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Onde a filantropia estratégica errou

Nos Estados Unidos, avanços na escala das doações e das causas não bastaram para melhorar as condições da população do país afora; um novo modelo, a filantropia de empoderamento, pode promover a autodeterminação política e econômica; veja respostas a este texto aqui

Por Mark Kramer e Steve Phillips

O modelo americano de filantropia ajudou a criar e a manter algumas das instituições acadêmicas, culturais e médicas mais renomadas do mundo. Já na hora de resolver os desafios mais críticos da sociedade, a filantropia estratégica – iniciativas filantrópicas destinadas a encontrar soluções definitivas para problemas sociais – é de uma incrível ineficácia. Embora nos últimos 40 anos o volume de doações filantrópicas nos Estados Unidos tenha crescido exponencialmente, a maioria dos problemas sociais ou ambientais continua sem solução – quando não pior. A nosso ver, o problema da filantropia estratégica nasce de uma série de suposições que há mais de um século pautam a atividade filantrópica no país. A saber: que beneficiários da ajuda filantrópica são incapazes de solucionar os próprios problemas, que grandes doadores têm conhecimento e incentivo para resolver os inúmeros desafios da sociedade e que o setor social é uma alternativa eficaz ao governo na construção de uma sociedade equitativa e sustentável.

É cada vez mais evidente que essas premissas estão equivocadas. Indivíduos são capazes de melhorar a própria situação com pequenas transferências incondicionais de renda e o apoio da comunidade.1 Grandes doadores em geral não têm a vivência para entender os problemas que buscam resolver e podem evitar soluções mais sistêmicas que minem sua própria riqueza e privilégio.2 Só o governo consegue abordar problemas socioambientais em escala nacional.

Não há como compensar com filantropia a incapacidade do governo americano de satisfazer as necessidades de todos. Isso posto, iniciativas recentes de engajamento mostram que a filantropia pode, sim, mobilizar eleitores e preparar a população para eleger governos mais representativos. A filantropia também pode promover a autodeterminação por meio de programas de renda básica universal (RBU), da facilitação econômica e de mudanças peer-driven que contribuam para o sucesso do indivíduo e que ao mesmo tempo neutralizem narrativas sociais destrutivas que impedem o progresso. Essa abordagem, que chamamos de filantropia de empoderamento, exigiria um profundo descolamento do modelo atual de filantropia estratégica, que deixa nas mãos de financiadores descobrir, avaliar e expandir soluções inovadoras a serem implementadas por organizações sem fins lucrativos. Filantropos precisam descobrir como garantir autonomia econômica e política a esses indivíduos para que tomem suas próprias decisões e celebrar esses êxitos para inspirar outros – conquistando um papel muito mais central para um progresso socioambiental amplo e duradouro.

Como defensores e praticantes de longa data da filantropia estratégica, essa não é uma constatação fácil. Há mais de 25 anos Mark estuda, divulga e dá consultoria sobre meios de tornar a filantropia mais eficaz; Steve e sua mulher Susan [Sandler, morta em 2022, de câncer] doaram somas importantes a iniciativas filantrópicas.

No papel de curador de três pequenas fundações familiares e conselheiro de várias organizações sem fins lucrativos, além de coordenador de congressos de doadores durante dois mandatos à frente da Jewish Funders Network, Mark passou a refletir sobre a função da filantropia, que não parecia estar solucionando os problemas da sociedade. Na década de 1990, começou a agir para melhorar a prática, convencido de que bancar programas eficazes de ONGs seria a chave para o progresso social. A tese de Mark e de seus ex-colegas da consultoria sem fins lucrativos FSG evoluiu, priorizando a elaboração de estratégias de doação embasadas e voltadas para mudanças sistêmicas que de fato produzem resultados melhores. Infelizmente, a filantropia estratégica não gerou mudanças na escala necessária.

Mark há muito concluiu que a filantropia talvez fosse mais eficaz se financiasse um processo aberto e contínuo de mudanças. Essa ideia foi apresentada pela primeira vez há 20 anos no artigo “Leading Boldly”, escrito em coautoria com Ron Heifetz e John Kania para a Stanford Social Innovation Review. O texto, de 2004, trata da liderança adaptativa e sustenta que o papel do doador é criar e manter condições para que stakeholders possam produzir suas próprias soluções. Outro texto em coautoria com Kania, “Impacto coletivo”, de 2011, mostrava como mudanças duradouras eram fruto não tanto de programas isolados, mas da contínua colaboração intersetorial. Textos posteriores mostravam ainda como o racismo estrutural e outras formas de discriminação preservam o statu quo e como narrativas sociais falsas – explicações racistas e sexistas para justificar esse estado de coisas – podem confundir filantropos.3

 

A abordagem que chamamos de filantropia de empoderamento exigiria um profundo descolamento do modelo atual de filantropia estratégica. Filantropos precisam descobrir como garantir autonomia econômica e política a esses indivíduos para que tomem suas próprias decisões e celebrar esses êxitos para inspirar outros

 

Em muitas áreas, porém, efeitos imediatos de leis, políticas de governo e decisões judiciais parecem superar em escala iniciativas filantrópicas. Nos Estados Unidos, o Affordable Care Act e medidas emergenciais durante a pandemia, por exemplo, deram mostras da capacidade do governo de aliviar o sofrimento e a pobreza de milhões de pessoas. No extremo ideológico oposto, políticos e juízes conservadores, ao lado da iniciativa privada, conseguiram reverter décadas de progresso social em questões como equidade racial, direitos reprodutivos, direitos LGBTQ+, pobreza, trabalho infantil, controle de armas, garantias eleitorais e normas ambientais. Esses efeitos convenceram Mark de que a filantropia jamais seria capaz de criar uma sociedade mais equitativa e sustentável sem reconhecer suas limitações e aumentar seu envolvimento no processo político. Ele procurou Steve após ler seu livro mais recente, How We Win the Civil War, que trata da necessidade e da oportunidade de criar uma verdadeira democracia multirracial. Seu objetivo era entender melhor como a filantropia poderia influenciar a política.

Steve é conhecido por suas colunas para The Nation e The Guardian e por ter tido seu Brown Is the New White entre os best-sellers do New York Times. No livro, questiona a obsessão por mobilizar o eleitor branco nos estados-pêndulo americanos, uma vez que o crescente eleitorado não branco forma com os brancos progressistas uma maioria dos 51% dos qualificados a votar. Estratégias e análises de interseção entre raça e política são o cerne da organização Democracy in Color, fundada por ele.

Os anos de formação de Steve foram moldados pelo movimento pelos direitos civis e por isso ele sempre se interessou pelo tema. Desde cedo, frequentava a igreja negra onde seu avô era ministro. Na década de 1960, os pais haviam se mudado para um bairro de população predominante branca em Cleveland Heights, Ohio. Foram impedidos de comprar uma casa por serem negros, e foi preciso que um integrante branco do movimento de defesa dos direitos civis adquirisse o imóvel e o transferisse a eles. Em 1984, já como ativista estudantil e presidente do grêmio Black Student Union na Universidade Stanford, Steve aderiu à campanha presidencial de Jesse Jackson e à sua Rainbow Coalition, que pela primeira vez demonstrou o poder da comunicação, da organização e da mobilização de eleitores.

Nos últimos 20 anos, Steve e sua mulher, Susan, tiveram importante atuação filantrópica nas áreas de política eleitoral e justiça racial. Em 2005, participaram da criação da Democracy Alliance, que uniu muitos dos maiores doadores progressistas. Steve também participou do financiamento e da criação de várias instituições, incluindo a ProPublica e o Center for American Progress. Também concebeu, em 2006, o California Donor Table, um círculo de doadores que age para investir em comunidades não brancas. Com sua esposa, investiu mais de US$ 20 milhões em grupos de justiça racial por meio do fundo Susan Sandler, que dispõe de US$ 200 milhões.

O investimento do casal mostra como intervenções filantrópicas em políticas públicas e eleitorais pode criar uma sociedade mais justa e equitativa. Seu apoio à campanha Living United for Change in Arizona em 2016 contribuiu para a aprovação de uma iniciativa popular via voto que elevou o salário mínimo a US$ 12 por hora. Já a doação à campanha New Virginia Majority ajudou a eleger uma maioria democrata que, em 2019, estendeu o acesso ao programa Medicaid a mais de 400 mil indivíduos de baixa renda no estado da Virgínia e, em 2021, promoveu um reajuste no salário mínimo para 800 mil pessoas.

Por tudo isso, Steve reconhece a necessidade de um modelo radicalmente distinto de filantropia para os dias atuais, quando o país precisa vencer aquilo que Isabel Wilkerson – primeira mulher negra a ganhar um Pulitzer de jornalismo – chamou de “os patógenos tóxicos que foram lançados sobre o mundo” e reverter essa campanha de destruição não só de normas sociais, mas da própria democracia.

 

A falsa premissa de Carnegie

 

O texto fundamental da filantropia estratégica moderna – O evangelho da riqueza, de Andrew Carnegie, de 1889 – expõe o paternalismo embutido no modelo atual de filantropia estratégica. Carnegie escreveu que “a riqueza, passando pelas mãos de poucos, pode se tornar uma força muito mais potente para a elevação de nossa raça do que se distribuída em pequenas quantias para o próprio povo”, pois ali seria “desperdiçada na satisfação de apetites”. Carnegie concluiu que o homem rico deve ser o “agente de seus irmãos mais pobres, deixando a seu serviço sua sabedoria superior, sua experiência e a capacidade de administrar, fazendo por eles melhor do que fariam ou poderiam fazer por si próprios”.

Em suma, segundo Carnegie, não se pode esperar que os “irmãos mais pobres” saibam do que precisam para melhorar sua situação ou como usar recursos sem amarras de modo responsável. Burocratas do governo tampouco poderiam dar soluções; os mais capacitados para isso seriam os donos de poder e fortuna.

A tese é reforçada pelo mito do sonho americano, segundo o qual qualquer um que se esforce pode conquistar sucesso financeiro; a pobreza seria pura responsabilidade do indivíduo. A ideia se difundiu tanto que foi interiorizada por muitas pessoas em situação de pobreza, minando seu senso de agência e sua autoconfiança.4

Essa narrativa está impregnada de racismo. Nos Estados Unidos, a pobreza se concentra desproporcionalmente na população não branca – de cujo trabalho sempre dependeu a prosperidade dos brancos.5 Como escreveu Steve em Brown Is the New White, “desde o início da história americana a população de cor foi colocada na pobreza como um grupo e mantida na pobreza por políticas sancionadas e promovidas pelo governo [enquanto] os brancos eram elevados, privilegiados e protegidos como grupo”. Erguer-se por conta própria é impossível quando o racismo sistêmico mantém seus pés presos ao chão.

A maioria dos filantropos americanos ainda segue o exemplo de Carnegie, conscientemente ou não. Sua visão determina toda a estrutura do nosso trilionário setor não rentável, no qual recursos são destinados a programas, e não a pessoas, e no qual doadores cheios de boas intenções (em sua maioria brancos) decidem que programas bancar. Tratados posteriores sobre filantropia estratégica reforçam a tese de Carnegie de que quem doa é mais capaz de criar intervenções para mudar a sociedade.6 Será, porém, que Carnegie estava certo?

 

O modelo atual de filantropia encobre a necessidade urgente de uma democracia multirracial, representativa e funcional. Quanto mais ênfase damos à filantro­pia como solução, mais livramos o poder público e a iniciativa pri­vada da obrigação de promover mudanças

 

Muitos filantropos aceitaram a tese de que seu sucesso empresarial deriva de uma sabedoria superior que pode ser transferida para a promoção de mudanças na sociedade. Onde, porém, está a evidência de que saber conduzir uma empresa e promover o progresso social são habilidades intercambiáveis? Nem sempre se é genial em várias áreas: Einstein não sabia pintar, e Picasso não era bom de conta. Carnegie jamais teria buscado conselhos de gestão com seu contemporâneo Mahatma Gandhi, um notório líder no campo social. Por que, então, supor que Carnegie soubesse como criar uma sociedade melhor – ou que os bilionários de hoje saibam? Há uma profunda diferença entre o modelo de “comando e controle” que promove o sucesso empresarial e a combinação de capacidade, empatia e vivência necessária para inspirar, mobilizar e capacitar indivíduos a promover mudanças efetivas e duradouras.

As soluções de Carnegie não passavam por mudar práticas empresariais, resguardando assim seus próprios bens e privilégios. Aliás, é possível ajudar uma ou outra instituição beneficente a melhorar a situação de um grupo sem jamais questionar o contexto maior na origem do problema social. É possível doar para um banco de alimentos sem abordar a relação entre baixos salários e o lucro de empresas ou entre programas de proteção social e a arrecadação de impostos. Em suma, quando o progresso social fica a cargo do rico, a filantropia pode se tornar placebo, trazendo uma ajuda bem-intencionada ao mesmo tempo que desvia a atenção de reformas fundamentais que possam ser menos palatáveis para doadores. Essa é a consequência insidiosa e involuntária de depender da expertise do rico para o progresso social. Como apontou o jornalista Anand Giridharadas no livro Winners Take All, o rico pode “fazer sua parte” sem realizar o trabalho estrutural necessário para criar mudanças sustentáveis.

Carnegie também errou ao supor que os “irmãos mais pobres” não usariam o dinheiro com sabedoria, como demonstrado pela crescente literatura sobre programas de transferência de renda incondicionada (TRI) e de renda básica universal (RBU).7 Desde 2008, a entidade GiveDirectly distribuiu US$ 580 milhões em mecanismos de TRI para 1,4 milhão de pessoas no mundo, monitorando os resultados com rigor. Os beneficiários, em sua quase totalidade, souberam usar os fundos para melhorar suas condições de vida. O gasto para a “satisfação de apetites” foi praticamente zero. Testes com mecanismos de TRI mostraram avanços em poupança, nutrição, educação e saúde mental, bem como redução em níveis de estresse, casamento infantil, gravidez na adolescência e violência doméstica.8 Um ensaio controlado randomizado de TRIs em Stockton, na Califórnia, é um dos estudos que mostram como a transferência de renda garante “maior autonomia na exploração de novas oportunidades de trabalho e na atividade de cuidador”.9

Em suma, a tese de Carnegie de que o rico é sábio por causa de sua riqueza e que o pobre é ignorante por causa de sua pobreza estabeleceu as bases de uma abordagem paternalista da filantropia, que ainda perdura. Não surpreende que o histórico de desempenho da filantropia decepcione.

 

A filantropia não substitui o governo

 

O montante doado a instituições beneficentes nos Estados Unidos passou de US$ 55 bilhões em 1980 para US$ 485 bilhões em 2022, um salto de 300%, já descontada a inflação. Consultorias especializadas em impacto social (FSG, Bridgespan, Arabella), centros de pesquisa acadêmica e publicações como a SSIR produzem ideias cada vez mais sofisticadas sobre filantropia. Apesar disso, não houve avanços perceptíveis em questões urgentes, como pobreza, doenças crônicas, disparidades educacionais, escassez de moradia, desigualdade racial e mudanças climáticas. De acordo com a Giving USA, quase dois terços do montante doado anualmente a entidades sem fins lucrativos no país vão para instituições religiosas, universidades, instituições de arte e cultura, pesquisa médica ou para causas internacionais que, quando muito, abordam esses problemas indiretamente. A soma de cerca de US$ 150 bilhões ao ano em doações destinadas diretamente a esses problemas tem pouco resultado a mostrar.

Apesar do salto nas doações entre 1980 e 2022, o nível de pobreza pouco mudou no país; a população sem-teto cresceu quase 600%, e a disparidade racial de riqueza não parou de crescer (0,1% ao ano em média). Em 2022, os índices de mortalidade eram 3% maiores do que em 1980. No caso das mortes maternas, a taxa dobrou nesse intervalo – sendo que entre mulheres negras é três vezes maior do que entre brancas.10 As emissões de carbono estão bem abaixo do pico registrado em 2007, embora em 2022 ainda tenham sido cerca de 5% mais altas do que em 1980. O nível de escolaridade da população subiu em ritmo constante ao longo dos anos, independentemente do aumento do apoio filantrópico – até a chegada da pandemia, que provocou estragos na aprendizagem. Nas últimas quatro décadas, a porcentagem de pessoas com título universitário dobrou (de 17% para 35%), embora a taxa de pobreza tenha permanecido inalterada – e, para 44 milhões de pessoas, exacerbada por US$ 1,8 trilhão em dívida estudantil. Até o setor religioso, maior beneficiário isolado de doações, viu uma queda contínua na afiliação, que nem bilhões de dólares foram capazes de reverter.

É possível que condições sociais e ambientais tivessem piorado ainda mais sem a intervenção da filantropia. Isso posto, há fartas evidências de que ela é incapaz de solucionar problemas sociais em escala nacional. Com efeito, os Estados Unidos são, por ampla margem, os primeiros do mundo em doações filantrópicas per capita – mas estão na lanterna entre os países pertencentes à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em vários indicadores de bem-estar social e lideram em diversas mazelas sociais. De 1990 a 2022, enquanto a soma de doações dobrou em termos reais, o país foi da 8ª para a 31ª posição em um ranking de progresso social. Esse descompasso entre filantropia e bem-estar não se limita aos Estados Unidos. As nações com maior volume de doação per capita – além dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido – tendem a se sair mal em indicadores de progresso social. Já nos de melhor desempenho – países escandinavos, a Alemanha e o Japão –, doações não chegam a 2% do montante filantrópico dos Estados Unidos. Nesses lugares, espera-se que o governo, e não a filantropia, satisfaça os anseios da sociedade.

O governo americano já demonstrou que tem meios de combate à pobreza inacessíveis à filantropia. Em um artigo no Journal of Economic History, Martha Bailey e Nicolas Duquette explicam que durante a “guerra à pobreza” lançada pelo presidente Lyndon Johnson na década de 1960, “o Congresso aprovou leis que transformaram as escolas americanas, criaram Medicare e Medicaid e ampliaram subsídios à moradia, programas de desenvolvimento urbano, de emprego e capacitação, vale-alimentação, seguridade social e outros benefícios sociais”. Ainda segundo eles, “esses programas mais do que triplicaram, em termos reais, o gasto federal em saúde, educação e bem-estar social, que em 1970 já representava mais de 15% do orçamento federal”. Serviram, ainda, para reduzir a taxa de pobreza pela metade, de 24% para 12%. Mais recentemente, auxílios emergenciais durante a pandemia tiraram temporariamente da pobreza mais de 12 milhões de pessoas e reduziram pela metade a pobreza infantil com a ampliação do crédito fiscal Child Tax Credit – quando o Congresso revogou esse benefício fiscal, em 2023, as taxas imediatamente voltaram aos níveis pré-covid, segundo dados do Center on Poverty and Social Policy da Universidade Columbia). Nenhum programa filantrópico teve efeito comparável em tão pouco tempo.

A capacidade do governo de acelerar ou obstruir o progresso social também fica evidente na comparação entre o custo-benefício da filantropia e o do lobby. O montante anual de contribuições filantrópicas supera enormemente o de contribuições políticas e o do lobby empresarial: durante o ciclo eleitoral de 2020, a filantropia superou as contribuições políticas numa razão aproximada de 40:1.11 Em 2022, por exemplo, a indústria de combustíveis fósseis gastou US$ 180 milhões em lobby e em contribuições para preservar subsídios federais e obstruir leis ligadas à mudança climática. No mesmo ano, doações a ONGs para combate a mudanças climáticas totalizaram US$ 7,5 bilhões. Qual dessas somas teve mais impacto?

Aliás, o Congresso estava bem ciente do poder de contribuições políticas quando, há quase 60 anos, vetou o setor filantrópico de utilizar essa opção. Na esteira do apoio de fundações a direitos civis, na década de 1960, a ala conservadora aprovou o Tax Reform Act de 1969, que as proibiu de fazer lobby e política partidária. O apoio da Fundação Ford à campanha de mobilização de eleitores entre a população negra – que ajudou a eleger o primeiro prefeito negro do país, Carl Stokes, de Cleveland, Ohio – foi citado no Congresso como um dos perigos do envolvimento das entidades na política.

Hoje, qualquer indivíduo pode pagar lobistas com seus recursos, mas só empresas podem fazer lobby – em geral contra o interesse público – e deduzir a despesa de sua base tributável. Restringir a atividade para fundações desanimou o envolvimento do setor sem fins lucrativos com a política e mesmo com a proteção dos pilares fundamentais da democracia.

Sem mudanças na esfera governamental, nem a mais abastada e eficaz das organizações filantrópicas chegaria perto de satisfazer necessidades em escala nacional.12 A Teach for America é um exemplo: em 2013, no auge de sua atividade, atendia cerca de 400 mil alunos ao ano com seus professores – ou seja, 2% dos 20 milhões de estudantes de baixa renda com direito a receber merenda escolar. Outro caso é o da Nurse Family Partnership (NFP), um projeto filantrópico bem financiado e de rápido crescimento para apoio pós-parto, em domicílio, a mães de primeira viagem e de baixa renda. Bancado por milhões de dólares em doações e com forte suporte de gestão e consultoria ao longo de quase 30 anos de atuação, a NFP atende hoje 55 mil mães ao ano em 40 estados – um feito extraordinário, mas que ajuda menos de 4% do 1,5 milhão de bebês que nascem em famílias de baixa renda no país todos os anos.

O desafio de conquistar progresso social pela ação do setor sem fins lucrativos vai além da escala e chega à questão mais fundamental, que é saber se iniciativas seriam capazes de solucionar o problema, em vez de apenas aliviar sintomas. A pobreza, por exemplo, é resultado direto de políticas públicas e de condutas empresariais nascidas de uma história de racismo estrutural que nenhum programa sem fins lucrativos poderá corrigir. Nos Estados Unidos, 54% das pessoas em situação de pobreza são crianças, idosos ou portadores de deficiências – que, em sua maioria, não podem trabalhar. O auxílio do governo federal a essa população é de cerca de metade da média dos países da OCDE.13 Sozinha, essa diferença é mais do que o dobro do total da doação filantrópica nos Estados Unidos ao ano.14

Dos 46% restantes aptos a trabalhar, a maioria tem empregos mal remunerados. Nos Estados Unidos, a renda anual de 44% dos trabalhadores com idades entre 18 e 64 anos está abaixo da mediana de US$ 18 mil. Quem é remunerado por hora e ganha mais do que o piso costuma ter horários imprevisíveis que impedem a pessoa de cumprir uma jornada de 40 horas por semana ou de manter um segundo emprego. Há mais de uma década, os postos com baixa remuneração são os que mais crescem no país. O resultado é que os Estados Unidos simplesmente não têm empregos que garantam uma renda mínima digna para toda sua força de trabalho.15

Em suma, o governo americano tomou a decisão de não garantir um meio de subsistência digno para gente tida como não empregável e nem de exigir que empresas paguem salários justos com jornadas humanas e previsíveis àqueles que empregam.16 O impacto dessas decisões não pode ser compensado por programas filantrópicos.

Argumento similar cabe no caso de mudanças climáticas e do subsídio público ao setor de combustíveis fósseis ou da obesidade e da chamada Farm Bill, que subsidia o xarope de milho usado para adoçar alimentos processados. A capacidade do governo e de empresas de determinar condições sociais e ambientais e a incapacidade de organizações de mudá-las significativamente se comprova na maioria das questões que a filantropia estratégica busca abordar.

O modelo atual de filantropia não é só equivocado, ele é perigoso. Usar o setor não rentável para enfrentar desafios da sociedade encobre a necessidade urgente de uma democracia multirracial, representativa e funcional. Quanto mais ênfase damos à filantropia como solução, mais livramos o poder público e a iniciativa privada da obrigação de promover mudanças. O sonho libertário de um Estado mínimo só se cumpriria se o setor sem fins lucrativos pudesse satisfazer necessidades sociais no lugar do governo – e ele simplesmente não pode.

Para criar uma sociedade equitativa e sustentável, precisamos de uma democracia multirracial. A filantropia estratégica há muito professa buscar a “raiz” de problemas sociais. Mas e se a raiz de todo desafio social e ambiental que aflige os Estados Unidos for a incapacidade do processo político de garantir o bem-estar de toda a população do país?

 

Um governo não representativo

 

Hoje há uma enorme discrepância entre aquilo que o governo faz e o que a maioria dos americanos deseja. Dois terços dos americanos acham que a mudança climática é uma grande ameaça ao país e querem medidas mais severas. O direito ao aborto tem o apoio de 85% dos cidadãos, e 80% acham que direitos LGBTQ+ devem ser garantidos por lei. A maioria defende a igualdade de gênero e a equidade racial, é a favor de um controle mais rigoroso de armas e contra a proibição de livros em bibliotecas de escolas. Enquanto isso, centenas de leis e decisões judiciais em todas as esferas do poder vão cada vez mais no sentido oposto.

Essa discrepância se deve a vieses raciais, econômicos e etários na participação eleitoral, problema enormemente agravado por medidas recentes para suprimir direitos de eleitores não brancos. Isso inclui o esvaziamento da lei de proteção ao voto pela Suprema Corte em 2013, leis de identificação de eleitores restritivas nos estados, a manipulação de distritos eleitorais conhecida por “gerrymandering”, a supressão de seções eleitorais e limites ao voto antecipado. A queda na participação de eleitores devido a restrições recentes já superou a margem de vitória em muitas das eleições passadas. Trabalhadores horistas – em sua maioria não brancos – perdem renda se saem para votar durante o trabalho e em geral enfrentam longas filas nas poucas seções eleitorais de sua localidade, enquanto os com salário fixo e maior renda, bem como os aposentados, costumam ter acesso a mais locais de votação, com filas mais curtas. O resultado é que a população que vota regularmente é mais velha, mais branca e mais rica do que a população em geral.

“Em um país com séculos de opressão e racismo sistêmicos, há pouco interesse em fazer a participação na democracia tão fácil quanto a participação no consumo”, sustenta Steve em How We Win the Civil War. “A base de eleitores brancos ricos vem incentivando políticos a tomar medidas que reforçam o racismo estrutural e a desigualdade econômica há mais de um século – mesmo quando isso prejudica a população branca.

No livro The Sum of Us, a escritora e ativista Heather McGhee lembra que, décadas atrás, centenas de cidades do sul dos Estados Unidos preferiram esvaziar ou eliminar piscinas públicas – mais frequentadas por crianças brancas do que negras – a aceitar a integração racial imposta por lei. O padrão não é diferente hoje. Em 2020, uma década após a aprovação da reforma do setor de saúde com o Affordable Care Act, dez estados americanos continuavam recusando recursos federais não reembolsáveis que beneficiariam muito mais pessoas brancas do que negras. Neste ano, 15 governadores republicanos rejeitaram recursos desse tipo para prover merenda a alunos nas férias – embora 42% dos indivíduos em situação de pobreza sejam brancos não hispânicos e apenas 24% sejam negros.17 McGhee conclui que o apego obstinado ao racismo sistêmico sacrifica muitas oportunidades boas para todos.

 

Um modelo de empoderamento para o progresso social

 

Invertamos o modelo de Andrew Carnegie e apostemos na sabedoria do pobre. Já que não há como resolver os problemas da sociedade sem onerar ricos e poderosos, não se pode esperar que venha deles a solução. Filantropos não precisam achar respostas para o problema dos outros, só ajudar a capacitar as pessoas a melhorar sua condição de vida como bem entenderem. Isso não quer dizer que todo mundo possa prosperar por conta própria sem assistência – mas, sim, que a assistência muitas vezes é conflitante com o que a filantropia e entidades sem fins lucrativos atualmente fazem.

Quem pratica a filantropia por uma sociedade mais equitativa deve lutar para garantir uma democracia efetiva, que represente a população do país, rejeitar narrativas sociais falsas e equivocadas que confundem a opinião pública e apoiar a autodeterminação econômica dos que vivem na pobreza.

Garantir uma verdadeira democracia multirracial. | Se só o governo tem poder e escala para satisfazer os anseios da sociedade, filantropos precisam aprender a influenciar o governo. É necessário que abordem questões delicadas como desigualdade racial, política tributária, supressão de votos, regulamentação da atividade empresarial, salário mínimo e condições de trabalho. Não há como empoderar os mais necessitados sem limitar o poder dos que estão no comando – ainda que o resultado final seja uma economia mais vibrante e equitativa que beneficie a todos.

 

Precisamos redirecionar nossos esforços para a necessidade urgente de uma democracia mais plenamente representativa. Devemos ajudar as pessoas a encontrar suas próprias soluções, reforçar seu senso de autonomia e ajudá-las no fortalecimento de suas próprias comunidades

 

Uma verdadeira democracia multirracial requer que o processo político reflita a diversidade da população. Já que as eleições americanas são normalmente decididas por alguns milhares de votos nos chamados estados-pêndulo, a filantropia poderia agir por meio de duas atividades permitidas ao meio não rentável: incentivar a participação eleitoral e fazer campanhas informativas sobre temas específicos. Fundações destinam pouquíssimos recursos a essas atividades: em 2022, dos US$ 105 bilhões doados por essas entidades, apenas US$ 408 milhões (de 81 financiadores) foram destinados à mobilização e à educação de eleitores – nem metade de 1%. 18

Não se trata só de falta de financiamento, mas também de uso ineficaz de recursos. Homens brancos são apenas 31% da população americana e 23% dos eleitores democratas, mas controlam quase 90% do Partido Democrata e do movimento progressista.19 Com isso, campanhas gastam somas exorbitantes com consultores homens e brancos – e, depois, milhões de dólares em propaganda voltada, sobretudo, a eleitores brancos. Isso ajuda a explicar por que iniciativas anteriores de mobilização do eleitorado tiveram impacto mínimo.

No entanto, uma abordagem diferente e eficaz é possível – como demonstrou o trabalho de engajamento cívico comandado pela ativista Stacey Abrams no New Georgia Project (NGP). O NGP coordenou uma rede de grupos de alistamento e mobilização de eleitores oriundos das comunidades que buscavam engajar e trabalhou sem trégua durante uma década, estudando rigorosamente o comparecimento às urnas e usando planilhas detalhadas para monitorar condutas e perfil demográfico de eleitores em distritos cruciais. O esforço compensou: a participação de eleitores não brancos aumentou quase 50%, indo de 625 mil em 2016 para 915 mil em 2020.20 Esse aumento foi decisivo para a eleição dos democratas Raphael Warnock e Jon Ossoff para o Senado – a primeira vez na história em que o estado elegeu um senador negro ou judeu. Isso ajudou os democratas a manter o controle do Senado e, em última instância, permitiu a aprovação, em 2022, da Inflation Reduction Act, lei que garantiu US$ 500 bilhões em apoio à transição para energias limpas, reduziu custos da saúde e aumentou a arrecadação de impostos. Nada mau para uma organização com um orçamento anual de US$ 13 milhões. Progressos semelhantes vêm sendo observados na Virgínia, no Arizona, na Carolina do Norte e no Texas.

Refutar narrativas sociais que distorcem a opinião do eleitorado é outro trabalho essencial. Modificar atitudes do eleitor e expor concepções errôneas não será fácil em tempos de polarização política, “fatos alternativos” e bolhas em redes sociais. Mas, se todos os americanos fossem bem-informados e votassem, posturas extremistas teriam muito menos peso, e a filantropia estratégica – se optasse por investir em educação e participação de eleitores – poderia avançar muito mais.

Imagine se 5% dos US$ 5 bilhões que as fundações americanas distribuem ao ano fossem dedicados à mobilização de eleitores pelo modelo do NGP. Isso transformaria as eleições e permitiria o surgimento de um programa de ações em todos os níveis de governo que realmente produziria, em escala nacional, muitos dos resultados que financiadores tentam arduamente atingir com seus programas.

Ainda seria possível ir além. A única exceção à proibição do lobby por fundações – a “cláusula da autodefesa” – permite que as entidades se mobilizem no Congresso a respeito de temas que as afetem. Em suma, uma fundação poderia fazer lobby pelo direito de fazer lobby em prol do interesse público – o que, como observado anteriormente, tem potencialmente mais impacto por um custo muito menor, embora uma mudança dessa natureza talvez só fosse possível com um Congresso muito distinto do atual.

Mesmo sem transformar a política nacional, a filantropia poderia fazer muito mais por indivíduos em situação de pobreza se adotasse uma abordagem de empoderamento que incentivasse a autonomia individual.

Promover a autodeterminação. | A filantropia deveria aprovar algo que é parte da solução para a pobreza no país – um mecanismo de renda básica universal (RBU) bancado pelo governo. Como sustentou Martin Luther King Jr. em sua obra final, Where Do We Go from Here?, “o indivíduo terá dignidade no dia em que tiver o controle das decisões sobre a própria vida, a garantia de contar com uma renda estável e certa e quando souber que tem os meios para melhorar sua própria condição”. A quantia gasta em alívio financeiro durante a covid-19 daria para bancar dez vezes o valor de uma RBU em escala nacional. Ou seja, se houver vontade política, é viável.21

Mesmo sem a RBU, a filantropia pode explorar o desejo universal de autorrealização para promover o empoderamento econômico. O modelo de mudança peer-driven criado por Mauricio Miller, agraciado com uma Genius Grant da fundação MacArthur, é um exemplo. Em 2001, Miller criou a Family Independence Initiative (rebatizada de UpTogether em 2021). Ela propunha uma abordagem à redução da pobreza que não dependia de intervenções convencionais do Estado ou da filantropia. Miller organizava reuniões mensais com 25 famílias em Oakland que mal tinham renda para sobreviver. Os participantes recebiam praticamente zero auxílio financeiro do programa e nenhum apoio externo; tampouco participavam de outros programas de entidades.22 Aos poucos, começaram a compartilhar suas esperanças e metas, a relatar seu progresso e a dar conselhos e incentivo uns aos outros. O sucesso de um inspirava os demais – a buscar educação, a adotar uma alimentação mais saudável ou a pagar dívidas. O programa impunha que as famílias acompanhassem e informassem todo mês sua situação financeira, a saúde e o progresso em relação às próprias metas, o que fomentava foco e determinação. Sentindo-se parte de uma comunidade, começaram a se ajudar entre si: no cuidado dos filhos, em consertos domésticos, na busca de novas oportunidades de trabalho. Segundo Miller, o processo imita o modo como famílias mais ricas utilizam suas redes para avançar pessoal e profissionalmente. Após três anos, a renda das famílias tinha subido 40%. O projeto foi reproduzido em San Francisco, no Havaí e em Boston, com resultados parecidos. Em San Francisco, a renda dos participantes subiu 23% e suas economias, 240%, em dois anos. Um quarto dos participantes que integravam programas de auxílio do governo já não precisava da assistência.23

De lá para cá, Miller criou o Center for Peer Driven Change, defendendo essa abordagem em comunidades carentes ao redor do mundo. Os participantes trocam conhecimentos, contatos e incentivos, ajudando uns aos outros a atingir metas. Ver alguém da própria comunidade enfrentando os mesmos obstáculos e progredir traz uma motivação que ninguém de fora poderia igualar. As pessoas se inspiram no sucesso dos pares e avançam a partir disso, o que significa entender a conquista alheia e, sobretudo, como foi alcançada. No livro The Power of Positive Deviance, os professores Richard Pascale, Jerry Sternin e Monique Sternin observam que, em toda comunidade que enfrenta um problema, há alguém que improvisou soluções, embora o restante em geral desconheça ou encare com desconfiança esses casos atípicos. Ao estudar detidamente a comunidade, é possível identificar esses desvios positivos e incentivá-los a compartilhar seu método com os demais.

A facilitação econômica é uma abordagem similar. Ela foi concebida por Ernesto Sirolli, que escreve e dá consultoria sobre desenvolvimento econômico, ajuda indivíduos a abrir o próprio negócio e já criou milhares de empregos ao redor do mundo.24 Esse modelo busca incentivar pequenos negócios locais dentro de uma comunidade, em vez de trazer especialistas e financiamento de fora para traçar um plano de desenvolvimento econômico de grande escala. Como facilitador econômico, Sirolli tem uma abordagem simples: não iniciar nada e nunca encorajar ninguém. Quando alguém o procura com uma ideia, ele ajuda a pessoa a refletir sobre o que seria necessário para que o negócio fosse economicamente viável, incluindo possíveis sócios ou parceiros. Se a ideia não faz sentido ou a pessoa perde o interesse, o facilitador simplesmente espera até que outra pessoa venha com a próxima ideia.

O sucesso de um negócio inspira os demais a procurar o facilitador para colocar à prova seu próprio tino. Cada empreendimento abre oportunidades para o surgimento de outros – como fornecedores, distribuidores ou extensões de mercado. Enquanto isso, empregos aumentam o poder aquisitivo local, que sustenta ainda mais empresas. O movimento vai ganhando ímpeto, formando uma economia local forte, condizente com a capacidade e os recursos daquela comunidade específica. O trabalho do facilitador econômico – e, sugerimos, da filantropia – não é criar a solução, mas, como sustenta Sirolli, “apenas ajudar a remover obstáculos que impedem o crescimento do cliente”.25 Entre os obstáculos estão a ausência de senso de autonomia, de uma renda básica suficiente, de apoio mútuo e de pessoas em situação similar que sirvam de exemplo.

A tese de que indivíduos de uma mesma comunidade podem se ajudar na busca do sucesso econômico não é nova. Após a Guerra Civil, no período de Reconstrução, durante as décadas de 1860 e 1870, centenas de comunidades negras como a Black Wall Street em Tulsa, Oklahoma, vicejaram sem auxílio do governo ou de entidades filantrópicas. Negros criaram sua própria economia, com seus bancos e seu comércio, com o apoio de advogados e de médicos negros. Hoje, esses exemplos são uma memória longínqua. Isso se deve à sanha assassina de brancos que destruíram a Black Wall Street, a táticas políticas que suprimem direitos de não brancos e os excluem da vida pública e a programas sociais que geram dependência e impedem a autodeterminação.

Cada exemplo acima exigiu, sim, recursos da filantropia. Mas esses recursos bancaram uma abordagem antropológica que identificou modelos de sucesso existentes, intrínsecos a comunidades específicas, para então compartilhar o que era descoberto com outras pessoas, em um processo contínuo de apoio e incentivo ao longo de anos. É um trabalho feito no lugar. As soluções se alastram à medida que as pessoas passam a confiar umas nas outras, a se identificar com elas, a aprender com seus pares. O progresso é gradual, mas cumulativo. É preciso, sim, pessoal e verba – mas o impacto cresce e se espalha sem exigir recursos cada vez maiores, como costuma ocorrer com a expansão de programas convencionais de organizações sem fins lucrativos.

Fomentar a autodeterminação econômica exige uma reavaliação radical do modelo convencional da filantropia, que precisará aprender a doar recursos de modo a aumentar o senso de autonomia de seus beneficiários. Um exemplo inovador é o da Ownership Works, entidade fundada em 2021 que trabalha com firmas de private equity para distribuir ações a trabalhadores horistas, ampliando a função de mecanismos de transferência de renda incondicionada (TRI), os quais, em vez de suplementar renda, visam a construção de patrimônio.

Os modelos citados acima – assim como a RBU, o impacto coletivo e a liderança adaptativa – não têm resultados predeterminados. Essa falta de balizas objetivas é um problema para o modelo vigente de filantropia, no qual o doador busca financiar soluções que possam produzir resultados previsíveis de forma garantida. A abordagem de empoderamento também vai além de inovações recentes, como a filantropia baseada na confiança, que evita o micromanagement e deixa que cada organização aja como bem entender, ou da doação participativa, na qual membros da comunidade tomam decisões sobre as doações. Não há estratégias grandiosas ou teorias de mudança elaboradas. O que recomendamos é que financiadores apoiem um processo aberto que permita às pessoas definir os próprios objetivos e descobrir as próprias soluções, segundo suas necessidades e circunstâncias – soluções que talvez nunca ocorram a ricos doadores ou especialistas de fora.

Outras mudanças serão necessárias. Hoje, nosso sistema filantrópico premia a necessidade em vez do sucesso: quanto maior ela for, mais convincente o argumento pelo apoio filantrópico. Essa abordagem cria incentivos perversos que desestimulam o progresso individual, a autonomia e o orgulho de conquistas. Até quando uma intervenção dá certo, o crédito vai para a entidade ou para o doador, não para aqueles que converteram o apoio em sucesso. É preciso inverter essa norma e começar a premiar iniciativas individuais e comunitárias. Financiadores devem identificar gente no caminho do sucesso, e não aqueles com as maiores necessidades; devem apoiar esses esforços e, em seguida, divulgar essas conquistas para os demais na comunidade. Além disso, precisamos estender o reconhecimento, as ajudas financeiras e o apoio que hoje damos a líderes de programas beneficentes inovadores e de sucesso aos próprios membros da comunidade que acharam meios de melhorar suas condições de vida. Esses indivíduos – e não apenas empreendedores sociais ou filantropos – devem ser os heróis do setor social.

Não estamos sugerindo que doadores deixem de apoiar programas e instituições sem fins lucrativos. Sugerimos, contudo, que gastem menos recursos perseguindo a última inovação social, tentando expandir organizações para produzir impacto nacional ou embarcando em visões grandiosas para resolver problemas complexos, E que, em vez disso, direcionem fundos para mudanças peer-driven e para mobilização eleitoral. A abordagem de empoderamento requer muito menos dinheiro do que iniciativas atuais para sustentar e expandir programas de ONGs. Remanejar uma porcentagem modesta das doações faria uma enorme diferença.

Ainda há um longo caminho até que o governo aprenda a ouvir e responder aos anseios da população ou autorize mecanismos de RBU. Enquanto isso, milhões de pessoas dependerão dos atuais serviços filantrópicos.

 

Redirecionando esforços

 

Ao longo de nossas carreiras na filantropia, acabamos por concluir que não há um meio superior aos demais para financiar o progresso social. Todos os muitos modelos são capazes de apresentar evidências de sua eficácia e, dado o leque de objetivos e de circunstâncias de doação, não devia surpreender que não haja uma resposta única. Até Andrew Carnegie, com todos os seus preconceitos, contribuiu para o progresso social.26

Contudo, cada abordagem filantrópica tem também limitações. Em última instância, devemos reconhecer o duro fato de que o modelo de filantropia em que apostamos até hoje não produziu – e não vai produzir – os requeridos avanços sociais em escala nacional. Precisamos redirecionar nossos esforços para a necessidade urgente de uma democracia mais plenamente representativa da população do país e devemos ajudar as pessoas a encontrar suas próprias soluções, reforçar seu senso de autonomia e ajudá-las no fortalecimento de suas próprias comunidades.

Estamos em uma batalha contra aqueles que usam o governo para proteger seu próprio poder e privilégio à custa de todos os demais. Seus instrumentos são o controle, a supressão e falsas narrativas. Os nossos devem ser o empoderamento, a mobilização e uma compreensão mais profunda de como barreiras sistêmicas, como o racismo, conformam nosso país. Empoderar indivíduos economicamente e dentro do processo político é a maneira mais eficaz de a filantropia contribuir para um futuro mais justo e sustentável para nossa nação.

 

OS AUTORES

Mark Kramer (Mark@Kramer.Capital) é colaborador de longa data da SSIR e da Harvard Business Review. É cofundador, membro do conselho e ex-diretor-
gerente da FSG, além de ex-conferencista da Harvard Business School. Também é cofundador e diretor da Maternal Newborn Health Innovations e sócio do fundo de investimento de impacto Congruence Capital.

Steve Phillips é colunista do jornal The Guardian e da revista The Nation e já contribuiu para o New York Times e o Washington Post. É apresentador do podcast Democracy in Color with Steve Phillips e autor do best-seller Brown Is the New White e de How We Win the Civil War.

Notas

1 Estas ideias foram bem articuladas por outros. Ver Mauricio L. Miller, The Alternative: Most of What You Believe About Poverty Is Wrong, autopublicado, 2023; Richard Pascale, Jerry Sternin e Monique Sternin, The Power of Positive Deviance: How Unlikely Innovators Solve the World’s Toughest Problems, Cambridge, Mass.: Harvard Business Review Press, 2010; Ernesto Sirolli, Ripples from the Zambezi: Passion, Entrepreneurship, and the Rebirth of Local Economies, British Columbia, Canadá: New Society Publishers, 1999.
2 Anand Giridharadas, Winners Take All: The Elite Charade of Changing the World, Nova York: Alfred A. Knopf, 2018. Ver também Mark R. Kramer, “Are the Elite Hijacking Social Change?”, Stanford Social Innovation Review, Fall 2018.
3 Ver John Kania et al., “Centering Equity in Collective Impact”, Stanford Social Innovation Review, Inverno 2022; Stanford Social Innovation Review, suplemento, Fall 2014, “Collective Insights on Collective Impact”; Stanford Social Innovation Review, série digital, 2022, “Collective Impact 10 Years Later”; e John Kania, Mark Kramer e Peter Senge, The Water of Systems Change, FSG, May 2018.
4 Joe J. Gladstone et al., “Financial Shame Spirals: How Shame Intensifies Financial Hardship”, Organizational Behavior and Human Decision Processes, vol. 167, nov. 2021.
5 A taxa de pobreza entre negros é de 19%; entre brancos não hispânicos é de 7%. Mark R. Rank, Lawrence M. Eppard e Heather E. Bullock, Poorly Understood: What America Gets Wrong About Poverty, Nova York: Oxford University Press, 2021.
6 Ver, por exemplo, Paul Brest e Hal Harvey, Money Well Spent: A Strategic Plan for Smart Philanthropy, Stanford: Stanford University Press, 2018; Strategic Giving: The Art and Science of Philanthropy, de Peter Frumkin, Chicago: University of Chicago Press, 2006, e The Essence of Strategic Giving: A Practical Guide for Donors and Fundraisers, Chicago: University of Chicago Press, 2010; Helmut K. Anheier, Adele Simmons e David Winder, eds., Innovations in Strategic Philanthropy: Local and Global Perspectives, Heidelberg: Springer, 2007; Joel Fleishman, The Foundation: A Great American Secret; How Private Wealth Is Changing the World, Nova York: Public Affairs, 2007; e Rajiv Shah, Big Bets: How Large-Scale Change Really Happens, Nova York: Simon Element, 2023.
7 TRI pode ser um desembolso único ou esporádico; já RBU é um auxílio financeiro contínuo.
8 Jade Sui, Olivier Sterck e Cory Rodgers, “The Freedom to Choose: Theory and Quasi-Experimental Evidence on Cash Transfer Restrictions”, Journal of Development Economics, vol. 161, mar. 2023. Ver também Jason DeParle, “Cash Aid to Poor Mothers Increases Brain Activity in Babies, Study Finds”, The New York Times, 24.jan.2022.
9 Stacia West e Amy Castro, “Impact of Guaranteed Income on Health, Finances, and Agency: Findings from the Stockton Randomized Controlled Trial”, Journal of Urban Health, vol. 100, 10.04.2023.
10 Estudos recentes sugerem que o aumento pode ser devido a mudanças na metodologia de coleta de dados, embora isso não explique a disparidade racial.
11 Dados comparados da Giving USA e da Open Secrets.
12 Essa constatação foi feita anteriormente por Steven H. Goldberg, Billions of Drops in Millions of Buckets, Hoboken: John Wiley & Sons, 2009.
13 Desembolsos públicos em países da OCDE reduzem a pobreza em 63% em média, ao passo que nos Estados Unidos a redução produzida por programas públicos é de 35%. Embora a taxa de pobreza nos Estados Unidos antes de desembolsos públicos seja praticamente igual à média da OCDE, a taxa de pobreza, computados todos os desembolsos do governo, é o dobro da média. Veja Rank, Eppard e Bullock, Poorly Understood.
14 Somente 2,2% do PIB se destinam ao combate à pobreza; outros 2,2% vão para o Medicaid. Para dobrar esses gastos e chegar à média da OCDE seria preciso US$ 1,2 trilhão. Ibid.
15 Peter Georgescu, Capitalists Arise!: End Economic Inequality, Grow the Middle Class, Heal the Nation, Oakland: Berrett-Koehler, 2017.
16 Em Los Angeles, uma lei municipal promove turnos de trabalhadores do varejo mais previsíveis e humanos. Estudos sugerem que mudanças como essa podem melhorar os resultados de empresas ao reduzir a rotatividade e aumentar a produtividade. Ver Zeynep Ton, The Good Jobs Strategy: How the Smartest Companies Invest in Employees to Lower Costs and Boosts Profits, Seattle: Lake Union, 2014.
17 Embora a porcentagem de negros vivendo em situação de pobreza seja maior do que a de brancos, como a população branca é maior o número de brancos na pobreza é muito menor do que o de negros. Ver Rank, Eppard e Bullock, Poorly Understood.
18 Ver Foundation Funding for US Democracy (democracy.candid.org); ver também Kelly Born, “The Role of Philanthropy and Nonprofits in Increasing Voter Turnout”, Stanford Social Innovation Review, Winter 2016.
19 Steve Phillips, Brown Is the New White, Nova York: The New Press, 2016.
20 Steve Phillips, How We Win the Civil War, Nova York: The New Press, 2022.
21 O valor gasto em auxílios durante a pandemia (US$ 5,9 trilhões), sem aumento de impostos como contrapartida, seria suficiente para pagar uma renda mensal de US$ 1.300 a cada um dos 38 milhões de adultos que vivem abaixo da linha da pobreza nos Estados Unidos por uma década.
22 No início, participantes recebiam US$ 200 ao mês para entregar informações sobre renda, poupança, saúde e educação, mas os pagamentos foram suspensos após o primeiro ano, pois foi constatado que não eram indispensáveis à solução. David Bornstein, “Out of Poverty, Family-Style”, The New York Times, 14.07.2011.
23 Ibid.
24 Sirolli, Ripples from the Zambezi.
25 Ibid.
26 Ver Maribel Morey, White Philanthropy: Carnegie Corporation’s ‘An American Dream’ and the Making of a White World Order, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2021.

 



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