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Lidando com o racismo e novas lideranças em tempos difíceis

Líderes não brancos que sucedem fundadores brancos enfrentam um conjunto único de desafios e trazem novos benefícios, particularmente numa época de crises culturais e sociais generalizadas

Por Michelle Rhone-Collins

A CEO da LIFT, Michelle Rhone-Collins, na reunião ThinkXChange 2019 do Aspen Institute: Advancing Family Prosperity.

 

Para dizer o mínimo, vivemos um momento histórico para alguém que vá encarar um novo papel de liderança no setor social. Em 2019, tive a honra de ser escolhida como diretora-executiva da Lift, uma organização sem fins lucrativos que visa interromper os ciclos geracionais de pobreza e criar prosperidade familiar. Os nossos escritórios em Nova York, Chicago, Washington e Los Angeles oferecem formação financeira, educacional e profissional integradas, além de fazerem distribuição direta de recursos em dinheiro, para apoiar objetivos de pais de família, para si próprios ou seus filhos. Sucedi, nesse posto, a fundadora da Lift, Kirsten Lodal, que dedicou 20 anos à construção da ONG e ao desenvolvimento de sua abordagem única, que dá importância ao bem-estar financeiro, social e pessoal. Desde então, enfrentamos a pandemia de covid-19 e uma revolta racial sem precedentes, que se somaram à infalível  injustiça letal que afeta as comunidades com as quais a Lift tem mais parcerias.

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Sob muitos aspectos, a transição foi executada com habilidade, a começar pelo entusiasmo do conselho em criar espaço para uma líder negra assumir o comando. Eu já fazia parte da ONG e, embora Kirsten cultivasse e defendesse minha liderança, para conquistar o cargo, passei por um intenso processo de triagem liderado pelo conselho e por uma empresa de busca de executivos. O processo também teve um prazo longo até se concluir –  a organização passou mais de dois anos planejando e implementando a transição de forma a garantir que fosse bem-sucedida. Isso incluiu desenvolver uma estratégia para aumentar o impacto programático; envolver-se no trabalho de diversidade, equidade e inclusão (DEI); angariar grandes investimentos de doadores; diversificar o conselho e fortalecer suas práticas. Além disso, um planejamento cuidadoso para a transferência de confiança nas relações com os doadores fez com que alguns financiadores investissem efetivamente na transição. Finalmente, em vez de ocupar um lugar no conselho, impondo deferência na tomada de decisões estratégicas, Kirsten assumiu um papel consultivo, fornecendo-me sugestões e apoio.

No entanto, transições são complicadas por natureza, e a Lift também teve sua cota de desafios. É inevitável que a sucessão na liderança de uma organização gere rotatividade. Quando um fundador deixa o cargo, outros líderes sêniores também tendem a ir embora – seja para finalmente iniciar um novo negócio, passar mais tempo com a família ou buscar um próximo passo profissional. Também é comum que  financiadores limitem seu apoio entre a transição e o primeiro ano do novo CEO – bem quando, de modo geral, ele é mais necessário para a organização.. Essa prática questionável agrava os desafios de financiamento para os líderes negros, que, nos EUA, recebem insignificantes  4% de todos os recursos de filantropia.

 

O impacto da cor e do preconceito racial nas transições de liderança

 

Se todas as transições representam desafios, preconceitos estruturais no setor impõem complexidades adicionais quando uma organização faz a transição de um líder branco para um não branco. Líderes negros não só recebem significativamente menos financiamento do que os brancos, mas também têm menos acesso a redess informais, íntimas e poderosas de doadores. Por exemplo,  podemos não integrar as mesmas associações de ex-alunos, ou partilhar de ligações familiares, normas e práticas culturais que possam acelerar ou aprofundar relacionamentos. Também somos vistos com mais ceticismo. Enfrentamos mais obstáculos para garantir menos financiamento do que nossos pares brancos, que muitas vezes conseguem compromissos maiores e plurianuais, incluindo investimentos de “grande aposta” frequentemente destinados a empreendedores sociais. Também somos mais cobrados por responsabilidade, expectativa e escrutínio. Temos pouco espaço para falhar sem que nossa liderança seja alvo de questionamentos. Em paralelo, outras pessoas de cor dentro de nossas organizações enfrentam o negativo “efeito halo” [ou seja, são vítimas da tendência humana de julgar algo ou alguém com base em uma única característica]. Uma colega uma vez me disse: “Sinto que se cobra muito mais de mim do que de um CEO qualquer porque sou uma mulher negra”; de um alto executivo negro, escutei “não deixe sua equipe delegar coisas a você”. Ou dito de outra forma, não deixe que exijam mais de você enquanto líder pelo fato de ser uma pessoa de cor.

O acúmulo de crises – uma recessão profunda, a pandemia e a agitação racial –  deixaram ainda mais evidente como a  dinâmica da desigualdade se desenrola para os executivos de organizações sem fins lucrativos. O discurso público de líderes brancos sobre a desigualdade e a necessidade de mudança costuma ser visto sob um prisma heroico. Mas muitos – inclusive aqueles que têm poder de decidir financiamentos – penalizam líderes negros por se posicionarem contra as injustiças que afetam nossas próprias comunidades.

Senti o peso desse julgamento na minha própria resposta às crises. O curativo que cobria a ferida purulenta da escravidão foi arrancado e, como outros líderes negros, a dor que sinto é quase insuportável. Dias de inspiração são intercalados com outros de profunda tristeza, raiva e exaustão. Já acordei chorando e com vontade de me esconder. Mas também prestei atenção às palavras da escritora e ativista Audre Lorde: “Quando me atrevo a ser poderosa, a colocar minha força a serviço da minha visão, meu medo se torna cada vez menos importante”. Ousei usar meu poder e posição para falar contra o repetido e flagrante desrespeito dirigindo às pessoas não brancas que são nossos parceiros na Lift. Em resposta ao assassinato de George Floyd, escrevi uma declaração explicando como o trabalho da ONG para promover justiça econômica fazia parte de um esforço mais amplo – e necessário – para desmantelar o racismo estrutural. Ao lê-lo, um doador de longa data procurou Kirsten, que já havia se tornado consultora, reclamando da declaração “racializada” e me repreendendo indiretamente por falar a verdade. Kirsten respondeu reafirmando cada palavra do que disse e defendendo minha liderança, mas essa interação ilustra de forma exemplar o tipo de afrontas pessoais e profissionais que ameaçam o empenho dos líderes negros por firmar sua voz.

 

Os benefícios da representação equitativa na liderança

 

A representação equitativa na liderança traz benefícios notáveis e, dado que apenas 10% dos CEOs de organizações sem fins lucrativos são negros, sinto-me profundamente honrada em representar comunidades que muitas vezes não conseguem um lugar a essa mesa. Conseguimos nos identificar com a experiência dos que vivem nas comunidades que atendemos por sabermos na pele o que é enfrentar a discriminação e o preconceito. Isto influencia a nossa capacidade de abordar diretamente questões de equidade. No meu caso, desde o processo de entrevistas para o cargo. Falei sobre a importância de ligar o trabalho da Lift com a dolorosa história da escravidão, as leis de segregação racial em espaços públicos, o “redlining” que discrimina potenciais clientes de serviços que moram em locais considerados “perigosos” e outras práticas e políticasque usurpam riqueza que estão no cerne da atualdivisão racial e econômica no país. Também incentivei a equipe a colocar a equidade racial de forma mensurável no centro de tudo o que fazemos, incluindo escolha de nomes para o conselho, treinamento de pessoal, concepção e avaliação de programas e estratégias de comunicação. Minha visão de crescimento e escala é motivada pela responsabilidade que sinto de alcançar milhões de pessoas não brancas que ainda vivem na pobreza nos Estados Unidos.

A representação também é importante para os membros mais jovens da equipe, dando-lhes um modelo que lhes permita  se verem em funções de liderança no futuro. Minha equipe expressou repetidamente o quanto significa para eles ver sua identidade refletida em sua CEO. Na verdade, um estudo do Building Movement Project, “Race to Lead Revisited”, mostrou que pessoas não brancas tiveram pior desempenho em organizações com CEOs brancos – com menos oportunidades de aumentos, promoções e mentores, apesar das qualificações iguais – enquanto funcionários de todas as cores tiveram melhor desempenho sob o comando de CEOs não brancos.

Durante esse período de múltiplas crises, essa proximidade também me fez mais consciente do que minha equipe vive e absorve, na medida em que eu também supero esse trauma. Ao mesmo tempo que prestavam apoio às comunidades pretas e pardas mais atingidas pelos impactos da pandemia, também lidavam com perdas pessoais e traumas indiretos ao assistirem – repetidamente – à violência infligida a pessoas com as quais se identificavam, em termos de raça. Por isso, comprometi-me a fornecer apoio empático a todos os funcionários. Organizamos rituais que levavam em conta diferentes culturas, como rodas de conversa, para criar espaços de conexão e cura; encorajamos o com ofertas generosas de folgas remuneradas e horários flexíveis; e dei o exemplo eu mesma, cuidando de mim através da conexão que estabeleci com pessoas que compartilhavam da minha experiência.

 

Apoiando líderes não brancos durante transições

 

Líderes não brancos que assumem a sucessão de fundadores brancos e aqueles que os apoiam devem dar atenção a questões sistêmicas ao mesmo tempo que trabalham para corrigir a desigualdade racial. Eis algumas práticas que podem ajudar.

  • Junte-se a uma comunidade prática. Por exemplo, tive o privilégio de participar de um grupo criado para dar apoio a líderes não brancos com maior experiência para que construíssem negócios de sucesso, o que incluía acesso ampliado a redes de doadores. O programa, oferecido pela Fundação Kresge e ProInspire, funciona como espaço seguro para a cura, para nutrir uma liderança autêntica e para práticas de autocuidado. Também me dediquei ativamente a procurar outros líderes negros, dando-lhes espaço para que desabafassem e se sentissem compreendidos, encontrando consolo em saber que não estão sozinhos em sua experiência. Essas conversas permitem partilhar conhecimentos e recursos, coordenar esforços e construir o poder necessário para desafiar o status quo.

  • Dê nome aos bois. Os efeitos desproporcionalmente prejudiciais da pandemia e da brutalidade policial sobre as pessoas não brancas expuseram um fato: os sistemas que deveriam servir e proteger todos os americanos baseiam-se numa falta fundamental de confiança nas comunidades não brancas e num desrespeito pela sua dignidade e humanidade. Em meio ao crescente reconhecimento das barreiras estruturais que os líderes não brancos enfrentam no setor sem fins lucrativos, fui encorajada a nomear abertamente essa dinâmica. Isso significou chamar a atenção para a discrepância no financiamento, a falta de acesso ao avanço profissional e as expectativas elevadas ao conversar com membros do conselho, financiadores e outros que podem usar o seu poder e privilégio para corrigir o desequilíbrio. Essa atitude me ajudou a defender o investimento na missão da Lift e na minha liderança e, em geral, aprofundou o respeito, resultou em relações mais fortes e num maior sentido de propósito entre todas as partes.

  • Aumente o investimento filantrópico. Os primeiros dias de qualquer novo líder em uma organização sem fins lucrativos são repletos de preocupações com a arrecadação de fundos, mas ainda mais para os novos líderes não brancos. No meu caso, foram de grande alento e inspiração esforços filantrópicos como a estratégia de Impacto Inclusivo da New Profit, que visa aumentar o financiamento, fornecer apoio estratégico e construir uma comunidade com e para empreendedores sociais não brancos. Além disso, financiadores como a Fundação McCance vêm assumindo compromissos explícitos de fornecer financiamento plurianual para organizações sem fins lucrativos que tenham líderes não brancos.

Foi um momento incrível para aceitar um chamado de liderança, especialmente como mulher negra. Ao lado de outros desafios normativos comuns em uma sucessão – como esclarecer minha visão, estabelecer presença, diferenciar lideranças, gerir operações comerciais e construir uma cultura organizacional –, tive de enfrentar os ventos contrários do preconceito. A pandemia e os protestos generalizados contra a violência racial transformaram esses ventos num furacão. Mas, ainda assim, no olho dele há certa calma. Nesse espaço podemos imaginar, recriar e desmantelar coletivamente sistemas de opressão arraigados, adotando medidas ousadas. Vidas negras são mais que importantes; nossas vidas, experiências e vozes – perspectivas, inovação e brilhantismo – são essenciais para provocar uma verdadeira mudança sistêmica e justiça social. O apoio amplo e o investimento em lideranças negras  podem ser o vento de que precisamos para criar uma sociedade mais igualitária para todos.

A AUTORA

Michelle Rhone-Collins é CEO da Lift (@Liftcommunities), organização sem fins lucrativos que trabalha para quebrar ciclos intergeracionais de pobreza e construir  prosperidade familiar. Ela defende a combinação de esperança, dinheiro e amor de que todos nós precisamos para alcançar o sucesso em nossas vidas.



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