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O direito à desconexão

A conectividade constante prejudica o equilíbrio entre vida pessoal e profissional e a saúde mental dos empregados. Uma melhor política trabalhista e uma legislação para o trabalho remoto podem ajudar a atender às necessidades das pessoas e das organizações. A desconexão é também essencial.

Por Sabrina Pellerin, Ariane Ollier-Malaterre, Ellen Ernst Kossek, Marie-Colombe Afota, Luc Cousineau, Charles-Étienne Lavoie, Emmanuelle Leon, Barbara Beham, Gabriele Morandin, Marcello Russo, Ameeta Jaga, Jichang Ma, Chang-qin Lu e Xavier Parent-Rocheleau

Ilustração de Matt Chase

Há alguns anos, os trabalhos remoto e híbrido  têm apresentado resultados paradoxais para a autonomia dos trabalhadores do conhecimento e para o equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional. A conectividade constante dá a eles maior controle sobre onde e quando exercem suas funções, mas confunde os limites entre trabalho e vida. Isso pode resultar em muito mais horas de trabalho do que no escritório e no aumento do estresse dada a incapacidade de se desconectar. Esse paradoxo tornou-se evidente a partir da pandemia de Covid-19, quando o trabalho remoto e o total de horas trabalhadas aumentaram no mundo todo, o que ocasionou a deterioração da saúde mental dos trabalhadores.

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Um número crescente de países, como Canadá, França e Holanda, começou a ocupar-se com as potenciais desvantagens da constante conectividade durante e após o expediente e a refletir sobre como preservar a saúde mental e promover o equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal ou que melhorias sociais poderiam resultar de respostas a esses desafios e trazer benefícios duradouros não só aos trabalhadores, mas também a todo o seu entorno.

Algumas medidas visam indivíduos, outras focam em organizações ou populações. Em nível individual, “acordos de flexibilidade” (I-deals), ou “acordos idiossincráticos”, baseiam-se na negociação individualizada para determinar o equilíbrio entre vida profissional e pessoal e a conectividade para cada trabalhador. Tais acordos são muitas vezes a abordagem mais comum nas organizações. Mas pesquisas mostram que os I-deals apresentam riscos potenciais, como insatisfação dos colegas de trabalho e dificuldades na coordenação da equipe. Além disso, podem minar medidas de flexibilidade equitativas, porque apenas os mais privilegiados conseguem obtê-los.

Em nível organizacional, algumas empresas impõem restrições na comunicação para garantir que as pessoas se desconectem do trabalho. Em 2011, a direção da Volkswagen e representantes sindicais assinaram um acordo histórico que bloqueou o acesso a e-mails em smartphones entre 18h15 da tarde e 7h da manhã para funcionários na Alemanha sob contratos negociados por sindicatos. A regra não se aplicava à alta administração. A multinacional alemã de bens industriais e de consumo Henkel estabeleceu uma “anistia de e-mails” durante a semana entre o Natal e o réveillon de 2012, e a francesa Atos anunciou, em 2011, sua intenção de se tornar uma empresa de “zero e-mails” até 2014. Essas abordagens dão aos empregadores e aos representantes sindicais total poder de decisão sobre quando os empregados vão se desconectar e geralmente são implementadas por meio de um software que bloqueia a transmissão de e-mails.

Em nível nacional, governos propuseram leis sobre o direito à desconexão, liberando os trabalhadores de responder comunicações após o expediente. Os benefícios esperados estendem-se do indivíduo à sociedade e têm o potencial de proporcionar maior senso de controle sobre o equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Ter o direito de se desconectar dá às pessoas a liberdade de recusar demandas sem medo de represálias. Também pode reduzir o estresse, o que garante melhor recuperação entre os turnos e ausência de penalidades para aqueles que precisam se desconectar para tratar de assuntos familiares. Esses benefícios podem se estender a filhos e dependentes adultos, que são as partes interessadas invisíveis nas condições de trabalho dos empregados. Por fim, ajudam a reduzir o ônus sobre o sistema de saúde por preservar a saúde mental dos empregados.

França, Espanha, Bélgica e Portugal, entre outros países, adotaram legislações sobre esse direito e o Parlamento Europeu pediu seu amplo reconhecimento como um direito fundamental.

A legislação pioneira da França, de 2017, demonstra como a consagração desse direito pode ajudar a superar os desafios da conectividade constante. Inicialmente, o direito à desconexão era um acordo coletivo antes de evoluir para uma lei que deu liberdade de ação significativa aos empregadores. A França estabelece que organizações têm a obrigação legal de negociar com representantes dos empregados a definição de “procedimentos para o pleno exercício pelo empregado do seu direito de desconexão e o estabelecimento pela empresa de mecanismos para regular o uso de ferramentas digitais com vistas a assegurar o respeito aos períodos de descanso e licenças, bem como à vida pessoal e familiar”. A lei assim reconhece porque as demandas e contextos de trabalho variam e a aplicação desse direito na política organizacional precisa ser específica de cada organização.

Além disso, estabelece que organizações com 50 empregados ou mais devem negociar com seus representantes sindicais e elaborar uma política de implementação dentro de determinada organização. Essa política deve garantir que os trabalhadores se beneficiem do tempo de afastamento do trabalho – 11 horas, com algumas exceções – para descansar, tirar férias e contribuir para sua vida pessoal e familiar. Se um acordo sobre uma política formal não puder ser alcançado, as organizações devem, então, trabalhar com representantes sindicais para instituir uma regulamentação que ofereça diretrizes e princípios internos sobre desconexão, bem como treinamento e programas de comunicação para aumentar a conscientização sobre o direito de estar offline.

Essa abordagem tem limites. Embora a lei consagre o direito de desconexão como política de empresas, ela não impõe sanções àquelas que o desrespeitam. E, quando não existem sanções efetivas, o ímpeto para mudanças é baixo. Um estudo de 2021 realizado pela empresa de segurança cibernética Kaspersky, pela empresa de análise Kantar e pela revista L’ADN descobriu que a maioria dos empregadores franceses não instituiu tal política. Consequentemente, a relutância em cumprir a legislação laboral num país com sindicatos fortes e proteções trabalhistas aumenta as dúvidas sobre a eficácia da legislação.

Além disso, essa legislação nacional de desconexão tem como premissa regimes de trabalho ultrapassados, especialmente o tradicional “horário das 9 às 5”. As pessoas hoje em dia costumam trabalhar em grupos virtuais, incluindo equipes em vários fusos horários. A Mastercard estima que 78 milhões de pessoas trabalharão na gig economy global em 2023, e elas dependem de plataformas de internet para planejar e acessar suas próximas tarefas. Regimes de trabalho flexíveis, híbridos, remotos e com mudança de horário foram normalizados durante a pandemia de Covid-19. Portanto, a legislação atual pode não abordar efetivamente essas questões de trabalho remoto e hiperconectividade.

O direito de desconexão pode se tornar uma inovação social e servir como trampolim para o desenvolvimento social positivo? O que pode ser feito para aumentar sua utilidade e aplicabilidade para além do indivíduo no mercado de trabalho atual? Como estudiosos organizacionais da Rede Internacional de Tecnologia, Trabalho e Família (INTWAF, na sigla em inglês), entendemos que os locais de trabalho de hoje e as necessidades dos trabalhadores devem ser considerados, além de beneficiar a sociedade. Defendemos um direito de desconexão efetivo, que funcionaria como uma salvaguarda compartilhada, para alcançar uma reformulação do valor social da conectividade e equilíbrio entre vida profissional e pessoal. O valor criado seria distribuído para diversas partes interessadas em vez de apenas para organizações ou grupos específicos de empregados. Essencialmente, a próxima geração desse direito – o direito de desconexão 2.0 – proporcionaria os benefícios de acordos flexíveis (considerando necessidades individuais e preferências), iniciativas organizacionais (adaptando a implementação à cultura e às normas de diversos locais de trabalho) e uma abordagem legal (ampla cobertura para o direito) que promoveria a equidade dentro e entre contextos.

 

Desconexão 2.0

 

Equilíbrio entre vida profissional e pessoal é a capacidade de se envolver de forma eficiente e positiva nos papéis de trabalho e vida que são importantes para uma pessoa. Para estruturar o debate sobre a próxima geração do direito de desconexão, portanto, sugerimos três princípios fundamentais: a garantia de acesso a tal direito, a obtenção de um ajuste entre políticas e culturas organizacionais e normas vigentes e o reconhecimento de  uma variedade de preferências individuais na elaboração de uma política de desconexão.

PRINCÍPIO 1: Inclusão | Um direito deve ser acessível a todos. Mas muitas leis atuais excluem alguns grupos de empregados desse direito ou não garantem o acesso a ele por causa de restrições ocupacionais. Por exemplo, em 2022 a província de Ontário, no Canadá, aprovou uma legislação que exigia uma política sobre desconexão por escrito para empregadores com 25 empregados ou mais. Trabalhadores de organizações menores ou empregados em empresas sob regulamentação federal estão excluídos, uma vez que a lei se aplica apenas a locais de trabalho regulamentados por províncias.

Outra armadilha de confiar apenas na legislação de desconexão refere-se às lacunas de cobertura de políticas para trabalhadores da economia informal que estão desprotegidos ou menos protegidos pelas leis de trabalho e emprego.

Gerentes de nível mais baixo também enfrentam exclusão em potencial. Embora possam estar incluídos nas políticas, suas funções laborais geralmente envolvem disponibilidade para seus subordinados diretos, o que impossibilita a desconexão. Em Ontário, o direito de desconexão deve incluir todos os empregados, mas o fato de que as políticas podem ser concebidas de forma diferente para cada tipo de trabalho também pode promover acesso desigual.

As evidências mostram que os gerentes de nível inferior são particularmente vulneráveis ao conflito entre vida profissional e saúde mental precária. Uma explicação é que ocupam posições contraditórias: seus empregos têm um nível limitado de autoridade formal, mas são supervisionados por superiores na administração. Uma política exequível deve adequar suas demandas de trabalho e garantir-lhes algum grau de desconexão. De outro modo, podem sofrer frustração por terem de implementar um direito para seus subordinados, embora não se beneficiem dele.

A pesquisa de um membro do INTWAF revela que os gerentes de primeira linha se sentem em desvantagem quando percebem que suas próprias condições de trabalho são menos generosas ou equitativas que as condições que devem oferecer aos seus subordinados, como supervisão e a compensação por horas extras. Tais lacunas podem levar à rotatividade e enfraquecer a capacidade de uma organização de atrair talentos.

Além disso, mesmo que estejam cobertos pela legislação de desconexão, alguns trabalhadores podem não ser capazes de colher seus benefícios. Aqueles empregados na linha de frente do setor de serviços, como enfermeiros e outros profissionais de saúde, estão sujeitos a frequentes mudanças de horários e turnos, especialmente se forem obrigados a estar de plantão e disponíveis a qualquer momento em caso de emergência – e isso torna quase impossível para eles se desconectarem sem temer uma penalidade ou sentir a culpa de saber que os pacientes não estão sendo cuidados.

Em suma, a diversidade do trabalho em todo o mundo mostra que o direito à desconexão não é universal, nem pode ser aplicado igual ou uniformemente. Essa discrepância exige duas melhorias: em primeiro lugar, os esforços legislativos não devem visar exclusivamente trabalhadores com carteira assinada em grandes organizações; em segundo, a legislação deve ser complementada com iniciativas organizacionais e outras iniciativas coletivas para proteger esse direito para todos os trabalhadores.

PRINCÍPIO 2: Alinhamento Cultural | A implementação do direito de desconexão pode variar amplamente, dependendo dos contextos e culturas organizacionais. Um relatório da Eurofound, de 2021, examinou uma série de práticas de desconexão adotadas por organizações, incluindo regras rígidas como impedir a troca de e-mails fora da jornada de trabalho. No entanto, as mídias sociais e outras ferramentas de mensagens instantâneas podem tornar irrelevantes ou insuficientes tais iniciativas organizacionais para restringir a tecnologia. Outras práticas focam na educação dos trabalhadores e gerentes sobre os benefícios da desconexão, em vez de imporem restrições. Ambas as abordagens, no entanto, vão funcionar apenas se as organizações criarem uma cultura que apoie a desconexão, em lugar de penalizar trabalhadores que dela tirem vantagem. As expectativas culturais em torno do trabalho e o vício em tecnologia digital tendem a complicar a eficácia de tal legislação de desconexão.

As expectativas culturais e a dependência digital se somaram para estabelecer normas aceitáveis de disponibilidade estendida após o expediente, nos fins de semana e nas férias. Até mesmo quem trabalha de forma remota sente a necessidade de compensar a falta de tempo presencial com maior percentual de respostas a mensagens de trabalho. Quando percebem que sua organização valoriza a integração da vida profissional – como levar trabalho para casa –, essas pessoas se revelam menos capazes de se desligar do trabalho, mesmo se preferissem fazê-lo.

No entanto, a política de desconexão será eficaz somente se for consistente com a cultura organizacional e as expectativas implícitas sobre disponibilidade e desempenho. Caso contrário, uma massa crítica de trabalhadores pode não atender às novas normas. Portanto, se as normas de uma organização valorizam longas horas de trabalho e disponibilidade em todos os momentos, a política de desconexão deve ser incorporada a um programa de mudança organizacional muito mais amplo em direção ao trabalho sustentável. Embora a política vise mudar a cultura de trabalho das organizações, pode não ser capaz de promovê-lo sem mudanças culturais e de mentalidade substanciais.

PRINCÍPIO 3: Preferência Pessoal | Por fim, o direito de desconexão está sujeito à preferência e à situação pessoal. Ao deliberarem sobre desconexão, os trabalhadores normalmente têm ao menos uma das seguintes perspectivas em mente:

“Quero me desconectar porque vejo benefícios para mim.” | Se os trabalhadores constatam um benefício pessoal na desconexão, eles podem considerar esse direito como desejável. Um estudo de 2019 feito por membros da INTWAF identificou quatro motivações que impulsionam a decisão individual de desconectar-se: melhorar o desempenho da função (por exemplo, melhorar o foco tanto no trabalho quanto fora dele); estabelecer uma filosofia digital pessoal (por exemplo, controlar seus dispositivos em vez de ser governado por eles); minimizar comportamentos sociais indesejáveis (por exemplo, evitar tratar os outros desrespeitosamente); e proteger as próprias prioridades (por exemplo, estar disponível para os familiares).

Curiosamente, esse estudo demonstrou que o desejo de se desconectar decorre de uma necessidade não apenas de obter controle sobre tempo e espaço pessoais, como também de recuperar o foco e a concentração no trabalho. Assim, a desconexão pode ser vantajosa tanto para trabalhadores como para organizações.

Dessa maneira, as políticas organizacionais que restringem as expectativas sobre disponibilidade e conectividade podem dar aos empregados espaço para se desconectarem. Essas políticas ainda podem desfazer o estereótipo do trabalhador ideal que está sempre disponível e disposto a priorizar o trabalho sobre sua vida pessoal. Por exemplo, uma política que determina ser aceitável ou mesmo ser encorajado não responder a e-mails nos fins de semana pode promover novas normas que “reimaginam” o trabalhador ideal como alguém que pode tirar folgas sem parecer pouco profissional ou improdutivo.

“Desconectei, mas ainda penso no trabalho.” | Algumas organizações implementaram o direito de desconexão ao tornar os e-mails inacessíveis para empregados após o horário comercial, para que estes pudessem restabelecer limites entre trabalho e vida pessoal. As evidências mostram que reduzir as demandas de comunicação pode diminuir as interrupções do tempo pessoal. No entanto, simplesmente restringir o acesso ao trabalho pode não impedir que os empregados sofram estresse se as cargas de trabalho forem altas e/ou se os locais de trabalho ainda esperarem respostas rápidas como prova de que os empregados estão trabalhando. A impossibilidade percebida de desligar-se do trabalho é uma questão pouco abordada nas discussões sobre desconexão.

Além disso, a incerteza de um empregado sobre a forma como um empregador pode reagir a sua demora em responder a uma mensagem instantânea ou a um e-mail pode levar a sentimentos de insegurança no trabalho. Uma política poderia enfrentar esse desafio determinando com clareza e mantendo as expectativas sobre a disponibilidade dos empregados e a gestão de cargas de trabalho individuais. O apoio organizacional ao direito de se desconectar seria delinear expectativas sobre, por exemplo, o percentual de resposta para cada e-mail e a flexibilidade sobre a produção ou desempenho do trabalho quando a carga de trabalho é excepcionalmente alta.

“Não quero ser forçado a me desconectar porque preciso de flexibilidade para concluir o trabalho depois do expediente.” | Quando o direito de desconexão se torna uma determinação, isso prejudica o arbítrio dos empregados de escolherem se desconectar. As organizações que optam por uma abordagem que obriga a desconexão – por exemplo, desativando o e-mail após o expediente – retiram dos empregados o arbítrio ao exercício desse direito.

E se os horários dos trabalhadores, por exemplo, não coincidirem com o tradicional expediente das 9 às 5? Ou se eles preferirem misturar trabalho e vida, em vez de segmentá-los de acordo com a política de uma organização? A incompatibilidade entre dispositivos legais que pressionam os trabalhadores a fazer uma segmentação entre trabalho e vida e o gerenciamento dos limites reais de suas preferências pode causar problemas, incluindo menor satisfação e comprometimento organizacional.

Alguns empregados cujos horários ideais para trabalhar não se alinham com o dia de trabalho das 9 às 5 podem achar difícil cumprir a desconexão obrigatória.

Equilibrar cuidados infantis e trabalho tornou-se particularmente desafiador durante a pandemia de Covid-19, quando os lockdowns forçaram escolas e creches a fechar e pais – sobretudo mulheres, que carregam o peso do cuidado infantil e do trabalho de cuidado em geral – a gerenciar, cuidar e até mesmo ensinar seus filhos durante a jornada de trabalho. Como resultado, um número significativo de mulheres teve de largar o emprego em parte por causa de suas responsabilidades com os filhos.

Essas interseções entre trabalho e vida são úteis quando reconsideramos o que queremos dizer com desconexão. Será que significa impor barreiras tecnológicas que impossibilitam o acesso noturno ao e-mail? Será uma política geral que se aplica a todos os membros de uma organização ou pode ser modificada de diferentes maneiras para atender às diversas necessidades de uma força de trabalho? Uma vez que um dos principais objetivos das leis de direito de desconexão é proporcionar aos empregados que descansem entre as jornadas de trabalho, o desafio é estabelecer flexibilidade sem criar também inflexibilidade. Confiar aos empregados a gestão de seu tempo de trabalho de maneira que possibilite equilíbrio e desempenho – dentro da estrutura das diretrizes organizacionais – pode ser uma forma de enfrentar esse desafio.

“Quero mostrar ao meu empregador o quanto sou dedicado, mas neste momento não posso.” | Um estudo de membros do INTWAF sobre trabalhadores remotos durante a pandemia de Covid-19 constatou que muitos sentiam a necessidade de compensar sua impossibilidade de estar no escritório e sinalizar seu comprometimento sendo ativos em plataformas, como a Microsoft Teams ou Slack, respondendo prontamente a e-mails, ligações e mensagens fora do horário normal de trabalho. Embora a desconexão possa conter a expectativa de disponibilidade constante, ela pode fazer com que os trabalhadores remotos se sintam confusos sobre como demonstrar sua presença virtual e engajamento sem uma atividade digital absoluta. Alguns empregados podem querer fazer isso para mostrar ao gerente que, mesmo remotamente, eles estão cumprindo a jornada e, ainda, trabalhando de forma eficaz. Outros podem querer corresponder às impressões de seus supervisores em uma cultura na qual priorizar o trabalho ainda é esperado e recompensado. Outros também podem fazê-lo porque consideram a dedicação ao trabalho um dever ou porque este é mais gratificante para eles do que outras atividades da vida.

Executivos, gerentes de alto nível e diretores de recursos humanos detêm a maior influência sobre as normas e expectativas culturais que são usadas para medir o valor, a contribuição e o comprometimento dos empregados. Se as normas culturais da organização esperam disponibilidade e conectividade constantes e os empregados são recompensados por aderir a esses comportamentos, a cultura falhará em encorajar a desconexão. E barreiras facilmente contornáveis – das quais os trabalhadores remotos se aproveitarão para mostrar seu comprometimento – também podem minar as intenções da política de desconexão. O fato de que as culturas de trabalho também devem mudar reforça, por sua vez, a necessidade de o direito à desconexão estar previsto na forma legislativa. O direito de desconexão pode melhorar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, permitindo recuperação do trabalho, reduzindo a exaustão e o esgotamento e mitigando a confusão entre limites. Paradoxalmente, também requer motivação por parte dos trabalhadores para que se envolvam em comportamentos adicionais de autorregulação, como a mudança de hábitos para compensar a desconexão obrigatória em seu trabalho. Esse direito também pode levar à introspecção sobre valores e práticas e expor potenciais lacunas entre valores e maneiras pelas quais eles realmente gastam seu tempo e energia. O direito poderia, portanto, de maneira indesejável, transferir aos trabalhadores o ônus de alcançar o equilíbrio e o bem-estar em vez de levar as organizações a enfrentar as principais causas dos problemas de conectividade, como sobrecarga, ausência de limites e expectativas de disponibilidade constante.

 

O Futuro da Desconexão

 

Leis e políticas para superar os desafios de conectividade, proteger os trabalhadores e garantir a desconexão são essenciais para o desenvolvimento de locais de trabalho e sociedades sustentáveis. No momento, as leis implementadas em todo o mundo visam dar aos trabalhadores a opção de se desconectarem após o horário de trabalho. As empresas abrangidas pelas leis devem se comprometer com o estabelecimento de políticas de desconexão, mas os governos não intervêm no conteúdo propriamente dito dessas políticas e não existe sanção por descumprimento. Como resultado, o direito à desconexão tem mostrado resultados mistos porque sua implementação varia consideravelmente, dependendo da vontade dos empregadores.

Em sua forma atual, as leis de desconexão são incapazes de gerar, na prática, mudanças significativas em larga escala. Uma recente pesquisa da plataforma Glassdoor mostrou que empregados franceses continuaram trabalhando durante as férias para corresponder às expectativas dos empregadores e se manter informados sobre o que estava acontecendo no trabalho. Esse exemplo ilustra que os princípios e políticas de desconexão parecem bons no papel, mas ainda são um desafio para serem aplicados na prática. Portanto, essas políticas devem ser implementadas de maneira mais inclusiva, ser mais acessíveis e mais sintonizadas com as realidades atuais de locais de trabalho. Elas também devem ser diversificadas, flexíveis e fundamentadas em pesquisa.

Como será o futuro do direito de desconexão? O que formuladores de políticas e líderes organizacionais podem fazer para garantir que ele crie valor para a sociedade e permaneça em vigor em meio a mudanças nas práticas de trabalho? Identificamos três maneiras pelas quais o direito de desconexão pode ter efeitos mais substantivos e duradouros para as partes interessadas em diversos contextos:

  • Oferecer a possibilidade de adequar as modalidades de desconexão à cultura, estratégia, práticas preferidas, valores e prioridades organizacionais.

  • Certificar-se de que o direito de desconexão esteja disponível e seja concedido a todos os trabalhadores, atentando para a equidade percebida dessas provisões em todas as ocupações.

  • Estar ciente das realidades, perfis, necessidades e preocupações dos trabalhadores sobre desconexão e abordar esses elementos em políticas organizacionais. Dar voz aos empregados para que a desconexão possa ser mutuamente satisfatória.

O direito de desconexão, é claro, não consegue resolver magicamente os problemas causados pela hiperconectividade e pela falta de equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Os lockdowns da pandemia de Covid-19 levaram trabalhadores a questionar o lugar do trabalho em sua vida. Trabalhadores e seus representantes sindicais, gerentes, organizações, pesquisadores e outros membros da sociedade civil precisam debater como os locais de trabalho devem mudar. Para facilitar essa mudança, os governos terão que trabalhar com os diversos grupos interessados para elaborar uma legislação sólida, mas flexível, e consagrar a desconexão como um direito universal e duradouro.

Mais inovações políticas devem ser buscadas para priorizar maior equilíbrio entre a vida profissional e pessoal e saúde mental no trabalho. Por exemplo, especialistas argumentam que a adoção de uma comunicação assíncrona em vez da desconexão após o dia de trabalho pode ser mais útil para lidar com o estresse e os conflitos entre vida profissional e pessoal. As políticas de direito de desconexão devem ser adaptadas para melhor se alinhar às variadas configurações e se adequar às culturas das organizações que afirmam o que é valorizado e esperado dos trabalhadores.

Além disso, a legislação deve ser considerada em conjunto com contextos políticos e econômicos de diferentes países e leis existentes. A Escócia e a Bélgica, por exemplo, aprofundaram o debate ainda mais, ao introduzir a semana de trabalho de quatro dias, tendo em vista que a redução da carga de trabalho é fundamental para carreiras sustentáveis. Uma semana de trabalho mais curta pode ser o complemento necessário ao direito de desconexão.

Enquanto isso, devemos ter em mente que o futuro reserva oportunidades para renovar coletivamente o direito de desconexão para que ele atenda às necessidades de todos e seja amplamente acessível, independentemente do tipo de trabalho ou situação pessoal. Esse debate, sem dúvida, afeta a todos nós.

 

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OS AUTORES

SABRINA PELLERIN é doutoranda em gestão de recursos humanos na University of Quebec.

ARIANE OLLIER-MALATERRE é professora de gestão na University of Quebec e diretora do INTWAF.

ELLEN ERNST KOSSEK é professora emérita Basil S. Turner da Krannert School of Management da Purdue University.

MARIE-COLOMBE AFOTA é professora assistente na School of Industrial Relations da University of  Montreal.

LUC COUSINEAU é pós-doutorando na University of Quebec.

CHARLES-ÉTIENNE LAVOIE é doutorando em psicologia do trabalho e organizacional na University of  Quebec.

EMMANUELLE LEON é professora associada de gestão de recursos humanos na ESCP Business School,  em Paris.

BARBARA BEHAM é professora de psicologia organizacional e gestão transcultural na School of  Economics and Law, em Berlim.

GABRIELE MORANDIN é professor de comportamento organizacional no departamento de gestão da  Università di Bologna.

MARCELLO RUSSO é professor associado de comportamento organizacional da Università di Bologna  e diretor do programa de MBA global na Bologna Business School.

AMEETA JAGA é professora associada de psicologia organizacional na School of Management Studies  na University of Cape Town e bolsista não residente no Hutchins Center for African & African American
Research na Harvard University.

JICHANG MA é doutorando na School of Psychological and Cognitive Sciences, Peking University.

CHANG-QIN LU é professor pesquisador na School of Psychological and Cognitive Sciences, Peking  University.

XAVIER PARENT-ROCHELEAU é professor assistente de gestão de recursos humanos na HEC Montreal.



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