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Decolonizando a construção de saberes

Reflexões sobre a produção de conhecimentos no ecossistema de filantropia

Por Jonathas Azevedo e Yasmin Morais

 

A produção de conhecimento é uma prática amplamente difundida no campo da filantropia. Para além do monitoramento e avaliação de programas, a construção de saberes nesse campo exerce um papel estratégico na criação e promoção de comunidades de práticas, fornece insumos para desenvolvimento e implementação de políticas públicas e é um importante instrumento para o desenvolvimento de estratégias de incidência e comunicação, a fim de pautar agendas consideradas prioritárias por esses atores.

A Rede Comuá reúne organizações doadoras (grantmakers) da filantropia independente, que mobiliza recursos de diversas fontes para apoiar organizações, movimentos, coletivos atores e atrizes da sociedade civil em suas lutas por justiça socioambiental, direitos humanos e desenvolvimento comunitário. A Comuá é, portanto, comprometida com o movimento de decolonização, ao promover e disseminar as práticas da filantropia comunitária e de justiça socioambiental em seu pilar de produção de conhecimento.

O Programa Saberes, lançado pela Rede em 2022, é uma expressão desse compromisso, já que promove a produção e compartilhamento de práticas, experiências, reflexões e tecnologias sociais que impulsionam as agendas da filantropia comunitária e de justiça socioambiental no Brasil.

A partir desta experiência, este texto tem o objetivo de refletir sobre a importância da decolonização de saberes no campo filantrópico.

 

Que tipo de conhecimento é produzido no Programa Saberes?

 

Por meio do programa, práticas são evidenciadas a partir das pesquisas desenvolvidas pelos participantes, lideranças comunitárias e profissionais do campo da sociedade civil, que recebem apoio financeiro para produção e compartilhamento dos saberes de seus territórios e comunidades.

Exemplos de conhecimentos que contribuem para o campo filantrópico com uma perspectiva decolonial são as produções de Cléber Rocha, Larissa Ferreira e Jész Ipólito, participantes da primeira turma do programa.

Cléber Rocha sistematizou a experiência do Fundo Regenerativo de Brumadinho, criado em resposta ao crime socioambiental que assolou a região. Para contar o passo a passo da criação e implementação, Rochalançou uma série de metodologias e formatos – desde entrevistas e artigos até produções artísticas, como poesia e músicas – para recontar as histórias de transformação promovidas pelo fundo.

Outro exemplo de prática inovadora e criada a partir das bases é a de círculos de doadores, investigada por Larissa Ferreira. Durante o programa, a bolsista se aprofundou sobre experiências internacionais e nacionais de círculos de doação (giving circles), sistematizando a experiência da campanha Quanto Vale? do Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA) no Litoral Norte de São Paulo, pautando debates sobre a conexão entre filantropia e educação ambiental, uma agenda ainda negligenciada em meio aos debates sobre mudanças climáticas.

Já a pesquisa de Jész Ipólito ressaltou a importância de valorizar saberes diversos ao reunir narrativas de mulheres negras das regiões Norte e Nordeste sobre o universo da filantropia. Além de produzir artigos, Jész promoveu um evento que reuniu algumas das mulheres que participaram do seu projeto, a fim de trazer suas próprias vezes para o centro do debate.

Na perspectiva da Comuá e de organizações da filantropia independente comprometidas com a justiça socioambiental, o passo primordial na jornada de decolonização da filantropia brasileira envolve iniciar um processo profundo de reflexão sobre as práticas históricas. De acordo com o mapeamento Filantropia que transforma, divulgado pela Comuá em parceria com a ponteAponte em 2023, , 94% das organizações relacionadas, que atuam nas áreas de justiça socioambiental e desenvolvimento comunitário, estão contribuindo ativamente para a construção de conhecimentos e reflexões sobre suas práticas. A colaboração e as relações horizontais são princípios fundamentais desse processo, com 81% das organizações promovendo a produção de conhecimento em parceria com as organizações e líderes que apoiam.

Isso implica criar um movimento constante de desconstrução e adotar, na esfera social, uma abordagem que não se baseie em impor soluções rápidas de cima para baixo, mas, sim, em fortalecer as vozes das comunidades e reconhecer o poder que elas têm de buscar suas próprias soluções para enfrentar os desafios.

Como expressado por Fabiana Silva, integrante da equipe da Casa Fluminense, em um texto publicado no blog da Rede Comuá em 2023, um dos fundos que integram a Rede, “nossa defesa é pela construção efetiva de um projeto de emancipação coletiva para pessoas e grupos marginalizados, a partir do emaranhado de saberes advindos da sociedade civil, movimentos sociais, culturais, comunitários e de comunicação popular”.

Por que é importante decolonizar a produção de saberes

 

O conhecimento vigente da filantropia se atém a práticas exclusivistas e que servem aos interesses do capitalismo, como demonstra Edgar Villanueva em seu livro Decolonizing Wealth: Indigenous Wisdom to Heal Divides and Restore Balance; as práticas e a produção de conhecimento no campo são dominadas pelo eurocentrismo, ocidental e colonial, distanciando-se da realidade das margens e tendo como principais protagonistas pessoas majoritariamente brancas e de classe alta, com pouco espaço para outras perspectivas, como também escreve Grada Kilomba, em seuMemórias da plantação.

Organizações e movimentos atuam no campo para tensionar como se dá a produção de conhecimento a partir de conceitos como a decolonização. Esse princípio é a base do Programa Saberes.

O processo colonial, como apontado por Frantz Fanon em Os condenados da Terra, foi marcado por separação, segregação e isolamento de grupos colonizados, os quais foram empurrados às margens de produção e do acesso ao conhecimento considerado formal e válido. A decolonização, portanto, é o processo de desfazer os impactos persistentes da colonialidade. Trata-se de conceder autonomia a indivíduos e grupos que continuam a sofrer as consequências desse processo repressor e perene.

Essa perspectiva enfatiza a ideia de que nós, como indivíduos e comunidades marginalizadas pelo capitalismo, devemos ter o poder de narrar nossas próprias histórias e realidades.

Numa perspectiva global, os grupos colonizados ficam às margens dos colonizadores que ocupam o centro do sistema capitalista. Além de serem um lugar de repressão e resistência – como as define bell hooks em Yearning: Race, Gender, and Cultural Politics, – as “margens” são também são um lugar de criatividade, defende Grada Kilomba. Isso porque nelas são produzidos conhecimentos importantes e implementadas soluções inovadoras e verdadeiramente transformadoras para seus territórios.

Com o crescente debate da decolonização da filantropia e ajuda humanitária –impulsionado por movimentos como Decolonize Aid, #ShiftThePower, Ringo (Reimagining INGOS) e Medindo o que Importa (Measuring What Matters) –, atores e atrizes do campo, em especial do Sul Global e organizações e movimentos liderados por minorias políticas, têm tensionado as bases da produção de conhecimento no campo filantrópico.

Tendo em vista a resiliência e criatividade das margens, esses movimentos reforçam o papel que a produção de conhecimento pode ter na preservação, valorização e disseminação de saberes ancestrais, coletivos e diversificados que constituem a filantropia comunitária e de justiça social.

 

Passos para promover a decolonização do conhecimento na filantropia

 

As jornadas em direção à decolonização da produção de conhecimento podem tomar diversos rumos a partir das experiências de suas organizações e saberes de suas comunidades e territórios. Nosso intuito aqui, então, não é prover um passo a passo ou receitas prontas, mas pílulas de inspiração e reflexão.

Promova autorreflexões sobre o que significa e como se dá a produção de conhecimento em suas organizações 

Essa autorreflexão é importante para trazer luz aos pressupostos preconceituosos e coloniais que perpassam a nossa formação acadêmica e profissional. Como alerta Bourke em seu artigo Positionality: Reflecting on the Research Process, as crenças pessoais de uma pessoa pesquisadora (assim como de uma pessoa profissional), sua orientação política e seus marcadores sociais, como gênero, raça e educação, afetam a sua pesquisa e prática, pois carregam significados e nuances herdados de um histórico estrutural colonialista. Apenas nutrindo essa consciência, seremos capazes de verdadeiramente questionar a nossa própria percepção sobre os saberes que abraçamos e disseminamos em nossos contextos.

Mapeie e valorize os saberes e conhecimentos já produzidos em seus territórios

Nesse processo de autorreflexão, busque e valorize saberes presentes em seus territórios e que têm potencial de enriquecer o nosso campo e de fomentar práticas genuínas de transformação social para verdadeiramente viabilizar a sua implementação e disseminação dentro e para além do campo filantrópico.

Desafie os cânones da produção de conhecimento nos espaços de poder que você ocupa

Ao reproduzir acriticamente saberes hegemônicos (europeus, brancos, masculinos, heteronormativos, etc), corremos o risco de ser coniventes com o sistema colonial e excludente em que vivemos. Se nossas inovações sociais não desafiarem essas estruturas de poder vigentes resgatando as perspectivas ancestrais e marginalizadas que foram (e são) apagadas pela colonialidade, essas soluções não terão outro efeito senão aprofundar ainda mais esse processo. O conhecimento produzido pelas próprias comunidades deve guiar as agendas e tomadas de decisão no campo filantrópico, garantindo que as vozes desses profissionais e líderes ocupem espaços que antes eram (e ainda são) exclusivos de uma elite acadêmica branca e de classe alta.

Identifique as lacunas de conhecimento sobre as filantropias feitas no nosso país

Deixar de abordar o desafio das lacunas de conhecimento no campo filantrópico tem consequências ao perpetuar narrativas coloniais no setor filantrópico e marginalizar ainda mais o conhecimento e as práticas de minorias políticas, causando um verdadeiro epistemicídio no campo. Epistemicídio, como coloca Sueli Carneiro, se refere à destruição sistemática, negação ou apagamento de formas de conhecimento e sabedoria produzidas por grupos marginalizados, especialmente comunidades negras, indígenas e historicamente oprimidas. Carneiro enfatiza a importância de reconhecer e valorizar o conhecimento produzido por essas comunidades marginalizadas como uma forma de resistência e empoderamento.

Apoie (também financeiramente) a produção de saberes diversos

Valorizar conhecimentos diversos passa também por apoiar financeiramente sua produção. Portanto, doe a partir da confiança, com acesso facilitado a recursos, em diálogo permanente e a partir de uma construção conjunta e parceria com organizações da sociedade civil e lideranças comunitárias, entendendo que estes são os que mais entendem as reais demandas de territórios e lutas políticas para a garantia de direitos. Apoiar a produção de saberes ancestrais é também reforçar a autonomia desses grupos na construção de soluções e de outros futuros possíveis.

Em conclusão, decolonizar a produção de conhecimento na filantropia não é apenas uma busca acadêmica e teórica, mas um ato político. É um apelo à ação para todos os envolvidos no setor filantrópico reconhecerem as vozes das pessoas e grupos marginalizados, que enriquecem nosso campo e, principalmente, alinham nossa prática a reais formas de transformação social, de acesso a direitos e de fortalecimento da democracia.

 

OS AUTORES:

Jonathas Azevedo tem bacharelado em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense, especialização em Ajuda Humanitária e ao Desenvolvimento pela PUC-RIO e mestrado em Inovação Social e Empreendedorismo pela London School of Economics and Political Science. Atualmente, está Assessor de Programas na Rede Comuá.

Yasmin Morais é uma pessoa cuir/queer e pansexual. Graduada em Relações Internacionais pela University of Boston/Universidade Anhembi Morumbi e mestre em Poder, Participação e Mudança Social pelo Institute of Development Studies. Atualmente, está Assistente de Programas na Rede Comuá.



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