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Filantropia relacional

O setor precisa de uma nova estrutura para construir conexão e confiança com as comunidades que busca servir

Por Kathleen Boyle Dalen e Tracy L. McFerrin

(Ilustração de Brian Stauffer)

A filantropia se encontra em uma relação desconfortável com as comunidades que procura servir. Em parte isso se deve à diferença de poder inerente às relações – patrão-cliente, diretor-subordinado, rico-necessitado – e à desconfiança que isso pode gerar. O legado histórico da desigualdade racial e de gênero também desempenha um papel importante. O mesmo se pode dizer da tendência de as fundações adotarem, no campo, modos de operação unilaterais e isolados das pessoas com quem desejam trabalhar.

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Para melhorar suas práticas, a filantropia precisa investir mais tempo e esforço em seus relacionamentos. O vínculo social e a confiança são a moeda que possibilita o crescimento e a transformação. Eles constroem parcerias duradouras e frutíferas que abrem as portas para a inovação e a cocriação. Oferecem espaço para que a verdade emerja e ilumine problemas negligenciados ou novas oportunidades. Quando as partes somam forças, podem vislumbrar novas soluções para questões que, separadas, não veriam.

Defendemos um novo marco e novas práticas na filantropia que priorizem as relações. Em vez de deixar os relacionamentos fluírem naturalmente, fundações devem construí-los conscientemente, trocando a dinâmica do “você-eu” por uma dinâmica do “nós”. Em vez de deixar o capital mais transformador – o social – ao acaso, o setor filantrópico pode se beneficiar de aplicar à construção e manutenção das relações a mesma disciplina que usa para os processos de “checagem de antecedentes” conhecidos como due dilligence.

 

Desequilíbrio de poder

 

Críticos da filantropia questionam sua capacidade de se colocar como meio apropriado para enfrentar questões sociais mais difíceis. Três fatores desempenham um papel central nessa crítica.

Em primeiro lugar, existe entre fundações e comunidades o desequilíbrio de poder que se instala automaticamente quando se pede dinheiro a alguém. Às vezes, o filantropo é o que vai permitir a um projeto ir adiante ou a uma organização sobreviver. E, ao contrário das empresas com fins lucrativos, doadores não são incentivados a atender aos sinais de seu mercado. Eles podem deixar de apoiar até as organizações mais eficazes sem repercussões negativas.

Em segundo lugar, quem tem poder, e isso inclui filantropos e líderes de fundações, é suscetível a se comportar mal. De acordo com pesquisadores de psicologia social, como Deborah Gruenfeld, pessoas no poder tendem a ser mais desinibidas. Podem ser mais propensas a interromper os outros, a usá-los meramente como um meio para alcançar metas e se mostrarem pouco sensíveis à experiência alheia. Essa sensibilidade reduzida talvez explique o histórico lamentável a filantropia quanto à amplitude e diversidade da participação na resolução de problemas e seu péssimo histórico de financiamento para organizações lideradas por indivíduos negros, indígenas ou minorias em geral.

Em terceiro lugar, a filantropia está presa a uma espiral de vergonha e tem vacilado ao responder às críticas, em vez de buscar reparos significativos.

Tomemos o exemplo da já citada due dilligence. Segundo críticos, esse mecanismo é um exercício de exclusão. Para eles, a fim de que esse desequilíbrio de poder seja corrigido, há que eliminar pessoas com experiência em filantropia que poderiam favorecer ou impor o procedimento. Embora possa se originar de um instinto louvável de prevenir danos futuros, essa proposta também pode limitar uma mudança positiva. Quando a due dilligence é conduzida através da lente da construção de relacionamentos, ela se torna uma oportunidade para compartilhar, de forma ampla, conhecimentos e insights para entender melhor os contornos de desafios específicos.

Recomendamos que a filantropia investigue em que situações práticas específicas, como a due dilligence, causaram danos; que reconheça os erros; que se desculpe; e que busque reparar a relação. Pode parecer mais seguro eliminar completamente uma prática, mas é uma medida pesada que ignora o potencial de aprendizado real. Além disso, denota falta de compromisso com o parceiro, que fica entregue à própria sorte para resolver as coisas. Melhorar a filantropia não deve exigir que se abandonem as melhores práticas sem antes tentar repará-las.

 

Três recomendações

 

Para construir uma melhor forma de trabalhar, a filantropia deve se comprometer com novos hábitos e práticas. Deve tornar-se menos transacional e mais relacional. Para alcançar nossa visão de filantropia relacional, oferecemos três recomendações.

1. Comprometa-se com promover relacionamentos relevantes, imperfeitos, que se refiram a um “nós”. | Propomos a adoção de práticas que nos estimulem a navegar o incômodo desafio de construir relacionamentos por meio das diferenças. Será preciso, para isso, substituir ativamente padrões de “poder e controle” por “sabedoria ecológica e humildade”, como propõe o terapeuta Terrence Real. “[Se] isso se trata de como vamos operar juntos de uma maneira que funcione para os dois, toda uma gama de novas habilidades e novas maneiras de pensar se abre para nós.”

Construir competência e infraestrutura em torno da confiança e da reparação é um primeiro passo crítico no processo. Em sua pesquisa, Frances Frei, professora da Escola de Administração de Harvard, descobriu que as pessoas tendem a confiar em você quando acreditam que estão interagindo com o você real (autenticidade), quando creem no seu discernimento e na sua competência (lógica) e quando sentem que você se importa com elas (empatia). Essa abordagem abre oportunidades para melhorar a compreensão e inovar, repensando descrições de cargos, níveis de pessoal, mentalidades e abordagens de trabalho.

2. Institua práticas que promovam a aprendizagem compartilhada e o compromisso com a melhoria contínua. | As competências de relacionamento são concretas e observáveis; eles podem ser sentidos e rastreados. Sabemos que o que medimos é o que realizamos, por isso vamos acompanhar e aprender com as práticas associadas à criação eficaz de condições para parcerias de elevada confiança e alto desempenho. Num mundo onde as relações e a comunidade são priorizadas, a medição, a avaliação e a responsabilização são formas concretas de aprender e melhorar em conjunto e de saber se estamos realmente a fazer progressos nas questões que nos interessam.

3. Desenvolva um padrão de conduta para a filantropia. | Se melhorar a filantropia passa por construir relacionamentos com alto nível de desempenho e baseados na confiança, diretores e funcionários de fundações devem tomar para si a responsabilidade de criar as condições necessárias para que esses relacionamentos de qualidade se desenvolvam, bem como seguir padrões elevados de conduta.

Atualmente, não há nos Estados Unidos padrões profissionais para grantmakers – nenhum código de ética ou comportamento rege ações ou práticas de doadores, além do código tributário. A filantropia deve considerar se seu trabalho na busca de melhorar a vida das pessoas, buscar justiça e fazer um mundo melhor é digno de padrões explícitos de conduta. Uma promessa de, no mínimo, não causar danos e de criar proteções contra consequências negativas seria um bom passo nessa direção.

 

Construção de confiança

 

A filantropia relacional, como todas as relações humanas, é complexa e não pode ser reduzida a um manual. Ambos os lados precisam encontrar seu caminho juntos. Mas todos os relacionamentos significativos são baseados na confiança, e de modo geral podemos dizer que criar relações ricas em confiança depende de cinco prioridades:

  • ACORDOS (a respeito das expectativas). As expectativas existem apenas na mente. É preciso elaborar, com nossos parceiros, um conjunto explícito e compartilhado de acordos sobre o funcionamento de uma parceria.

  • FATOS (no lugar de suposições). Não faça suposições sobre as capacidades ou desafios do seu parceiro. Discuta o que cada lado pode trazer para o relacionamento e como cada um define o problema no qual estão trabalhando juntos.

  • CLAREZA DE PAPÉIS. Dê nome às funções de cada parceiro. Defina limites e responsabilidades para a tomada de decisões. Esse tipo de contrato de trabalho pode ser revisitado e revisado conforme seja aplicado, devendo ser negociado e claro para todos.

  • CONFIABILIDADE. É preciso cultivar e construir a sensação de que podemos contar uns com os outros. Descreva e defina a confiabilidade. Desenvolva uma prática para falar sobre pontos fortes e deficiências nesse quesito.

  • SEGURANÇA PSICOLÓGICA. Pesquisadores como Amy Edmonson, da Escola de Administração de Harvard, estudaram a importância de promover a segurança psicológica dentro das organizações e entre elas. Desenvolva práticas descomplicadas, mas consistentes, para o aprendizado coletivo, com humildade, curiosidade e pluralismo. Comece por implementar a prática permanente de discutir abertamente o que todos aprenderam com os funcionários da fundação (o que inclui apontar erros e fracassos), começando por identificar em que ponto as ideias iniciais deles se mostraram imprecisas ou incompletas.

No nosso campo, relações são importantes demais para que esperemos que elas se desenvolvam por boa vontade ou por obra do acaso. A fim de que essa mudança rumo a um poder compartilhado se conclua, devemos favorecer a expectativa e o apoio que nutrem habilidades e competências de relacionamento e construção de confiança. É hora de dotar de rigor e compromisso as relações que vão permitir e dar sustento a uma abordagem da filantropia, capaz de desbloquear possibilidades disponíveis apenas para um “nós” coletivo.

 

AS AUTORAS

Kathleen Boyle Dalen é psicóloga e diretora da KBD Consulting, onde capacita conselhos, CEOs e equipes de liderança na criação de culturas de alto desempenho e confiança.

Tracy L. McFerrin é diretora da Credo Philanthropy Advisors e ex-doadora de uma fundação familiar privada. Na Credo, ela aconselha e treina fundações e doadores individuais sobre doações estratégicas de caridade, práticas de governança para fundações e resolução de questões na dinâmica beneficiário-doador.



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