de notas de prestação de serviços que são cobradas do cliente – o doador. À parte dos valores que são destinados aos projetos, o modelo de retirada de percentual sobre a doação também é praticado no campo. E há ainda as que, como todas as ONGs do setor, vivam de doações institucionais. É possível encontrar também os três modos de remuneração operando simultaneamente em uma mesma instituição.

As lideranças são majoritariamente femininas (56%) e brancas (84%), segundo dados de 39 organizações. São profissionais com trajetória em geral desenvolvida no terceiro setor ou na área corporativa, por vezes com breves passagens por instituições públicas. As áreas mais frequentes de formação são administração, ciências sociais, economia, direito, engenharia, comunicação ou psicologia, em universidades públicas. Metade delas têm pós-graduação de algum tipo, na maioria das vezes cursada no Brasil. Em grande parte dos casos (33 de 39), estão à frente de uma organização intermediária pela primeira vez.

Esse breve resumo dos achados do levantamento permite afirmar que o perfil das organizações intermediárias não difere do que se nota no terceiro setor e no ecossistema da filantropia brasileira como um todo. O eixo Rio-São Paulo é o centro das decisões de distribuição de recursos, e é notável a desigualdade de raça nos postos de comando. Além disso, há uma grande repetição e concentração de apoios para causas que geram mais visibilidade e são tradicionalmente as preferidas de doadores de alta renda.

Os pontos levantados acima sugerem que as organizações intermediárias brasileiras devem ainda ter um olhar atento a sua própria estrutura interna a fim de garantir a participação de grupos historicamente sub-representados, seja em seu quadro pessoal, seja em direcionamento de recursos. Esses grupos não ambicionam apenas receber mais doações, mas também atuar na elaboração de soluções para seus próprios problemas e questões.

Além disso, cabe estimular a clientela de doadores, tanto pessoas físicas quanto jurídicas, a analisarem dados e indicadores do setor com o objetivo de direcionar mais recursos para regiões que não aquelas costumeiramente privilegiadas – Sul e Sudeste.

O levantamento permite ainda apontar duas tendências dentro do campo. A primeira é de segmentação, registrando-se o surgimento de organizações comprometidas com temáticas bem recortadas e que tradicionalmente recebem menos recursos – como luta antirracista, feminismo, comunidades quilombolas e indígenas. Em alguns casos, os intermediários podem se dedicar exclusivamente ao tema em questão, concretizando doações para a causa escolhida; em outros, ela pode não ser exclusiva, mas ainda assim constar entre as principais de seu portfólio.

A segunda é que o conjunto de instituições mapeadas permite depreender uma maior disposição a repassar recursos para as organizações sociais que atuam diretamente na ponta, sem investir apenas em programas próprios. Entre as 39 organizações analisadas no levantamento, 20 têm iniciativas próprias, mas 16 se dedicam completamente ao repasse de doações e recursos para parceiros – não foi possível identificar como, quanto a isso, operam as outras 3. Alguns fundos comunitários preveem programas de doações até para indivíduos e coletivos não formalizados, garantindo recursos a atores que dificilmente acessariam editais, justamente pela ausência de formalização.

Esses dois aspectos representam uma mudança na paisagem do terceiro setor no Brasil, se pensarmos na realidade descrita em 1993 por Leilah Landim Assumpção em sua tese de doutorado, “A invenção das ONGs: do serviço invisível à profissão sem nome”.

Naquela ocasião, a pesquisadora mostrou que o terceiro setor no Brasil se compunha majoritariamente de organizações militantes e de assessoria a movimentos sociais de luta social, com um viés mais à esquerda, ligadas a pautas anticapitalistas ou antissistema. Outro aspecto era a tendência de fundações familiares e empresariais a doarem para programas próprios e nunca para outras organizações sociais – quadro apresentado também por Jessica Sklair, no seu já citado livro sobre a filantropia das elites no Brasil.

É importante destacar que esse é um cenário em constante disputa e que, apesar dos riscos de retrocesso, é possível também vislumbrar evolução e progresso.

Valendo-se do caráter bastante jovem das organizações intermediárias, as organizações de base comunitária, envolvidas em engajamentos e militâncias mais críticas ao statu quo, devem ser estimuladas a procurar, sem receio, essas organizações-ponte e a sugerir ampliações de seu escopo e espectro de atuação.

Por sua parte, os intermediários não devem temer o contato com instituições familiares privadas que atuem com uma concepção de investimento social com retorno.

Entidades que adotam uma perspectiva ancorada na lógica econômica, transpondo o pensamento financeiro para o universo das doações, seguem modelos britânicos e americanos que buscam aproximar o investimento social de um investimento tradicional, que vise lucro. Essa importação não se deu sem disputa e resistência e disso resultou, inclusive, a criação de modelos híbridos, em que se mesclam a atuação tradicional das ONGs brasileiras, vinculadas à luta social, e a de instituições de investimento social. Essa coexistência de dois modos de pensar a transformação é o que gera o senso de ambiguidade e a necessidade de promover a conexão entre esses dois mundos – papel das entidades intermediadoras.

A aproximação entre intermediários a entidades familiares privadas pode promover novas soluções e modos de combinar intervenções sociais mais efetivas para a redução de desigualdades, o combate à crise climática e outros desafios, não só brasileiros, mas globais.

Os dados do levantamento sublinham a importância da ação das intermediadoras no cenário nacional. Na confluência de parceiros, doadores, clientes e projetos apoiados que só elas são capazes de promover pode residir uma de suas maiores forças – a grande capacidade de traduzir linguagens diversas e construir pontes entre expectativas variadas, vindas de uma miríade de universos sociais.

O AUTOR

Marcello Stella é formado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado em sociologia pela mesma instituição. Tem experiência em pesquisas qualitativas e quantitativas, e, nos últimos anos, atua no terceiro setor. É coordenador de projetos sociais no Instituto Phi.



Newsletter

Newsletter

Pular para o conteúdo