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Quem escolhe as causas?

Falta sustentação para a proposta de que a filantropia volte recursos para o empoderamento político, e é preciso encontrar um modelo que entenda o contexto de cada local; veja outras respostas neste debate aqui

Por Paula Fabiani

Mark Kramer e Steve Phillips trazem uma discussão corajosa e relevante para o setor filantrópico, que contribui para fazer avançar as práticas de investimento social. Apesar do aumento substancial das doações nos Estados Unidos nas últimas décadas, quase n‹o se percebem mudanças estruturais provocadas por esses recursos. Aqui no Brasil, temos a mesma discussão, em especial, em relação à educação, que concentra a maioria dos investimentos filantrópicos. 

Os autores questionam a crena segundo a qual os mais vulneráveis não são capazes de resolver seus próprios problemas e que os grandes doadores têm a sabedoria necessária para solucionar os desafios sociais. Esse viés tem relação com a discussão sobre a decolonização da filantropia, conceito debatido por Edgar Villanueva e outras lideranças, no Brasil e no mundo. 

Kramer e Phillips desmontam narrativas estereotipadas, como a ideia de que a pobreza é resultado de falhas individuais. Infelizmente, vemos no Brasil filantropos focados no conceito da meritocracia, sem levar em conta as barreiras que a estrutura socioeconômica impõe aos mais vulneráveis. Essa crítica é essencial para mudar a forma como a sociedade e os doadores percebem e abordam a filantropia. 

Existem hoje evidências para sustentar que a filantropia estratégica deve buscar escutar seu público-alvo e torná-lo protagonista, para um caminho mais efetivo de transformação positiva. Ela deve se voltar para as necessidades dos receptores do impacto e, portanto, sempre partir de um processo de escuta efetiva desse grupo para considerar suas vozes na tomada de decisão sobre soluções e caminhos. Atualmente a tecnologia é uma grande aliada nesse processo, apesar de seus limites em capturar subjetividades, que emergem plenamente apenas em interações humanas.

O conceito de “empoderamento para o progresso social” é bem colocado. Ao sugerir que a filantropia deve mirar a capacitação econômica e política dos indivíduos, para que estes possam tomar decisões por si mesmos, os autores apresentam um caminho que pode levar a mudanças mais duradouras e sustentáveis. O conceito de shift the power e o de filantropia comunitária são expressões desse empoderamento.

No Programa Transformando Territórios, coordenado pelo Idis, e na Aliança Territorial da Rede Comuá temos exemplos de diversas organizações que buscam o que os autores chamam de empoderamento para o progresso social. A Redes da Maré fornece, com seu fundo comunitário, um exemplo de organização que, além de incidir sobre o poder público, opera projetos para desenvolver a autonomia de seu público-alvo para resolver seus problemas. Vale também mencionar o Guia das Periferias da Iniciativa Pipa, que traz possíveis caminhos para os doadores que buscam ampliar a pluralidade em suas atuações.

Doadores dedicam recursos financeiros de forma voluntária e, portanto, têm a liberdade de escolher as suas causas. A filantropia corporativa em geral busca um alinhamento aos negócios, e os filantropos familiares têm desejos e anseios ligados à sua história e valores. A liberdade de escolha de causas é um princípio inerente à prática filantrópica.

No Brasil, temos organizações e projetos voltados para causas bem específicas, como saúde mental, caso do Instituto Cactus; fortalecimento do Sistema único de Saúde nas regiões Norte e Nordeste, promovido pelo Juntos pela Saúde, e o combate à fome, caso do Pacto contra a Fome. Entidades e projetos dedicados a combater as mudanças climáticas também são de extrema importância.

Encontramos igualmente, no país, iniciativas alinhadas à conscientização política e à autonomia econômica propostas por Kramer e Phillips. Há organizações que buscam capacitar líderes do poder público, como RenovaBr e Motriz, e o Projeto Pretas no Poder, do Instituto Odara, que busca um aumento do número de mulheres negras no Congresso. A Rede Mulher Empreendedora é também um exemplo relevante.

Todas essas iniciativas buscam seguir as orientações de uma filantropia estratégica, mas nem todas dentro dos temas defendidos pelos autores. Conceitualmente, essa abordagem apresenta caminhos para aumentar a efetividade das mudanças geradas, mas não define causas determinadas. Como o próprio Kramer e outros autores explicam no artigo “Strategic Philanthropy for a Complex World”, “a filantropia estratégica deve ter metas claras, estratégias baseadas em dados, prestar contas e conduzir avalições rigorosas”. 

A provocação de que a filantropia estratégica deveria centrar seus recursos no engajamento político e no empoderamento econômico a fim de construir uma democracia multirracial é muito relevante e contemporânea, mas os autores não apresentam uma análise da potencial aderência de doadores que garantisse a sustentabilidade financeira dessa abordagem a longo prazo. 

Questões como o perfil dos doadores, a quantidade de recursos necessários e as possíveis fontes de financiamento e estratégias para garantir o sucesso dessa abordagem mereceriam exploração mais profunda. Nos Estados Unidos, como aqui, elas podem configurar barreiras à proposta dos autores.

Além disso, vale mencionar que o giro que os autores propõem requer investimentos contínuos para gerar mudanças permanentes. Vemos com frequência fundações mudarem seus focos e estratégias ao longo do tempo. 

A dificuldade para medir o impacto dessa filantropia de empoderamento é outro fator que pode levar doadores a se afastarem desses investimentos. Muitos doadores condicionam seu apoio a resultados de curto prazo. Desenvolver e apresentar métricas específicas para avaliar essas iniciativas seria importante, a fim de convencer filantropos e stakeholders sobre a eficácia dessa abordagem. 

Outra saída seria trazer longevidade a organizações independentes e projetos que defendessem a bandeira de empoderamento, fortalecendo seus fundos patrimoniais (endowments). O Pacto pela Promoção da Equidade Racial é um exemplo de organização que necessitará de décadas de atuação para gerar as mudanças que busca. Com o estabelecimento de seu endowment, o Fundo Baobá dá mostras bem-sucedidas dessa estratégia.

Outra alternativa seria o aprofundamento da discussão a respeito de como a filantropia pode efetivamente influenciar políticas públicas. Financiar o levantamento de dados sobre o impacto positivo de iniciativas e apoiar o desenvolvimento de tecnologias e melhores práticas é um caminho. Entretanto, isso pode ser dificultado pelo fato de que, muitas vezes, o meio filantrópico prefere se distanciar do poder público. 

O artigo traz uma discussão muito enriquecedora, com exemplos e informações que reforçam que, como sociedade, devemos refletir se a filantropia, para ser estratégica, não deveria considerar determinadas causas como fundamentais. Cada país terá as suas, e conhece-las com profundidade é primordial. Por exemplo, apesar de os Estados Unidos e o Brasil compartilharem a presença do racismo estrutural, as raízes são distintas em cada caso, bem como as consequências. Daí a importância de conhecer referências, e não simplesmente importar (e impor) soluções. 

Por fim, não devemos nos esquecer de que a filantropia é uma escolha individual, que reflete os valores do indivíduo, família ou corporação. E esse direito de escolha também deve ser respeitado. 

A AUTORA

Paula Fabiani é CEO do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social.



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