Quando a contribuição da comunidade dá errado
A crise habitacional da Califórnia tem suas raízes no poder de veto de governos e comunidades locais.
Por Ned Resnikoff e Brian Hanlon
Os custos com moradia dispararam em regiões urbanas abastadas dos Estados Unidos e pelo mundo afora, de Seattle a Nova York, de Londres a Hong Kong. O grau zero desse desastre é a Califórnia. A escassez de habitações no estado alcançou níveis de crise nos últimos anos, o que produziu forte desigualdade, declínio populacional e desalojamento em massa. Todos esses fatores derivam do mesmo culpado: uma crônica insuficiência na construção de moradias em relação à população e ao crescimento econômico. O Departamento de Habitação e Desenvolvimento Comunitário (HCD, na sigla em inglês) local estima que o estado precisará construir 2,5 milhões de moradias adicionais até 2030.
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As políticas de uso da terra da Califórnia servem de exemplo para o resto do mundo – como modelo do que não fazer. O principal entrave para erguer essas moradias têm sido governos e comunidades locais intransigentes, que se recusam a promover o zoneamento e a aprovar a construção das moradias que se mostram necessárias. Sua arma mais eficaz é a vetocracia local de uso da terra da Califórnia, metodologia essa que protege o status quo e demanda negociações individuais por projeto com muitos e variados grupos de interesse. O sistema de aprovação discricionária da Califórnia é um dos maiores obstáculos à construção de habitações em larga escala. Ele revela uma história que pode servir de lição acerca de como o respeito incondicional aos intermediadores de poder local e a “contribuição da comunidade” podem gerar consequências perversas.
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A revisão discricionária é exatamente o que parece ser: governos municipais, comissões de planejamento, comitês de circulação, conselhos de revisão de projeto e outros têm o poder discricionário de aprovar ou negar projetos de habitação, independentemente de estarem em conformidade com as normas locais. O bizantino processo de aprovação de moradias em cidades como San Francisco capacita funcionários indevidamente e obriga construtoras a navegar por uma vertiginosa série de etapas até que seus projetos sejam aprovados – se é que chegarão a ser aprovados. O processo varia segundo a cidade e o projeto, mas pode incluir um extenso período para manifestações do público, uma revisão de projeto, uma declaração de revisão de impacto ambiental com várias centenas de páginas, mais observações do público e audiências junto à comissão de planejamento e ao conselho municipal. E ainda supondo que ninguém vá processar a construtora (mais sobre isso adiante).
Esse processo de aprovação pode arrastar a permissão por meses ou anos, ou até a construtora e os financiadores do projeto desistirem. Em Los Angeles leva mais de oito meses para que um projeto proposto obtenha a permissão, de acordo com dados do HCD; em San Francisco, o processo como um todo não raro leva mais de três anos. São três anos passando por espirais burocráticas, até que a construtora finalmente possa iniciar as obras.
Conduzir um projeto dessa forma também demanda muito dinheiro. Como observou o San Francisco Chronicle em 2019, “em geral se requer toda uma miríade de profissionais dispendiosos, incluídos advogados, arquitetos e consultores auxiliares para o uso da terra, projetistas de espaços abertos e lobistas”. A referência a lobistas sinaliza sobre o quanto o sistema de aprovação discricionária atua como um convite à corrupção e afasta construtoras menores, com menos conexões políticas.
O privilégio da vereança – a prática de transferir aos legisladores locais a decisão de aprovar ou rejeitar um projeto proposto no distrito por eles representado – exacerba essa dinâmica. Também piora o processo de segregação habitacional, pois significa que novas unidades ficarão concentradas em distritos com menos influência política ou onde o funcionário encarregado simplesmente se opõe menos a mais moradias.
No entanto, as ações de uns poucos membros do conselho tomadas individualmente desempenham um papel pouco relevante nas mazelas do processo de aprovação discricionária da Califórnia. O problema maior está no sistema de contribuição comunitária do estado, que, apesar do nome, é profundamente antidemocrático.
Como pode a contribuição comunitária ser antidemocrática? Tudo depende da voz que é ouvida. As oportunidades para uma contribuição da comunidade e de caráter pessoal em geral ocorrem em horas impróprias, quando pessoas que trabalham e pais que tomam conta de filhos pequenos estão menos propensos a participar. O resultado, segundo pesquisa realizada pelos cientistas políticos Katherine Einstein, David Glick e Maxwell Palmer, é o de que membros do conselho da cidade e funcionários encarregados do planejamento ouvem desproporcionalmente residentes que são brancos, com mais de 50 anos e que – por uma margem impressionante – são proprietários do imóvel em que residem. É evidente que tais proprietários têm mais incentivos do que os inquilinos para bloquear novos projetos, afinal de contas a escassez de moradias impulsiona o valor de seus imóveis.
E como se a representação exagerada de NIMBYs (acrônimo para Not in My Backyard, “Não no meu quintal”) no processo de debate público não fosse suficiente, pesquisas recentes do cientista político Alexander Sahn revelam que as observações do público que vão na direção contrária à dos novos projetos são duas vezes mais eficazes do que observações que vêm em apoio aos projetos propostos. Fato notável é o de que as descobertas de Sahn valem até mesmo para San Francisco, berço de grande número de bem financiadas comunidades sem fins lucrativos cuja missão é auxiliar pessoas de baixa renda e amparar projetos de habitação acessível.
Cidades têm feito várias tentativas de melhorar a representação nas contribuições da comunidade, e isso inclui medidas como fornecimento de comida e serviço de creche. Durante a pandemia, muitas assembleias públicas passaram a ocorrer pelo Zoom, uma inovação que, alguns especulavam, tornaria o processo mais democrático. Infelizmente, Einstein, Glick, Palmer e a colaboradora Luisa Godinez Puig concluíram serem tais esforços, em ampla medida, vãos.
Apesar dessas desigualdades, várias organizações sem fins lucrativos de viés progressista mantêm silêncio quando o assunto é revisão discricionária ou propõem maior “empoderamento da comunidade” como solução para os problemas habitacionais na Califórnia. Em pequena escala, essa abordagem faz sentido: onde as organizações sem fins lucrativos mantém forte influência política, o processo discricionário dá a elas mais poder para aperfeiçoar projetos individuais – por exemplo, ao garantir que sejam mais ecologicamente corretos ou ao redobrar esforços para obter mais unidades acessíveis subsidiadas. Mas o processo discricionário, ao mesmo tempo em que atua no aperfeiçoamento de um pequeno grupo de projetos, torna muito mais lento o crescimento global em números de moradias, responsável pelos próprios sintomas que essas organizações sem fins lucrativos objetivam curar.
E ainda que um projeto de algum modo esclareça todos os aspectos de veto que acima descrevemos, os NIMBYs sempre podem entrar com alguma ação. Isso se deve em ampla medida à Lei de Qualidade Ambiental da Califórnia (CEQA, na sigla em inglês), que é única na jurisprudência dos Estados Unidos. Qualquer pessoa pode entrar com ação com o intuito de interromper um projeto habitacional sob o CEQA, caso o governo local tenha o arbítrio de aprovar ou negar algum projeto. Essas ações judiciais podem ser financiadas de maneira anônima, frequentemente por negócios concorrentes ou por sindicatos de trabalhadores em busca de um projeto de contrato de trabalho, podendo não estar relacionados com preocupações ambientais.
Abolindo a Vetocracia
A Califórnia tem o poder de abolir a vetocracia ao uso de terras. Grande parte do mundo desenvolvido e democrático aprova o desenvolvimento das políticas habitacionais pela via ministerial ou “por direito”: se um projeto proposto se conforma ao zoneamento local, aos códigos de edificação e a outras exigências legais, os funcionários públicos então emitem licenças de construção. Os representantes eleitos não têm voz sobre projetos individuais que estão em conformidade com as normas locais.
Um sistema de aprovação ministerial é transparente. Os funcionários públicos aprovam ou rejeitam projetos e documentam seu conjunto de razões para análise pública. As construtoras não precisam contratar lobistas dispendiosos nem fazer doações à campanha de reeleição de algum membro do conselho da cidade para ter seus projetos aprovados; elas precisam apenas se conformar às normas.
Os proponentes do processo de ação comunitária alegam que esse trâmite é mais democrático do que as aprovações ministeriais e que o sistema discricionário empodera vozes marginalizadas. O consenso científico social, no entanto, é o de que a análise discricionária confere peso desproporcional à voz de uma minoria abastada. Por contraste, um processo ministerial se baseia em leis promulgadas por representantes devidamente eleitos. Ao escolher as pessoas que autorizam em última instância o planejamento geral de uma cidade – e que participam do esboço desse planejamento vinculativo –, o público efetivamente adquire uma voz mais potente em aprovações ministeriais. Os membros da comunidade podem julgar representantes eleitos com base nos resultados do planejamento, o que produz uma responsabilização democrática. Além do mais, a contribuição pública torna-se mais fácil e mais acessível quando uma cidade convoca grandes assembleias para assinar um único projeto plurianual do que quando se tem um sem-número de “prefeituras” menores para cada proposta de construção individual.
Em um artigo recente, Anika Singh Lemar, professora da Yale Law School, propõe um vantajoso modelo para um regime de uso da terra democrático e discricionário. Segundo o sistema de Lemar, a participação pública seria requerida durante o planejamento municipal, “incluindo adoções e revisões de planos abrangentes, códigos e mapas de zoneamento”. Mas a aprovação de projetos individuais se daria por direito, o que contorna um dos principais obstáculos a tornar nossas cidades mais inclusivas e acessíveis.
Países com bom funcionamento de mercados imobiliários, como a Alemanha, adotam aprovações de habitação por direito. Na verdade, a Alemanha facilita a obtenção de uma permissão de moradia, e isso contribui para a notável estabilidade de preços de habitações no país. Na Inglaterra, por outro lado, o caso é bem parecido com o da Califórnia. Tudo está aberto a negociação e, como resultado, há uma brutal escassez de moradias, enquanto para os custos com habitação o céu parece ser o limite.
Construir e obter financiamento acessível de moradia é também mais fácil com um sistema de direito. Em vez de sujeitar as construtoras a demandas caprichosas por benefícios comunitários, um acordo num sistema de direito poderia utilizar incentivos para construir moradias acessíveis subsidiadas de forma direta e consistente. As cidades poderiam aprovar mudanças de zoneamento como os 100% de sobreposição de moradias acessíveis (mudanças de zoneamento que permitem às construtoras construir em alturas ou densidades maiores para edificações que consistirão inteiramente de unidades acessíveis) ou mesmo financiar a criação de moradias sociais.
No âmbito do movimento YIMBY (acrônimo para Yes in My Backyard, “Sim no meu quintal”) da Califórnia, um fio condutor comum a perpassar nosso trabalho está na insistência em normas estaduais claras, com alguma flexibilidade local, a enfatizar resultados equitativos ao longo de um processo contínuo. Por exemplo, o esforço do YIMBY da Califórnia em legalizar unidades de habitação acessórias (ADUs, na sigla em inglês), como uma garagem independente que o proprietário de uma casa converteu em morada para alugar, ajudou a cercear atividades locais lesivas e levou a uma explosão na construção dessas unidades de habitação acessórias, que hoje respondem por cerca de 25% de todas as permissões em Los Angeles. Uma emenda à Lei de Acessibilidade de Moradia, pela qual lutamos em 2017, tem acelerado as autorizações de moradia, ao mesmo tempo que são concedidos benefícios especiais a projetos de habitação 100% acessíveis.
Como atestam os elevadíssimos preços de moradias, locatários a arcar com pesados encargos e a quantidade de pessoas sem teto, temos muito trabalho a fazer. Esse trabalho não terminará até que aceleremos a construção de casas em grande escala e rejeitemos o processo discricionário de autorização de moradia. Os que necessitam de acesso à habitação não podem esperar.
OS AUTORES
Ned Resnikoff é diretor de políticas do movimento YIMBY da Califórnia, no qual atua na construção da agenda política de longo prazo da organização, cujo objetivo é tornar as cidades da Califórnia acessíveis, inclusivas e neutras em carbono.
Brian Hanlon é presidente e CEO do movimento YIMBY da Califórnia.