Como alcançar uma democracia multirracial?
Os Estados Unidos precisam de uma nova história – uma história que seja honesta e inspiradora e não se intimide por seu histórico racial – para levar à realização de uma democracia multirracial vibrante.
Por Angela Glover Blackwell
Na condição de garota negra crescendo numa St. Louis segregada, no estado do Missouri, nos anos 1950 e início de 1960, absorvi a história corrente sobre os Estados Unidos. Ninguém jamais me disse “sente aqui que eu vou lhe explicar”. Não, eu aprendi pela escola, pela televisão e por filmes. Estava no ar. Nem a minha família, nem meus professores ou amigos a refutavam. Era o conto de uma nação talhada por resistência, exploração e aspiração. Uma nação plena de um potencial que poderia ser explorado por meio de determinação individual e esforços corajosos impulsionando a sociedade rumo à igualdade e à justiça.
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Há séculos que essa narrativa alimenta aspirações a um futuro melhor, catalisando a imaginação de americanos que travaram batalhas políticas épicas, da abolição da escravatura ao sufrágio feminino, aos direitos civis, direitos dos deficientes e direitos dos LGBTQ. Mas à época em que me formei na Howard University e me tornei ativa no movimento Black Power, no fim dos anos 1960, reconheci que a história dos Estados Unidos era em grande parte um mito – um mito que dependia de enterrar o genocídio dos nativos americanos e a terra roubada dos povos indígenas, a brutalidade da escravidão, a violência racial e a discriminação de pessoas de cor.
Nos últimos tempos, o mito se estilhaçou sob o peso da disparada da desigualdade, da estagnação da mobilidade econômica, da disfunção institucional e da maior conscientização pública da tensa história racial e do racismo sistemático do país. A promessa e premissa central da narrativa – oportunidades para todos – não apenas se mantém não cumprida para as pessoas não brancas, como também se torna amargamente inatingível para uma grande camada da população branca. Muitas pessoas brancas, além disso, não acreditam que a nação possa proporcionar bons empregos, educação de alta qualidade e segurança econômica para todos sem subtrair as vantagens que veem como seu direito inato. E muitas pessoas não brancas questionam se os Estados Unidos alguma vez vão permitir que todos participem da sociedade de maneira integral e próspera e nela alcancem seu pleno potencial.
É de certa forma animador que esse conto pintado de branco já não seja mais aceito como verdade. Apesar da mudança radical, uma considerável minoria de americanos tem defendido o mito, levando adiante uma história de mágoa e nostalgia branca numa tentativa de recuperar o passado – para, como dizem alguns, “Fazer a América Grande Novamente”. Essas pessoas estão dispostas a sacrificar a democracia no altar da superioridade racial, como ficou dramaticamente evidenciado pela violenta insurreição do Capitólio, com o intuito de revogar a eleição presidencial de 2020. Vemos esse esforço também em leis e políticas que têm por objetivo evitar que pessoas negras, indígenas e racialmente marginalizadas votem e que desafiam a legitimidade de seus votos. E nós o vemos na bem orquestrada campanha para proibir que se ensine a crianças qualquer coisa sobre a história racial da nação – afinal, o que pode ser mais ameaçador para líderes autoritários do que um cidadão instruído e informado?
São ataques não apenas à democracia americana, e sim mais diretamente ao movimento de construção de uma pujante democracia multirracial. O timing dessa reação não é coincidência. Pessoas não brancas serão a maior parte da nação em 2045, e, de acordo com um levantamento de 2019 do Pew Research Center, a maioria dos americanos negros, hispânicos e brancos concorda que a diversidade racial e étnica é “muito boa” para os Estados Unidos. Pessoas de todas as raças, idades e formações inundaram as ruas para pedir justiça racial após o assassinato de George Floyd, em maio de 2020. Isso ajudou a garantir compromissos pioneiros da Casa Branca e de corporações no sentido de fazer avançar a igualdade racial. Em 2020 e 2022, eleitores foram às urnas em números históricos para derrotar candidatos antidemocráticos. Incontáveis ativistas, líderes populares e funcionários públicos redobraram seus esforços para proteger direitos civis, fortalecer comunidades e revitalizar os sistemas e instituições que lesaram e deixaram de atender uma infinidade de pessoas. Coletivamente, esses empenhos refletem um movimento mais amplo, que está em luta contra a retórica racista e as políticas que atropelam direitos civis.
Para chegar a esse ponto de inflexão, os Estados Unidos precisam de uma nova história que energize o movimento, a fim de construir uma democracia sustentável, vibrante e multirracial. A seguir, passarei a descrever os elementos essenciais dessa história, e entre eles o mais crucial está em estabelecer o arcabouço em torno de raça e racismo, sem o qual não podemos nem decifrar as causas profundas dos duradouros e sistemáticos desafios nem desenvolver soluções eficazes e equitativas. Políticos e a mídia de direita têm exaustivamente demonizado discussões sobre raça para evitar um trabalho de reparação e mudanças sociais. E muitos “aliados” brancos se preocupam com que o enfoque em questões étnico-raciais venha a ameaçar sua estratégia de conciliação. No entanto, essa tática silenciadora já não pode ocultar o fato de que sistemas e instituições destinadas a oprimir pessoas negras – economia mal distribuída, grave desinvestimento em escolas públicas, serviços de saúde inadequados e serviços de apoio esvaziados – estão lesando todos os americanos, à exceção dos mais abastados.
Essa nova história deve também dissipar a falácia de que a equidade é um jogo de soma zero e, acima de tudo, deve proporcionar modelos de ação democrática multirracial. Ativistas, organizadores, líderes e diversas coalizões e movimentos estão evidenciando o poder da solidariedade e expondo a mentira de que falar honestamente sobre raça seja algo que divida o país. Falar sobre raça é, na verdade, o único meio de a democracia ser bem-sucedida numa sociedade multirracial. E se ativistas e organizações tiverem sucesso, construir e sustentar uma vibrante democracia multirracial serão a próxima grande inovação dos Estados Unidos.
O Paradigma Branco-Negro
A abordagem para compreender a história racial dos Estados Unidos é o que eu chamo de paradigma branco-negro: o composto de estruturas econômicas, jurídicas, institucionais, sociais e psicológicas forjadas desde a escravidão que sistematizaram e codificaram a opressão nos Estados Unidos. Como uma lente pela qual se enxerga a história do país, esse paradigma não ignora nem minimiza o sofrimento e a exclusão das demais pessoas. Em vez disso, ilumina a interdependência de todos os povos que vivenciaram violência racial, intolerância e oportunidades limitadas e expõe os vieses e crenças que estão na raiz da opressão. Nos Estados Unidos, os mecanismos que deram forma e perpetuaram o racismo antinegro permearam as opressões de todos os grupos marginalizados.
O paradigma branco-negro se baseia na compreensão de que a história é viva, funcional e está presente em cada aspecto de nossa vida. A história “não se refere meramente, ou mesmo principalmente, ao passado”, observou James Baldwin. “Ao contrário, a grande força da história provém do fato de que a carregamos conosco, de que de muitas maneiras somos inconscientemente controlados por ela e de que ela está literalmente presente em tudo o que fazemos.”
Nos Estados Unidos, a história que carregamos se inicia com o genocídio de povos indígenas – o roubo de terras, remoções forçadas e um contínuo apagamento cultural. Essas ações criaram os contornos de violência racial e roubo – de terra, de trabalho, de vínculos familiares, de tradições sagradas, de arbítrio, de autodeterminação e de liberdade. O tratamento pernicioso de povos indígenas foi a primeira expressão da crença não escrita da nação – e essa crença, não obstante, é predominantemente fundacional –, de que as pessoas não brancas têm menos valor e podem ser mortas, agrilhoadas, exploradas e/ou descartadas para enriquecer aqueles tidos por mais importantes. A violência anti-indígena foi central à criação das estruturas de supremacia branca e o racismo antinegro criou os protocolos de opressão hoje usados para explorar e desumanizar todas as pessoas.
A crença numa hierarquia de valor humano que posicionou no topo as pessoas brancas – especificamente homens brancos e ricos – foi a justificativa para dois séculos e meio de escravidão. Por esse motivo, uma história esmiuçada dos Estados Unidos tem de incluir a inimaginável brutalidade de tal sistema, as contribuições econômicas dos cerca de dez milhões de africanos e afro-americanos mantidos em servidão e as histórias de sua indomável resiliência e contundente inovação. Também tem de incluir a breve promessa de Reconstrução dos Estados Unidos, período que se iniciou após o fim da Guerra de Secessão, em 1865, no qual, pela primeira vez, foram aprovadas políticas com vistas a uma democracia multirracial. E ainda incluir o Compromisso de 1877, acordo que resolveu uma disputada eleição presidencial em parte por dar um fim à Reconstrução, o que abriu as portas à segregação racial de Jim Crow, ao sistema de arrendamento de terras, aos trabalhos forçados e ao terrorismo racial branco.
As consequências desse acordo empurraram as pessoas negras de volta para a servidão e conduziram o êxodo negro do sul rural para o norte urbano. Valendo-se do paradigma branco-negro como forma de abordagem, nossa nova história tem de levar em conta a negligência, o desinvestimento e a espoliação de riquezas de pessoas e comunidades negras por meio de políticas como o redlining – prática discriminatória que vetava empréstimos financiados pelo governo a pessoas negras, o que as impedia de adquirir casas próprias – e programas de renovação urbana que destruíam bairros urbanos negros, deslocando e empobrecendo residentes e estabelecimentos. Políticas como essas consolidaram amplas disparidades raciais de receitas e riquezas. Políticas de bem-estar, educação e saúde, incluídas a “guerra às drogas” do presidente Richard Nixon e a Lei contra o Crime Violento do presidente Bill Clinton em 1994, que intensificaram o corredor escola-prisão para a juventude negra e parda, levaram à destruição de famílias e comunidades não brancas. Todas essas políticas estiveram fundamentadas em falsas imagens e estereótipos e reforçaram a marginalização das comunidades negras. Com o passar do tempo, essas ações definiram os termos do controle econômico, da exploração, da desigualdade de base geográfica e de políticas sociais ineficazes que impuseram coletivamente os protocolos de opressão.
Esses protocolos reverberam para muito além da comunidade negra. Por exemplo, se os Estados Unidos tivessem enfrentado a devastação das comunidades negras por crack/cocaína nos anos 1990 como um problema de saúde coletiva e investido em apoio social – em detrimento da criminalização da adição, da construção de mais penitenciárias e do encarceramento em massa de pessoas negras –, o país teria se preparado melhor para responder à crise dos opioides que assolou muitas comunidades de baixa renda, além de comunidades brancas. Da mesma forma, se os amplos investimentos de outrora em escolas públicas urbanas não tivessem evaporado em meio ao aumento no número de matrículas de estudantes negros, os sistemas de educação pública não seriam tão ruins como são hoje.
Os protocolos de opressão aos negros produziram a racialização de imigrantes e estabeleceram os contornos de xenofobia que deram forma ao sistema de imigração nos Estados Unidos. Fizeram-se presentes na exclusão legalizada e na subordinação de trabalhadores migrantes da Ásia e da América Latina, ocorridas nos séculos 19 e 20. Hoje eles se materializam nos atuais terrorismo, separação e expulsão de trabalhadores e famílias latinas, que, embora contribuam para a economia e paguem impostos, continuam sem documentos e têm negado um caminho para a cidadania. Tais protocolos também aparecem nas recentes violência e humilhação de famílias latino-americanas que tentam entrar no país pela fronteira sul.
Além disso, os protocolos de opressão atuam na criminalização e no uso de pseudociência direcionada a pessoas transgênero, não binárias e não conformes de gênero; no ódio e na discriminação dirigidos a muçulmanos; e na violência e culpabilização de americanos asiáticos durante a pandemia de Covid-19. Na verdade, se os Estados Unidos não tivessem sistematicamente ignorado a saúde de americanos negros durante séculos, a Covid-19 não teria sido tão devastadora quanto foi. Essa negligência se traduziu na desarticulação dos sistemas públicos de saúde, tornando-os incapazes de proporcionar os serviços de que o público necessitava e deixando as comunidades negra, latina e nativa americanas mais vulneráveis a índices maiores de adoecimento e morte. Por fim, os referidos protocolos são acionados também quando pessoas marginalizadas se alinham com estruturas opressivas, e as endossam, para ter acesso a poder e a privilégios. Esse impulso para se acomodar ao poder e se manter próximo a ele é hoje evidente – tome-se, por exemplo, o caso do policial negro que imobilizou George Floyd e do policial asiático-americano que impediu espectadores de intervir enquanto um policial branco mantinha o joelho sobre o pescoço de Floyd por mais de nove minutos.
O racismo sistêmico também se revelou nos extraordinários investimentos em comunidades brancas por políticas e programas de governo de larga escala. Em 1956, um ato federal concedeu a subúrbios emergentes, predominantemente brancos, acesso fácil a empregos e comodidades nas grandes cidades, aumentando os atrativos e o valor financeiro de casas e comunidades de subúrbios, enquanto desmontava e deslocava bairros não brancos pela construção de autoestradas. Muitas pessoas brancas se recordam da prosperidade e oportunidade de meados do século 20 sem reconhecer o papel enorme e discriminatório desempenhado pelo governo.
Essa amnésia histórica serve aos interesses das pessoas mais empenhadas em se agarrar ao poder e às estruturas construídas sobre a supremacia branca. Não surpreende que tenham preparado um ataque ao ensino de história às crianças. Suprimir a história racial permite a políticos de direita e a seus simpatizantes insistir na tese de que as persistentes desigualdades são o resultado dos fracassos de pessoas negras, indígenas e racialmente marginalizadas – e não a consequência de discriminação racial passada e presente e da seletiva generosidade de investimentos do governo, que por gerações a fio serviram como alicerce às pessoas brancas. Essa amnésia ofusca o papel essencial de maciços investimentos do governo na criação de oportunidades em larga escala, que hoje se fazem necessárias para a maioria emergente.
Ocultar a história racial também apaga a luta dos negros e o papel que americanos negros desempenharam como defensores da democracia. Obscurece os meios pelos quais as pessoas se uniram em torno de raça, etnicidade, classe e ação coletiva e realizaram mudanças até então impensáveis que tornaram o país mais justo e inclusivo – do sufrágio universal ao fim da segregação legal. O movimento rumo a a uma democracia multirracial sempre incluiu milhões de americanos brancos, que se aliavam a comunidades não brancas e pressionavam por equidade e inclusão. De novo, não é de admirar que movimentos antidemocráticos queiram que os americanos esqueçam, ou que jamais aprendam, que a solidariedade inter-racial tem sido parte essencial do avanço democrático e fonte de poder para grupos marginalizados.
As pessoas não brancas têm as mesmas demandas e desejos que as ondas de imigrantes da Europa ao longo dos séculos e que a classe operária branca de hoje: bairros seguros, salários que sustentem uma família, educação de alta qualidade e moradia decente e acessível. Somente mediante o aprendizado e a aceitação da complexidade da história racial dos Estados Unidos podemos criar uma sociedade que sirva às necessidades de todos.
Equidade para Todos
Existe uma arraigada suspeita na sociedade de que apoiar um grupo prejudica outro. Enraizada em falsas ideias de escassez, essa lógica de soma zero está incorporada a nosso sistema econômico, mas, além disso, tem sido socialmente condicionada dentro de nós. Na verdade, quando a nação mira o apoio onde ele mais se faz necessário – quando nossas políticas e investimentos criam as circunstâncias que possibilitam que as pessoas deixadas para trás participem e contribuam plenamente –, toda a sociedade se beneficia.
Escrevi a esse respeito pela primeira vez em “The Curb-Cut Effect” (“O efeito guia rebaixada”, em tradução livre), que mostrou de que modo leis e programas destinados a beneficiar grupos vulneráveis – como guias rebaixadas para ajudar cadeirantes – frequentemente beneficiam a todos. O exemplo deixa claro os amplos benefícios sociais que afluem quando políticas e investimentos se expandem para além da lógica de soma zero e usam a equidade para direcionar esforços de mudança social e política.
A equidade tem sido adotada por instituições públicas, privadas, cívicas, sociais e empresariais. Ao reconhecer sua importância fundamental para o futuro da nação, a primeira ordem executiva de Joe Biden como presidente fez da equidade racial uma responsabilidade do governo federal como um todo.
O setor privado também tem mostrado um empenho redobrado visando à equidade. Embora as Empresas B continuem a ser uma parcela pequena desse setor, elas trazem novos modelos para estruturas econômicas empresariais que servem a interesses de acionistas para além dos estreitos fins lucrativos. Por exemplo, a fabricante de comida congelada Rhino Foods desenvolveu um programa de renda antecipada com empréstimos de emergência para o mesmo dia que se transformam em contas de poupança para funcionários. A fabricante de telhas Fireclay Tile criou um modelo de participação dos trabalhadores a fim de democratizar a propriedade e distribuir a riqueza de forma mais equitativa dentro da empresa.
Também empresas globais estão ficando em dia com a equidade – não apenas com afirmações sociais performativas ou com esforços filantrópicos, mas com investimentos necessários em seu futuro financeiro. Grandes bancos têm uma longa história de exclusão e exploração racial, desde o uso de mapas que, exercendo o redlining, eram elaborados pelo governo federal nos anos 1930, às recentes acusações de que a Wells Fargo usava algoritmos racistas oriundos de práticas de empréstimo do passado, com isso rejeitando mais da metade dos pedidos de refinanciamento de hipoteca submetidos por mutuários negros em 2020. Contudo, alguns grandes bancos começaram a compreender como deslocamentos demográficos poderão impactar seu futuro econômico.
Afinal de contas, são as pessoas não brancas que vão fomentar o impulso para comprar casas, abrir empresas e mandar os filhos para a universidade. Por exemplo, para ajudar a promover o crescimento econômico, o J.P. Morgan Chase se comprometeu a investir US$ 30 bilhões em comunidades negras e latinas até o fim de 2025, e o Bank of America, US$ 1,25 bilhão. O Citibank não apenas se comprometeu com US$ 1 bilhão, como também foi o primeiro banco de Wall Street a aceitar uma auditoria racial de suas práticas de investimento. Gradativamente as grandes corporações estão percebendo que não terão futuro financeiro se não começarem a proporcionar oportunidades financeiras equitativas para aqueles que já foram por elas sistematicamente discriminados.
A equidade conduz políticas e intervenções de volta para o que realmente importa – as pessoas. O refrão demasiado comum que identifica os governos como sendo o problema ignora a frequência com que grandes ações governamentais são a solução para desafios sociais de grande porte. Quando a pandemia forçou milhões de americanos a parar de trabalhar e ameaçou a economia, o governo federal acertou o passo e, pela primeira vez em gerações, fez elevados investimentos e agiu tendo como alvo as pessoas que mais estavam sofrendo: os 140 milhões de americanos pobres ou de baixa renda, que incluem mais da metade de todos os jovens com menos de 18 anos, 42% dos idosos, 59% de nativos, 60% de negros, 64% de latinos e um terço de todas as pessoas brancas.
Os seis projetos de lei relacionados à Covid-19 aprovados em 2020 e 2021 proporcionaram um valor estimado em US$ 5,1 trilhões em financiamentos de assistência, que ajudaram a reforçar a demanda do consumidor e reduziram a taxa de desemprego em quase 12 pontos percentuais a contar de seu pico de 14,8% em 2020, garantindo que a recessão relacionada à pandemia fosse a mais breve já registrada. A expansão do crédito tributário para dependentes menores de idade, que foi parte do Plano de Resgate Americano, de 2021, preencheu uma lacuna que impedia que uma maioria de crianças negras e latinas se beneficiasse do crédito fiscal e reduziu a pobreza infantil em 30% nos seis primeiros meses de sua implementação. Segundo projeção do Center on Poverty and Social Policy (Centro para Pobreza e Política Social) da Columbia University, se o pacote de expansões tivesse sido mantido durante todo o ano de 2021, a pobreza infantil teria sido cortada mais da metade, reduzindo as taxas de pobreza em 55% para as crianças negras e em 53% para as latinas.
Décadas de pesquisa demonstram que pessoas, famílias e comunidades se fortalecem quando dispõem de segurança econômica básica. Estudos recentes revelaram que quando programas põem dinheiro diretamente nas mãos de pessoas que vivem na pobreza, elas o gastam de forma a estimular a economia. O estudo do Center for Guaranteed Income Research (Centro de Pesquisa de Renda Garantida) sobre o programa de renda garantida do Stockton Economic Empowerment Demonstration (Demonstrativo de Capacitação Econômica Stockton – SEED, na sigla em inglês) verificou que a maior parte das compras dos participantes se destinou a satisfazer necessidades básicas. As três principais categorias de gastos foram alimentação (37%), artigos para o lar (23%) e serviços (11%). Os pesquisadores constataram que o auxílio mensal ajudava a contribuir com o emprego em período integral e que os beneficiários do SEED apresentaram melhoria em seu bem-estar, menores níveis de ansiedade e depressão.
Em que pese a incorporação da equidade, estamos vivendo uma das eras mais desiguais da economia americana. A desigualdade em nossas estruturas econômicas criou intensa concentração de riqueza privada, o que ameaça a segurança econômica de longo prazo da nação. Uma história nova deve deixar claro que uma democracia multirracial não pode florescer sem uma economia justa. À medida que as pessoas não brancas conquistam mais influência política e econômica, podemos esperar mais movimentos públicos e privados em direção à equidade econômica. Também isso se provará benéfico para a sociedade como um todo.
Uma União Mais Perfeita
Em última instância, a força galvanizadora de uma nova história nacional residirá em sua visão do futuro. É a parte mais fácil da história a contar, já que basta uma passada de olhos pelos movimentos dinâmicos que conduzem à equidade e pelos seus líderes para vislumbrar uma verdadeira democracia racial. Eles reconhecem que nossas liberdades fundamentais se tornam mais fortes quando nossas instituições são responsáveis por todos – que quando todas as pessoas são servidas por nossas instituições democráticas, todas participam do ato de protegê-las. Coletivamente, esses movimentos têm o potencial de mostrar que um governo do povo, pelo povo e para o povo pode produzir resultados extraordinários, equitativos, mas somente se todas as pessoas realmente tiverem voz. Coalizões multirraciais estão trabalhando para remover barreiras que bloqueiam a oportunidade e a participação de milhões de pessoas. Elas praticam a solidariedade transformadora – abraçando problemas e campanhas umas das outras como algo essencial para a realização de uma sociedade justa. Líderes que tenham foco na equidade são os herdeiros do que há de melhor nos ideais dos Estados Unidos. Eles têm a fantasia radical de conceber uma nação unida não por raça, religião, etnia ou pátria ancestral, mas por ideais compartilhados de liberdade, igualdade e pela busca de felicidade para todos.
Esses defensores de um futuro justo e equitativo estão traduzindo as possibilidades e os perigos monumentais deste momento em poder político, inovação política, transformação econômica e mudança cultural. Eles sabem que os fundadores da democracia americana jamais pretenderam incluir pessoas como eles na governança representativa. Não obstante, tais fundadores articularam as grandes ideias de nossa democracia, que, se aplicadas de maneira fidedigna a todas as pessoas, criam a possibilidade de incríveis mudanças. Desse modo, os fundadores foram além de suas próprias expectativas. Hoje, líderes racialmente diversos trazem um alento de vida e justiça a princípios que até então eram palavras ocas. A generosidade de sua visão está impelindo a nação a concretizar os ideais que, tendo sido consagrados em seus documentos fundacionais básicos, ainda estão por ser realizados.
A liderança de hoje carrega consigo o legado de gerações anteriores que lutaram para fazer o país chegar mais perto de realizar seus ideais. O movimento pelos direitos civis demonstrou o poder catalisador e moral dos protestos de massa. Criou um modelo para organizações e alianças multirraciais e multirreligiosas. Líderes de direitos civis como Fannie Lou Hamer e Bayard Rustin destacaram a necessidade de fazer um uso pleno das forças de todos. Pessoas brancas comprometidas com justiça racial juntaram-se ao movimento, por vezes sacrificando a própria vida. Algo de importância crucial, o movimento pelos direitos civis ressaltou o papel central das lideranças negras numa luta, autêntica e de base ampla, por justiça, inclusão, liberdade e autodeterminação. Segundo observou Danielle Allen, teórica política de Harvard, existe uma vertente profunda de pensamento na tradição afro-americana e na filosofia política sobre o sentido e o valor da liberdade. Os que foram privados de liberdade compreendem sua essência e significado com clareza cristalina.
Embora as lideranças pelos direitos civis corajosamente tenham exigido que a nação de maioria branca deixasse os negros entrarem em seus sistemas e instituições, hoje em dia os líderes com foco na equidade proclamam a nação e seu futuro como se fossem os seus próprios. Em vez de se concentrar exclusivamente em mais direitos e proteções legais – que muitas vezes não alteram de maneira substancial as estruturas de poder existentes – e em vez de buscar inclusão e um tratamento mais justo por instituições que foram construídas com base na opressão racial, os líderes atuais reivindicam a propriedade sobre a construção da próxima renovação da nação. Muitos deles têm feito mais do que apenas protestar – por mais importante que seja –, a fim de conseguir poder e exercer a propriedade sobre todos os domínios da vida pública. Estão traduzindo a energia dos movimentos em organizações capazes de representar a longevidade e o poder do trabalho, bem como de sustentar ações de longo prazo com vistas a construir uma democracia multirracial robusta.
Um exemplo claro está na extraordinária ação coletiva e engajamento político da geração Z. Após o massacre na Parkland High School, jovens ativistas criaram a March for Our Lives (Marcha por Nossas Vidas), que luta pela legislação de armas. Seu diretor organizacional, Maxwell Frost, acaba de se tornar o primeiro membro dessa geração a ser eleito para o Congresso. Dela saiu também o Sunrise Movement (Movimento Nascer do Sol), uma organização de ação política nacional diretamente engajada na defesa de políticas para justiça climática. Ao reconhecer o grande número de organizações que disseminam desinformações perigosas aos jovens, o imigrante mexicano Santiago Mayer, um imigrante mexicano, criou a organização pró-democracia Voters for Tomorrow (Eleitores do Amanhã), que auxilia jovens a se tornar civicamente engajados. Allie Young, da geração Z e da nação Diné, fundou a Protect the Sacred (Proteja o Sagrado), associação que reúne e organiza a próxima geração de líderes indígenas e que ajudou o presidente Biden a garantir a vitória de 2020 no Arizona, onde o aumento na participação de nativos americanos foi maior que a diferença de votos que Biden teve no estado.
Outro exemplo vem do trabalho de movimentos que visam aumentar o engajamento político e a participação de eleitores entre comunidades negras e outras comunidades historicamente marginalizadas do sul do país. Por exemplo, o New Georgia Project e sua ex-diretora executiva, Nsé Ufot, sabem que nunca foi tão necessário engajar eleitores com uma visão positiva de um futuro multirracial e convencer eleitores não brancos, em especial negros, de que seu voto faz a diferença. Desse modo, o grupo está organizando as crescentes comunidades não brancas da Geórgia com a meta de construir uma nova maioria eleitoral no estado, que atenda a todos os seus residentes. Numa região em que tem sido excepcionalmente difícil votar, Ufot e seus colegas têm se utilizado de tecnologia para superar entraves ao sufrágio, têm treinado organizadores locais que vêm registrando centenas de milhares de eleitores e construído uma coalização multirracial que obteve históricos e decisivos comparecimentos às urnas em 2020, 2021 e 2022.
Uma democracia multirracial vibrante depende de uma economia equitativa. Grupos diversos estão organizando trabalhadores, mobilizando eleitores e demandando mudanças políticas para melhorar as condições de emprego e a segurança econômica de milhões de prestadores de serviço e profissionais da saúde que recebem baixos salários. O grupo Fight for $15, por exemplo, deliberadamente montou um movimento interracial e conquistou aumentos de salário mínimo para mais de 26 milhões de pessoas, lutando para reverter a tendência de quase cinco décadas de salários estagnados para os trabalhadores menos bem pagos, independentemente de raça.
O trabalho com vistas a uma economia equitativa por parte das organizações de movimentos sociais é reforçado por intensa pesquisa e apoio acadêmico. Felicia Wong, CEO do Roosevelt Institute, analisou os fracassos do neoliberalismo, desafiando os progressistas do “livre mercado”. Ela apontou as contradições inerentes à ideologia que professa a valorização da justiça, da inclusão e do bem comum e ao mesmo tempo santifica o capitalismo desenfreado, que afunilou enorme riqueza no topo, enquanto esvazia a classe média e destina um terço da população dos Estados Unidos a viver na pobreza. O trabalho de Wong faz uma importante crítica intelectual às políticas neoliberais contemporâneas e lança ideias fundamentais para a construção de uma economia a serviço de todos.
Darrick Hamilton, professor de economia e políticas urbanas e diretor fundador do New School’s Institute on Race, Power and Political Economy, realiza uma extraordinária pesquisa em apoio à implementação dos Baby Bonds (“títulos para bebês”), uma ferramenta política inovadora que cria contas de investimento de financiamento público para crianças. Também está empenhado em reestruturar a política industrial, geralmente voltada aos interesses das empresas, para que volte o foco nos trabalhadores – reconhecendo que, quando todos compartilham da prosperidade econômica, a economia como um todo se torna mais forte e mais estável.
Esses líderes, entre um sem-número de outros, estão criando modelos de ação coletiva. Nick Tilsen, presidente da NDN Collective e CEO e cidadão da nação indígena Oglala Lakota, mostra como construir poder coletivo e soluções locais de grande escala que promovam a resiliência climática e a moradia sustentável – problemas que atormentam comunidades de baixa renda, indígenas e tribais – em todo o país.
Monica Simpson e o SisterSong Women of Color Reproductive Justice Collective (Coletivo de Justiça Reprodutiva de Mulheres Não Brancas SisterSong) foram pioneiros no movimento de justiça reprodutiva, ao expandir os direitos de reprodução para além do aborto, a fim de abarcar as condições sociais e econômicas que afetam o acesso aos serviços de saúde reprodutiva das pessoas e as opções de escolhas com relação a esses serviços, incluída a capacidade de educar os filhos em ambientes seguros e estáveis.
A diretora-executiva da For Freedoms, Claudia Peña, nos mostra que os artistas desempenham papel crucial em garantir nosso futuro democrático na condição dos que dizem a verdade, dos que curam e atuam como forças criativas a abrir corações e imaginários para o que é possível.
A reverenda doutora Liz Theoharis, que trabalha com o reverendo doutor William J. Barber II na condição de copresidente da Poor People’s Campaign (Campanha das Pessoas Pobres), mostra como deve ser a cara da solidariedade e lembra à nação que a luta para se criar uma democracia multirracial pujante não é a luta desse ou daquele grupo ou de um partido político. É uma luta sobre o certo e o errado.
Por fim, líderes com foco na equidade estão pressionando o governo para que ele se valha dos ideais fundadores da nação, alinhando a máquina do governo aos objetivos de uma democracia multirracial com o intuito de garantir que os ganhos obtidos agora não tenham de ser conquistados novamente. Como afirmou o presidente e CEO do PolicyLink, Michael McAfee, tornar o governo receptivo e responsável por tudo, particularmente por aqueles que têm sido oprimidos e marginalizados, exige mais do que financiamentos e reuniões sobre diversidade. Exige uma agenda de governo expressamente comprometida com a equidade racial, com objetivos claros, parâmetros mensuráveis e resultados transparentes. McAfee, em parceria com Glenn Harris, presidente da Race Forward, participou da criação do primeiro plano de equidade racial abrangente para órgãos federais do país, com recursos e instrumental que estão ajudando líderes de agências a implementar a ordem executiva do presidente Biden sobre equidade racial. McAfee tem atuado também com líderes empresariais no sentido de incorporar princípios de equidade em suas empresas, mediante mecanismos de responsabilização.
Esses líderes, entre muitos outros, estão reescrevendo a história americana.
Os Estados Unidos ainda haverão de testemunhar uma democracia robusta, justa, vibrante, que funcione de maneira equitativa em meio a profundas diferenças. Essa ânsia não é nada nova. Em 1869, Frederick Douglass resumiu sua visão para a nova democracia multirracial que parecia emergir após a Guerra Civil. “Nossa população multifacetada conspira para um grande fim”, disse ele, “e este fim é o de fazer de nós [os Estados Unidos da América] a mais perfeita ilustração nacional da dignidade da família humana que o mundo já viu.”
Mais uma vez, esta oportunidade está batendo à nossa porta.
A AUTORA
Angela Glover Blackwell é fundadora residente do instituto PolicyLink. É professora da Goldman School of Public Policy da University of California, em Berkeley, e apresenta o podcast Radical Imagination. Antes disso, foi vice-presidente sênior da Rockefeller Foundation e sócia do Public Advocates, escritório de advocacia de interesse público. É também coautora de Uncommon Common Ground: Race and America’s Future.