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Por um olhar sistêmico

A filantropia estratégica deve se basear em dados que indiquem o melhor uso do capital, promovendo ações conjuntas para uma mudança sistêmica; veja outras respostas neste debate aqui

Por Raphael Mayer

Entre os pontos a considerar ao elaborar uma crítica à filantropia estratégica, está a complexidade implicada em trabalhar o desenvolvimento territorial sob a ótica das mudanças sistêmicas. 

A mobilidade social e a erradicação da pobreza são mais sintomas do que causas: é essencial distinguir as nuances para que o capital articulado seja resolutivo na raiz dos problemas, enxergando que as causas são transversais e territoriais. Essa visão se contrapõe à ideia segundo a qual o filantropo assume uma causa e um território por afinidade pessoal. Quando essa visão individualista vige, abandona-se a perspectiva de uma atuação multicausal, mais efetiva para os desafios de uma localidade. Com isso, gastam-se mais recursos e tem-se menor resultado. 

No Brasil, a educação, temática prioritária na agenda da filantropia corporativa e familiar, é a causa que mais tangibiliza os desafios enfrentados para que o investimento social seja efetivo. 

Embora seja catalisadora e transformadora, ela precisa ser trabalhada de maneira integrada e em todas as frentes. Uma escola de ponta, dotada de equipamentos tecnológicos, não será suficiente para uma criança desnutrida, com problemas de visão ou desafios de mobilidade para chegar à sala de aula, que não tenha um modelo para alimentar um sonho. O investimento social, portanto, n‹o pode perder de vista as peculiaridades estratégicas de combate à desigualdade. Isso em qualquer parte do mundo. 

No panorama brasileiro, o desafio para imprimir uma visão mais sistêmica à filantropia se desdobra em cinco níveis.

O primeiro está atrelado à decolonização do investimento social, um movimento para que investidores estabeleçam processos baseados em novas formas de trabalhar, criando redes e maneiras distintas de aprendizagem para além das fronteiras convencionais. A base é encampar medidas de transferência de poder para os indivíduos e para as comunidades mais vulneráveis. No cerne desse pensar filantrópico est‡ a demanda por estruturar formas de abrir mão de poder. 

O segundo nível se compõe de dois tópicos: a importância da transparência de dados para que soluções ganhem escala e o papel do poder público para potencializar esse processo. Aqui, temos uma intersecção com um tema muito relevante do artigo de Kramer e Phillips: a manutenção das democracias com governos mais transparentes e estruturados. Nestas, o poder público tende a fornecer informações de melhor qualidade. O pilar estrutural da transparência de dados conduz a filantropia no caminho dos investimentos sociais eficientes. 

O terceiro nível é a capacidade de articulação e coordenação dos aportes, vindos do setor público ou do privado. O diálogo para uma atuação em conjunto, diante dos desafios multifatoriais da desigualdade, está na raiz de uma filantropia mais efetiva.

No quarto nível está a necessidade de discutir a filantropia à luz de um contexto de escassez de recursos. Na realidade americana, a doação para iniciativas filantrópicas atingiu, de acordo com o relatório Giving USA 2024, US$ 557,6 bilhões em 2023. No Brasil, o volume mobilizado soma U$ 4 bilhões, segundo dados da Simbi. Essa estimativa se baseia em dados do Gife (Censo 2020), do Idis (Brazil Donation Research 2022), da Receita Federal (2023) e da própria base de dados da Simbi (2022).

Na prática, em 2022 o investimento social representava, no Brasil, cerca de 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB); nos Estados Unidos, cerca de 2%. Considerando a população dos dois países – 336,8 milhões nos Estados Unidos e 203,1 milhões no Brasil –, é possível enxergar o tamanho do desafio.

Some-se a isso a falta de dados e de articulação de capital filantrópico para um adequado desenvolvimento territorial. 

Quando olhamos para o cenário de doação no Brasil e no exterior, vemos que é preciso acelerar. Empresas e pessoas físicas estão cada vez mais ativas; entretanto, ainda existem problemas que travam o impacto das doações. 

O quinto nível estruturante na filosofia brasileira é o alto custo transacional. Investimento social bem-feito custa caro. A escassez de capital e de ferramentas dificulta o crescimento. Captar, distribuir e monitorar os recursos são processos de alto custo na alocação. 

Para quebrar essa lógica, precisamos instrumentalizar as organizações. Uma gestão de processos que permita maior capacidade para ganhar escala e a redução do custo transacional darão mais tração aos alocadores de capital, resultando na maior mobilização de recursos. 

Nessa engrenagem, pode ser interessante trabalhar a parceria com a filantropia internacional na perspectiva, também, de decolonização de recursos que partem do Norte em direção ao Sul Global. Mas é relevante pensar que, para criar essa movimentação, é necessário que haja atores locais com capacidade e estrutura de distribuir esses recursos nos territórios. 

De posse de dados gerados por tecnologia e pela escuta nos territórios, filantropos nacionais podem ser canais para a distribuição dos recursos captados no exterior. Nesse panorama, geramos uma inteligência coletiva a serviço do impacto social positivo.

A tecnologia tem desempenhado papel tangível na criação de processos de investimento social privado, trazendo governança, mitigação de riscos e eficácia de ponta a ponta. Ela nos permite conduzir aportes financeiros com mais confiabilidade e integridade. 

Na Simbi, social tech especializada no investimento social privado de grandes empresas e organizações, usamos a inteligência de dados para criar cenários com evidências de possíveis impactos sociais. Essa visão abarca análises mais acuradas das demandas sociais territoriais. 

De posse de informações confiáveis, os investidores – empresas, governos e organizações – podem direcionar os recursos para territórios que requerem uma maior atenção do ponto de vista socioeconômico e de oportunidades para os cidadãos; com isso, pode-se maximizar o impacto social dos investimentos e pensar em investimentos compartilhados. 

Aqui, cabe uma explicação sobre a importância de fomentar a colaboração entre corporações no desenvolvimento de territórios vulneráveis. Temos visto, entre nossos clientes, interesses em comum nas mesmas localidades, mas há uma dificuldade de visualizar quanto esse capital, se usado conjuntamente, mudaria o ponteiro social. Para vencer esse desafio e trazer visibilidade ao potencial impacto, a Simbi desenvolveu o Mapa de Demanda Social. 

Essa ferramenta reúne mais de 220 indicadores de fontes renomadas, como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Instituto Cidades Sustentáveis, entre outros. A finalidade é permitir que as empresas investidoras tenham uma visão clara do panorama local. Com base em dados confiáveis, essas corporações podem direcionar os recursos para territórios que requerem maior atenção, maximizando o impacto social dos investimentos. 

Em última análise, há um debate a ser feito, globalmente, sobre o papel da filantropia contemporânea, de qualquer vertente. A pergunta central é se ela atende à redução de danos ou se está a serviço da transformação positiva da sociedade. No Brasil, com os desafios de capital escasso no campo, qualificar o investimento social e discutir como potencializar a cultura de doação são pontos críticos para avançarmos rumo a uma filantropia efetiva é aquela com um olhar sistêmico para o desenvolvimento do país.

O AUTOR

Raphael Mayer é cofundador da Simbi Social e vencedor do Prêmio Empreendedor Social de Futuro 2018.



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