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Equidade no emprego contra o racismo estrutural no Brasil

Uma nova iniciativa baseada em dados ajuda empresas a medir e combater desigualdades raciais em sua força de trabalho

Este artigo faz parte da nossa série “A busca global pela equidade”. Para conferir os demais artigos, clique aqui.

 Por Guibson Trindade, Débora Montibeler e Paula Jancso Fabiani

Arte: Raffi Marhaba, The Dream Creative

Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e, antes disso, um intelectual reconhecido, escreve em seu livro Racismo Estrutural, que “as instituições são

racistas porque a sociedade é racista”.  Almeida define racismo estrutural como um alargamento da noção de racismo institucional e argumenta que as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de meios de socialização que têm o racismo entre seus componentes. O racismo não é nem individual, nem um traço comportamental, mas uma expressão de uma característica estrutural na base de sociedades mundo afora – em especial, das de origem colonial como o Brasil.

Entender a natureza estrutural do racismo nos permite reconhecer e combater melhor sua expressão institucional que, no Brasil, se manifesta na exclusão dos negros de todos os espaços de poder e de decisão o que, por sua vez, limita a mobilidade social. Essa questão permanece como um vestígio das condições que se seguiram à abolição, quando o governo falhou em prover educação, trabalho e qualquer outra forma de apoio necessária para que os ex-escravizados transicionassem para uma vida de autonomia, independência e prosperidade.

Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o desemprego e o trabalho informal são mais frequentes nesse grupo, que também está mais exposto à violência e à pobreza. Segundo a linha de pobreza determinada pelo Banco Mundial, 18,6% dos brancos brasileiros são pobres; essa porcentagem quase dobra entre a população negra. E, se 11,3% dos brancos estão desempregados, a taxa supera os 16% para trabalhadores pretos e pardos. A disparidade se repete na remuneração.

Apesar das melhorias no acesso à educação superior e de esforços disseminados para ampliar a diversidade e a inclusão, as desigualdades no mercado de trabalho persistem. A fim de que haja avanços nessa causa, organizações, em especial as empresas, precisam melhorar seu entendimento das reais condições de empregabilidade da população negra no país. A coleta de informação interna e o uso estratégico de dados sobre a composição racial da força de trabalho, particularmente nos cargos de liderança, pode ajudar as organizações a promover a equidade.

Um novo modelo para mensurar as desigualdades, o Protocolo ESG Racial, tem justamente esse objetivo. Vinculado ao Pacto de Promoção da Equidade Racial, iniciativa de organizações da sociedade civil, entre as quais o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), voltada a atrair companhias e investidores institucionais para a causa, o protocolo oferece um novo olhar para uma velha questão, ao proporcionar às empresas uma maneira de quantificar a desigualdade dentro de suas equipes, comparar a composição do quadro laboral à demografia local e desenvolver novas políticas e processos requeridos para alcançar um equilíbrio maior.

 

Raízes do racismo no Brasil

Neste artigo, seguimos a definição do IBGE, que estabelece que a população negra é a soma de indivíduos pretos (negros de pele escura) e pardos (negros de pele clara) descendentes de escravizados submetidos à migração forçada da África e submetidos à miscigenação no Brasil.

As desigualdades estruturais no Brasil derivam de uma das mais longas histórias de escravismo no mundo. Embora seja difícil determinar exatamente quando os primeiros africanos desembarcaram na costa brasileira, é possível dizer que isso se deu nas primeiras décadas após a invasão portuguesa. As plantações de cana e o refino do açúcar que foram o primeiro sustentáculo econômico da colônia demandavam mão de obra considerável e constante. Após tentar subjugar a população indígena, rapidamente diminuída por meios violentos ou por doenças importadas, o poder colonial introduziu a mão de obra escravizada da África, que já era explorada em Portugal.

A escravidão perdurou ao longo dos três séculos seguintes, sendo extinta somente em 13 de maio de 1888, pela Lei Áurea —66 anos depois de o país se tornar independente. O Estado brasileiro não implementou nenhuma política de reparação para a população recém-liberta. Após a abolição, a imigração europeia foi incentivada tanto para substituir os antigos escravizados negros como força de trabalho quanto para branquear a população através da miscigenação. Hoje, 56% da população brasileira é de negros, para os quais o legado escravocrata continua a ser um imenso obstáculo ao acesso da cidadania, do emprego e da mobilidade social.

Em anos recentes, o Brasil viu se alargar a consciência racial. De acordo com os dados mais recentes do IBGE, coletados no Censo de 2022, os que se declaram pardos são hoje 45,3% da população total, ultrapassando os brancos e tornando-se  o maior grupo racial do país. Em paralelo, ao longo da última década, a ação afirmativa pública, por meio da Lei de Cotas, ampliou o acesso à universidade para pessoas racializadas e pobres, aumentando sua presença nesse estágio da educação. Esse processo teve reflexos na cultura – com negros mais representados, por exemplo, nas novelas de TV tão populares – e no marketing.

No entanto, embora algumas empresas e outras instituições também tenham começado a responder a esse movimento, poucas organizações colocam a equidade racial como uma pauta central. Destacam-se as que trabalham com foco em consultoria, como a Uzoma, ou organizações não governamentais, como os fundos negros Baobá e Agbara, e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). No entanto, mesmo estas centram seus esforços em ações afirmativas e educativas, como letramento e grupos de afinidade, e em orientação para investimento social privado. Ações como essas são necessárias. Mas, para ampliar a efetividade de seus resultados, é necessária uma abordagem ampla e multifatorial.

 

Os dados como base

Um dos entraves principais à promoção de equidade racial no trabalho é a escassez de dados. A pesquisa demográfica nas organizações e, de modo geral, a produção interna de dados raciais é uma prática pouco disseminada. A falta de letramento racial – compreendida como a capacidade de entender e analisar questões relacionadas a raça – dificulta a compreensão das deficiências em diversidade e inclusão nas companhias. Vige ainda a crença bastante comum de que a desigualdade racial se deve ao acaso ou, ainda, a questões de mérito pessoal.

O Protocolo ESG Racial foi desenvolvido com o objetivo de sanar tais lacunas de dados – e consequentemente, de atuação. As empresas signatárias do Pacto de Promoção da Equidade Racial têm acesso a uma metodologia que provê métricas consolidadas no Índice ESG de Equidade Racial (IEER). Essa ferramenta de mensuração matemática se baseia em indicadores já existentes, posto que exigidos anualmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego – a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), a População Economicamente Ativa (PEA) e a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). O IEER permite medir com acurácia a disparidade racial, ao relacionar a presença e a remuneração de profissionais negros na comparação com a população economicamente ativa na região de atuação da companhia.

A mensuração, combinada ao acompanhamento das ações feito pelo pacto no âmbito da aplicação do protocolo, auxilia as companhias signatárias a combater as principais desigualdades. De modo mais amplo, a iniciativa consolida o compromisso antirracista no âmbito corporativo e dá às empresas um papel concreto na construção de uma sociedade mais equitativa e sustentável.

 

Mensuração a serviço de mudança real

O IEER se estrutura em três níveis e é desenhado para ajudar as companhias a adaptar medidas já existentes para que alcancem maior efetividade no combate à desigualdade racial.

No primeiro nível, o IEER_N1, é feito o diagnóstico da condição demográfica da empresa. A análise atribui peso substancial à presença de pessoas negras nos estratos superiores da hierarquia organizacional – indicador significativo de equidade. Com base no resultado, a empresa se compromete com novas metas de representatividade e à inclusão e desenha ações para cumpri-las em curto, médio e longo prazo.

Os níveis seguintes (IEER_N2 e N3) se relacionam aos objetivos estabelecidos pela empresa no N1. O N2 examina não só a inclusão, mas também a ascensão de profissionais negros em todas as esferas, desde o recrutamento inicial até a promoção e retenção nos quadros. Com base nisso, as empresas trabalham para alterar sua cultura organizacional, melhorando práticas e políticas de diversidade e da equidade racial por meio de ações afirmativas.

Por fim, no N3 contempla-se a contribuição para fora dos muros da empresa. Seu foco é a alocação de investimentos sociais corporativos em prol de equidade racial, visando a educação e o treinamento de profissionais negros e seu ingresso no mercado de trabalho. O protocolo propõe os parâmetros para a alocação dos investimentos, cabendo às empresas definir onde e como destiná-los.  Esses investimentos devem fortalecer os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de números 4 (educação de qualidade), 8 (emprego decente e crescimento econômico) e 10 (redução das desigualdades), com foco em garantia de direitos e antirracismo.

A análise nesse nível envolve o direcionamento de recursos para organizações que possuam lideranças negras atuantes, bem como o incentivo e o fortalecimento da cidadania e do empreendedorismo negros. O N3 valoriza, assim, a promoção da equidade racial em toda a sociedade.

A análise matemática do primeiro nível serve como ponto de partida para as avaliações subsequentes N2 e N3, seguindo uma escala que varia de -1 (quadro com menos negros do que a proporção encontrada na população local) a +1 (mais negros do que brancos). Portanto, quanto mais próximo de 0 for o índice registrado pela empresa, mais sua demografia interna se alinha às características raciais da região em que opera. É possível melhorar o N1 por meio da implementação das políticas referentes ao N2 e ao N3.

Ao longo das três etapas, o pacto acompanha e orienta as ações das companhias para melhorar seu IEER e, 18 meses após a adoção do protocolo, elas são reavaliadas. O primeiro ciclo se concluiu em setembro de 2023, e hoje o pacto reúne 67 empresas signatárias, todas de grande porte, das quais 12 já completaram o ciclo de reavaliação.

 

O protocolo em ação

O caso do Grupo Fleury, empresa de saúde especializada em medicina diagnóstica, ilustra como uma signatária que já trabalhava com políticas internas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) pode direcioná-las com mais eficácia para a equidade racial. O grupo iniciou suas ações em DEI em 2011, visando a inclusão de pessoas com deficiência, ampliando o foco ao longo dos anos. Ao aderir ao pacto, em 2022, passou a implementar novas medidas e a adaptar anteriores para os novos objetivos de equidade racial. As ações incluem desde grupos de afinidades e consultorias para desenvolver formação até ações mais práticas, como aquisição de toucas para cabelos volumosos, revisão da política de contratação, direcionando-a para vagas afirmativas, e um programa de aceleração de carreira para mulheres negras.

Embora a confidencialidade estabelecida dentro do pacto e pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) impeça divulgar informação que permita identificar as empresas, é possível, sem localizar os resultados, mostrar exemplos da evolução de indicadores internos de signatárias.

O primeiro caso é o de uma firma que teve seu N1 calculado em -0.72, indicando um desequilíbrio considerável na proporção de pessoas brancas em comparação com pessoas negras em sua estrutura hierárquica. Decorrido um ano e meio, após a adoção de novas políticas e práticas (N2) e de investimento social em treinamento e qualificação de trabalhadores negros (N3), a companhia teve uma melhoria de 22%, chegando a uma pontuação de -0.56. Essa mesma pontuação foi registrada, de início, por outra signatária. As ações adotadas pela empresa nos níveis subsequentes levaram a uma melhoria de 66%, obtendo o índice de -0.19 ao fim do ciclo de avaliação – um patamar quase ideal de equilíbrio racial.

É válido ressaltar que empresas que ainda não concluíram os primeiros 18 meses reportam regularmente ao pacto ações implementadas – como revisões de práticas de recrutamento e investimentos concretos em educação e conscientização. A ampliação de vagas afirmativas em diferentes graus hierárquicos é notável mesmo antes da reavaliação.

 

O caminho pela frente

Mensurar equidade racial em um país de proporções continentais como o Brasil apresenta uma série de desafios. Um deles é a criação de padrões e diretrizes que façam sentido e possam ser replicadas em todos os estados. O protocolo oferece essa possibilidade, ao considerar as especificidades de cada local de aplicação. Outra etapa a vencer é a difusão mais ampla, além do eixo Sul-Sudeste. Ainda que muitas das organizações participantes sejam multinacionais com unidades país afora, a adesão de signatárias nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste é menos expressiva.

Temos consciência de que não é só a população negra a sofrer pela invisibilização e precariedade no país. Mesmo dentro dela as questões têm nuances. O ônus desproporcional que a vida doméstica impõe às mulheres, por exemplo, é ainda mais pesado entre as negras, que são chefes de família em 56,5% dos lares brasileiros.

Os povos originários sofreram tentativas de genocídio desde a colonização e foram alienados do contexto da sociedade brasileira por séculos. Hoje,  segundo o Censo de 2022, os que se declaram indígenas são apenas 0,8% da população geral, o que reflete também o massacre epistemológico que sofreram. Até a Constituição Cidadã, de 1988, que garantiu às populações nativas o direito a suas línguas e tradições, era esperado que seus descendentes se assimilassem à cultura branca dominante. Ser indígena era um estado a ser superado.

O pacto está desenvolvendo novos índices para ajudar os efeitos da história colonial do Brasil também nesses grupos. Acreditamos que essas iniciativas são necessárias e trarão frutos. Vemos que, com dados já disponíveis, é possível enxergar a realidade da desigualdade racial no país e, em posse da informação, agir, favorecendo que mais cada vez mais empresas implementem mecanismos de equidade racial e realizem investimentos sociais com foco no tema.  No entanto, nenhuma ferramenta, presente ou futura, poderá prosperar sem o anseio e o esforço conjuntos. Só uma abordagem colaborativa, unindo os setores público e privado e a sociedade civil pode construir, de fato, a equidade.

OS AUTORES

Guibson Trindade Comunicólogo, ativista, estudou relações públicas e gestão de pessoas. Especialista em ESG e raça, cofundador e gerente-executivo do Pacto de Promoção da Equidade Racial, é professor convidado na Fundação Dom Cabral.

Débora Montibeler Psicóloga, desenvolveu estudos acadêmicos sobre processos de subjetivação e produção de identidade racial entre a população negra brasileira. É especialista em diversidade e inclusão na Blend Edu, além de ser membra-associada e consultora do Pacto de Promoção da Equidade Racial.

Paula Jancso Fabiani CEO do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), tem sua trajetória marcada pela atuação nos campos da filantropia e cultura de doação. Em 2020, ganhou o  Prêmio Folha Empreendedor Social pela liderança do Fundo Emergencial da Saúde – Coronavírus Brasil.

 

Uma versão adaptada deste artigo foi publicada na seção “Ponto de vista” da SSIR Brasil 8. Para conferir, acesse https://ssir.com.br/edicao-digital-08.



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