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O caminho da despolarização

Disciplina em ascensão, a comunicação de interesse público oferece soluções para um mundo amplamente dividido rumo à despolarização

Por Angela Bradbery e Jane Johnston

(Ilustração de Eric Nyquist)

As manchetes nos Estados Unidos relatam uma polarização política implacável. Vejamos o caso do controle de armas, por exemplo. Tiroteios em massa tornaram-se comuns demais e são acompanhados por reportagens que indicam que os esforços para a realização de reformas estão fadados ao fracasso. “À medida que seguem os tiroteios em massa, Washington volta a enfrentar o impasse sobre a questão das armas”, lamenta a manchete de 24 de janeiro de 2023 do New York Times, depois de dois tiroteios na Califórnia.

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A verdade, porém, é mais complexa do que sugerem as manchetes. Embora o movimento pelo uso seguro de armas tenha sofrido reveses sérios, também viu conquistas. A cada nova pesquisa, fica claro que a grande maioria dos americanos deseja tirar as armas das mãos de pessoas perigosas, e, em alguns estados, legisladores dos dois principais partidos do país já se posicionaram.

Em 2018, após um tiroteio que matou 17 em uma escola na Flórida, 26 dos 50 estados americanos e mais o Distrito de Colúmbia, onde fica Washington, aprovaram leis pelo uso seguro de armas, 12 delas encabeçadas por republicanos. No mesmo ano, aprovou-se em Delaware uma lei que permite apreensão de armas de pessoas avaliadas como perigosas por profissionais de saúde mental. O Congresso americano, fortemente dividido, aprovou, em junho de 2022, reformas modestas sobre o uso seguro de armas, com mais de duas dúzias de republicanos votando a seu favor.

“Durante anos, o lobby por armas espalhou o mito de que enfrentávamos uma escolha binária: armas para todos ou armas para ninguém. Isso não é verdade”, afirma a organização Gun Owners for Safety, coalizão criada pela ex-congressista Gabby Giffords, que sobreviveu a uma tentativa de assassinato em 2011. “Patriotas de todos os tipos podem concordar que a Segunda Emenda (que garante a legítima defesa) anda lado a lado com medidas de senso comum, tais como checagem plena de antecedentes. Nossa missão é reunir aliados improváveis para que defendam ideais de segurança e responsabilidade.”

Como pesquisadoras da comunicação de interesse público, entendemos a sabedoria que há em uma abordagem que privilegie pontos comuns em vez de diferenças. Vivemos em polos opostos do planeta e temos definições divergentes sobre o tema, mas compartilhamos inúmeros princípios comuns que nos parecem essenciais para lidar com o perigo, muitas vezes enraizado, da polarização política e social.

 

Três pontos essenciais

 

Área acadêmica emergente, a comunicação de interesse público busca usar o diálogo para enfrentar problemas sociais complexos. Na Universidade da Flórida, onde Angela leciona, a área é definida como o uso de comunicações estratégicas baseadas em pesquisas com o intuito de mobilizar pessoas para promover mudanças sociais efetivas e positivas – normalmente visando um fim determinado. Na Universidade de Queensland, onde Jane é professora, o termo significa priorizar processos democráticos (como consultas e escutas) e fomentar um debate público fundamentado. Logo, está tanto ligado ao processo quanto ao resultado ou à solução.

Apesar de tal divergência, compartilhamos três compromissos. Primeiro, defendemos o afastamento de pensamentos binários. Antagonismos rígidos entre bem e mal ou certo e errado não se aplicam ao nosso mundo social e político. Indivíduos são complexos e não se encaixam nas caixas nas quais os colocamos, mas em um espectro de pensamento ora progressista, ora conservador, segundo o assunto. George Lakoff, renomado linguista cognitivo e analista de discursos políticos, chama isso de “biconceitualismo”. O ponto de vista depende da situação e do problema.

Outros veem esse afastamento do binarismo como evidência do progresso social. Estudioso do futuro, Bob Johansen denomina essa maneira de conceber o mundo “pensamento de espectro pleno”. Como, cada vez mais, desempenhamos diferentes papéis na sociedade e nos valemos de múltiplas identidades ao longo de nossas vidas, o binarismo torna-se contraproducente. Somos obrigados a ir além e ver as coisas com suas nuances. Essa abordagem fluida em relação à vida moderna aceita que as diferenças não são tão gritantes quanto talvez parecessem ser no passado.

 

Pesquisas mostram que nossa convicção sobre o “outro lado” é imprecisa, como também é o que pensamos que os de lá acham de nós. Se conversarmos, descobriremos que temos muito mais em comum.

 

Em segundo lugar, promovemos a busca por pontos comuns. Pessoas que talvez discordem a respeito de certos assuntos podem encontrar valores que compartilham e que sejam capazes de fazê-los chegar a um acordo. Na esteira de uma terrível série de tiroteios em massa nos Estados Unidos, reportagens destacaram o fato de a maior parte dos portadores de armas ser a favor de determinadas medidas para seu uso seguro. Mensagens em prol das reformas se concentram na segurança como valor compartilhado, e aumentou a demanda para que armas sejam tratadas como carros – equipamentos potencialmente letais sujeitos a regulação que diminua seus riscos.

Na Austrália, uma guinada popular em direção a valores de liberdade individual, igualdade e inclusão fez com que algumas questões de justiça social, como casamento entre pessoas do mesmo sexo e morte voluntária assistida (VAD, na sigla em inglês), fossem legalizadas nos últimos anos. O casamento entre pessoas do mesmo sexo foi aprovado por voto popular em 2017, e muitas pessoas viram a mudança como uma vitória simbólica da questão da igualdade de gênero como um todo. Do mesmo modo, a VAD foi legalizada no estado de Victoria em 2019 e hoje é válida em todos os demais. Essas mudanças não são exclusividade da Austrália e demonstram como os valores públicos podem mudar, muitas vezes depois de anos, até décadas, de debates públicos. A despolarização acontece quando a maioria dos membros de uma sociedade aceita que, mesmo se as pessoas não concordarem a respeito de um assunto, elas possuem entendimentos comuns acerca dos valores que o sustentam. Democracias reconhecem os direitos fundamentais dos cidadãos a decidir com quem se casar e como morrer.

Em terceiro lugar, defendemos a escuta ativa aos argumentos do outro. Deve-se ver as coisas sob a ótica alheia – só assim é possível superar as diferenças. O conceito de “escutar ativamente” foi cunhado pela primeira vez pelos psicólogos americanos Carl Rogers e Richard Farson, em 1957. Essa abordagem é usada em situações que vão de uma terapia de casal à construção da paz entre nações. Isso pode ser ensinado desde cedo. O Centro de Informações Sobre Recursos Educacionais dos Estados Unidos (Eric, na sigla em inglês) lista a escuta ativa como uma das maneiras de resolução de conflitos em escolas, aliada a outras habilidades comunicativas como formulação de perguntas, reestruturação, construção de relacionamento (rapport), uso eficaz da linguagem, redução de emoções negativas e comunicação não verbal.

Há uma onda de indivíduos e organizações utilizando técnicas de escuta ativa para ajudar a solucionar conflitos e superar cisões. O Centro Internacional de Cooperação e Resolução de Conflitos Morton Deutsch, da Universidade Columbia, lista dezenas de organizações, grupos e pessoas que trabalham para superar cisões políticas, econômicas e sociais onde elas existem, tendo como ponto principal o desenvolvimento de conhecimento para lidar com diferentes conflitos. O centro oferece um workshop, “Como superar a polarização tóxica”, a fim de incentivar as pessoas a buscar, de modo independente, diminuir suas tendências polarizadoras. O curso é centrado em uma série de exercícios que visam superar hábitos sociais discordantes, estabelecer integridade e tolerância e diminuir tensões.

Outras organizações também surgiram nos Estados Unidos. A One Small Step, por exemplo, reúne pessoas de crenças políticas distintas para diálogos de 50 minutos. A ideia segue a teoria do contato, segundo a qual a interação entre dois grupos pode reduzir o preconceito e o conflito. Por meio do diálogo, os participantes podem fugir dos estereótipos e descobrir as humanidades comuns existentes entre si. Do mesmo modo, a Braver Angels e a Unify America reúnem pessoas com perspectivas políticas diferentes para que descubram pontos em comum.

Estudos para lidar com a hesitação em relação à vacinação entre auxiliares de enfermagem em casas de repouso durante a pandemia da covid-19 revelaram que escutar ativamente e reconhecer a legitimidade de suas preocupações era fundamental. Os pesquisadores sugeriram conversas individuais com auxiliares de enfermagem e “a construção de uma relação de confiança baseada na escuta de seus receios”.

A necessidade de ser ouvido, em vez de criticado, também vem favorecendo a participação civil e a democracia direta nas tomadas de decisões. Cidadãos comuns, incluindo os mais afetados por problemas, cada vez mais exigem oportunidades de se expressar. Em 2013, a convenção constitucional da Irlanda promoveu discussões sobre um referendo no país a respeito da questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A convenção contou com 66 membros da sociedade que trabalharam ao lado dos congressistas e que, em 2015, obteve uma vitória histórica a favor da igualdade matrimonial. Entre as formas de comunicação utilizadas para avaliar a opinião pública e provocar respostas estava a hashtag #HomeToVote, que fez milhares de expatriados irlandeses voltarem para votar. Os esforços liderados pela união dos cidadãos refletiram a mudança da opinião pública, que estava politicamente dividida, algo que foi possível graças às conversas com movimentos de base, da esfera mais baixa à mais alta, em vez da adoção da polarização imposta.

 

Deixe o celular de lado

 

Sabemos que todas as sociedades sofrem, em graus variados, com a divisão política. No entanto, pesquisas mostram que, muitas vezes, nossa convicção sobre o “outro” é imprecisa, como também é o que pensamos que as pessoas do lado de lá acham de nós. Se deixarmos de lado o celular e nos afastarmos da tela do computador para conversarmos diretamente, descobriremos que temos muito mais em comum do que supúnhamos.

Fomentar diálogos mais amplos, contudo, não é suficiente para garantir harmonia, e é aí que a comunicação de interesse público pode ajudar. Não é uma panaceia, pois são muitos os fatores que contribuem para nossa cisão; mas, se adotarmos as bases da comunicação de interesse público – pensar de maneira não binária, encontrar valores comuns e escutar ativamente o ponto de vista dos demais, em especial aqueles que não fazem parte do nosso grupo –, podemos começar a despolarizar os cismas políticos e a construir pontes sociais.

 

AS AUTORAS

Angela Bradbery é professora de comunicação de interesse público na Faculdade de Jornalismo e Comunicações da Universidade da Flórida.

Jane Johnston é professora de comunicação estratégica na Universidade de Queensland, tendo escrito extensivamente sobre comunicação de interesse público. Ela é coautora da Public Interest Communications, publicação de acesso livre.



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