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Mobilização cívica em tempos de ameaças existenciais

A sociedade civil brasileira trabalhou em conjunto para assegurar renda básica para os pobres. Seu sucesso ilustra como organizações devem juntar forças para garantir direitos e exigir mudanças sociais.

Por Alessandra Orofino, Manoela Miklos e Miguel Lago

renda básica pandemia
Ilustração: Bela Jude

Em março de 2020, a pandemia da Covid-19 começou a se espalhar pelo Brasil. O vírus ameaçou causar rupturas sociais e econômicas que atingiriam com mais impacto comunidades vulneráveis. Já atormentado por racismo sistêmico, políticas autoritárias e mudanças climáticas, o Brasil entrava em um período que seria, sem dúvida, definido por uma desigualdade cada vez mais profunda.

A ameaça exigia uma atitude rápida. Organizações da sociedade civil começaram a sondar parlamentares sobre a implantação urgente de auxílios financeiros emergenciais. Contra todas as probabilidades, uma ampla frente progressista iniciou uma mobilização sem precedentes em questão de dias, o que forçou o governo brasileiro a destinar uma renda básica a seus cidadãos mais pobres.

O governo do presidente Jair Bolsonaro viu a ideia do auxílio emergencial como uma oportunidade política para agradar eleitores e apresentou uma proposta. Mas enfrentou obstáculos como a burocracia (e consequente lentidão) do programa, a insuficiência do valor proposto e o fato de os beneficiários serem apenas uma pequena parcela dos necessitados.

Atores da sociedade civil tinham ideias para melhorar a situação, mas faltava se unirem em uma contraproposta. Para isso, usaram uma abordagem inédita sob o governo de Bolsonaro: as mais de 200 organizações lançaram um debate público com espaço a vozes dissidentes para avançar em direção a um consenso. Depois de concordarem sobre o melhor programa, elas mobilizariam todos os eleitorados políticos e fariam pressão sobre os parlamentares de Brasília.

Em poucas semanas, essa coalizão poderosa liderou um esforço histórico de aliança para pressionar pela aprovação de um auxílio emergencial muito mais ambicioso que aquele inicialmente proposto pelo governo. A coalizão queria auxílio financeiro incondicional, maiores pagamentos mensais, um prazo estendido e informações mais claras sobre critérios de seleção que abarcassem um número significativamente maior de beneficiários. Com a ajuda de parceiros legislativos inteligentes e esforçados, esses pedidos levaram a um projeto de lei promulgado pelo Congresso Nacional em abril de 2020.

No final de junho, o governo federal começou a pagar parcelas mensais a mais de 80 milhões de brasileiros necessitados. Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, de início disseram que o programa duraria apenas três meses. Mas a mesma coalizão que assegurou a primeira vitória lançou uma nova campanha pedindo mais tempo e recursos. Em agosto, o programa foi estendido até dezembro — e o Congresso já introduziu cerca de 20 projetos de lei que criariam um esquema de renda básica permanente no país.

Essa incrível vitória contra um governo autoritário com uma política de austeridade fiscal estabelecida foi possibilitada por uma vibrante infraestrutura de mobilização civil, encabeçada por um pequeno grupo de atores que tiveram papéis distintos, mas complementares. Neste artigo, partimos da nossa experiência desenvolvendo diferentes peças de infraestrutura de mobilização civil no Brasil. Nosso objetivo é apresentar um referencial para analisar o setor de impacto social e formular caminhos para que se torne mais resiliente diante de crises.

Instalações, recursos, espaços

Sugerimos pensar sobre infraestrutura de mobilização civil do modo como urbanistas pensam sobre infraestrutura urbana e uso de terras: com o objetivo de construir instalações funcionais, recursos eficazes e abundantes e espaços inclusivos. Precisamos das mesmas coisas da nossa infraestrutura de mobilização civil.

Noções de uma sociedade civil próspera e organizações específicas fortes em geral são confundidas. Sem dúvida, organizações voltadas para problemas específicos têm um papel vital na produção de conhecimento, partilham de experiência e garantia de credibilidade em prol de esforços de mobilização e defesa. Mas elas são somente parte de uma infraestrutura civil funcional. Essas organizações são especificamente instalações civis — são construídas para usos específicos. Tendem a se basear em causas e a operar em nichos. Organizações internacionais como a Human Rights Watch e o World Resources Institute são bons exemplos.

Muitas organizações sediadas no Brasil e lideradas por brasileiros tiveram um desempenho notável como instalações civis durante o esforço de mobilização que forçou o governo a pagar uma renda básica aos cidadãos mais pobres. Entre elas, algumas mais antigas como o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), uma organização não governamental (ONG) apartidária que por quatro décadas ampliou o entendimento público sobre orçamentos governamentais e como eles afetam as vidas das pessoas, e o Instituto Ethos, outra ONG apartidária que desde 1998 promove responsabilidade social corporativa, inclusive defendendo direitos humanos e empoderando grupos discriminados por meio de mercados de trabalho mais inclusivos; bem como organizações mais recentes como a Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), lançada em 2019 para promover renda básica universal no Brasil.

Contudo, uma infraestrutura de mobilização civil funcional não se resume a instalações. A sociedade civil como um todo deve trabalhar em conjunto. Coalizões devem ser instituídas. Redes devem ser montadas. A criação de coalizões e redes de sucesso, por outro lado, requer diferentes tipos de organização para coordenar todas as partes. Esses grupos desempenham o papel de recursos civis.

Ao menos três aspectos distinguem recursos civis de instalações civis. Primeiro, recursos civis tendem a ser organizações multicausais. Eles costumam priorizar ideais transversais e são muito sintonizados com o ciclo de notícias, atraindo a atenção do público e conectando-a a questões estruturalmente importantes que fundamentam eventos específicos. Segundo, recursos civis tendem a mobilizar o apoio popular para causas, atribuindo a elas maior capital político, em geral com rapidez. Terceiro, esses grupos são quase sempre novos e liderados por jovens. Como resultado, são bem posicionados para desenvolver estratégias contemporâneas, combinando inerentemente táticas online e offline.

No começo de 2020, a coalizão que defendia renda básica emergencial para todos os brasileiros dependia dos recursos civis para atrair todos em torno de uma causa comum. Em particular, a NOSSAS e a Coalizão Negra por Direitos serviram como recursos civis que se ligaram às instalações civis anteriormente mencionadas, mantiveram a coalizão unida, lançaram sites e táticas de campanha, mobilizaram apoio popular e coordenaram conversas com líderes influentes.

Dois de nós, Alessandra Orofino e Miguel Lago, fundamos a NOSSAS em 2011 para mudar políticas públicas e criar soluções para problemas comuns engajando cidadãos comuns em causas e temas que tanto são relevantes para eles como se revelam pautados em garantir e promover direitos humanos e democracia no Brasil e na América Latina. A NOSSAS também visa atrair novos públicos (jovens, em particular) para essas causas, com o objetivo maior de estabelecer consenso na sociedade (e não só nas instituições) para apoiar uma abordagem baseada em direitos para a formulação de políticas e a defesa de valores democráticos mesmo quando governos mudam e a opinião pública oscila.

A Coalizão Negra por Direitos foi lançada em novembro de 2019 como a união de mais de 150 organizações do movimento negro brasileiro. Logo se tornou um ator central no avanço da igualdade de direitos, reunindo gerações diferentes do movimento negro, de pioneiros mais velhos a jovens ativistas negros digitais, para pressionar por mudanças.

O trabalho desses dois recursos civis, por outro lado, foi amplamente facilitado pelo fato de que muitas organizações que eram parte da coalizão pertenciam aos mesmos espaços civis e já tinham colaborado anteriormente. Organizações sociais civis precisam de espaços — lugares físicos ou espaços de encontro digital — para se conectar, debater e planejar ações. Em espaços civis, os membros se tornam parte de uma mesma comunidade: constroem confiança mútua e, a partir daí, podem otimizar tempo e recursos.

A sociedade civil brasileira foi bem-sucedida em garantir renda básica emergencial em parte porque muitos dos grupos envolvidos já se conheciam de espaços civis como o Pacto pela Democracia, de que a coautora deste artigo Manoela Miklos é membro-fundadora. Desde 2015, essa rede reúne organizações da sociedade civil brasileira para defender, celebrar e aprofundar a prática democrática no Brasil. O Pacto pela Democracia dedica recursos para criar um espaço igualitário em que as partes podem conectar-se e a democracia é fortalecida. Praticamente todas as organizações envolvidas na coalizão para a renda básica foram membros dessa rede.

Financiando infraestrutura cívica

Uma sociedade civil eficiente se pauta numa verdadeira divisão de trabalho entre organizações. Além disso, organizações que visam impacto social funcionam melhor quando focam uma das três funções e servem como instalações, recursos ou espaços.

Contudo, há fortes incentivos financeiros em campo que moldam a estratégia organizacional em direção à autossuficiência. Em vez de fazer parte de uma infraestrutura vibrante, organizações procuram tornar-se bunkers autossustentáveis. Doadores costumam investir em instalações civis e assumir que elas também vão funcionar como recursos e abrir caminho para acolher espaços civis. Essas estratégias de investimento tendem a criar distorções e ativar dinâmicas que geram competição em lugar de colaboração.

Recursos de financiamento clamam por métodos específicos, e espaços de financiamento clamam por intencionalidade. Uma infraestrutura funcional de mobilização civil não pode ser criada com base em uma organização e não acontece ao acaso. Requer uma gestão cuidadosa de diferentes tipos de organização que têm papéis específicos no ecossistema geral de uma sociedade civil vibrante.

Estamos entrando em uma era de ameaças existenciais. Conforme o planeta se aquece, a democracia é desafiada e os direitos são ameaçados, organizações da sociedade civil precisam focar seus esforços onde funcionam melhor — seja como instalações, recursos ou espaços — e devem colaborar estreitamente com outras. Com certeza, haverá uma necessidade maior de respostas rápidas e imediatas para desafios imprevistos. Doadores deveriam começar a usar essas lentes ao apoiar o espaço civil como um todo, engendrando métricas diferentes de sucesso para cada uma das três funções e criando os incentivos certos para moldar um cenário vibrante de infraestrutura de mobilização civil, pronto para ser posto em prática quando o próximo desastre ocorrer. Porque vai ocorrer, e logo.

 

OS AUTORES

Alessandra Orofino é cofundadora e diretora executiva da NOSSAS, uma organização sem fins lucrativos comprometida com o fortalecimento da democracia, da justiça social e da igualdade. Também é escritora, diretora e produtora de documentários, e dirige o programa de jornalismo satírico Greg News, na HBO.

Manoela Miklos é membro-fundadora do Pacto pela Democracia, um espaço civil que reúne centenas de organizações brasileiras da sociedade civil. Trabalhou no Programa Latino-americano da Open Society Foundations por cinco anos, ajudando a montar seu escritório regional no Brasil, e atualmente é parte da equipe executiva da NOSSAS.

Miguel Lago é cofundador da NOSSAS e diretor-executivo do Instituto de Estudos de Políticas em Saúde, organização sem fins lucrativos que tem como objetivo contribuir para o aprimoramento das políticas públicas para a saúde no Brasil. Também é professor na School of International and Public Affairs da Columbia University, onde ministra um curso sobre inovação social e tecnologia.



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