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Como o desenvolvimento imobiliário pode melhorar a saúde urbana

Ao analisar a situação do setor de saúde, incorporadores podem criar um projeto imobiliário que gere um novo valor, o de promover o bem-estar da comunidade local

Por Adele Houghton e Matthew Kiefer

Ilustração produzida por inteligência artificial para representar projeto de empreendimento imobiliário que incorpora conceitos verdes (Imagem de Tensorspark)

Crises na saúde pública como a pandemia de covid-19, a epidemia de obesidade e doenças relacionadas ao calor e exacerbadas pela mudança climática colocam em evidência as forças sociais, econômicas e políticas por trás da disparidade nos indicadores de saúde dentro de uma mesma comunidade. Os “determinantes sociais de saúde”1 podem causar diferenças de uma década ou mais na expectativa de vida dos moradores de bairros diferentes da mesma cidade. O desenho arquitetônico e a configuração do uso do solo têm peso nessas disparidades, uma vez que agem para expor mais ou menos as pessoas a riscos ambientais e influenciam seu acesso a atividade física e alimentação saudável.2

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À luz dessas preocupações, os criadores de políticas e os que advogam pela saúde pública se empenham em descobrir como projetos imobiliários privados em larga escala podem ajudar a lidar com essas disparidades. Determinantes sociais de saúde desempenham um papel crescente no processo de aprovação de tais projetos. Grupos comunitários e aqueles que concedem subsídios esperam que os incorporadores demonstrem como um projeto vai beneficiar a vizinhança. Com frequência, essas conversas dizem respeito a garantias sociais, como criação de empregos e acesso a habitação, e a melhorias, como parques, locais para caminhadas e medidas de trânsito. Em paralelo, programas de uso de solo e de licença ambiental se tornam mais estritos, exigindo que os incorporadores se preocupem com emissões de gases de efeito estufa, resiliência climática e outros impactos no ecossistema.

Ao mesmo tempo, iniciativas recentes da Securities and Exchange Commission (SEC), órgão que regula o mercado de ações nos Estados Unidos, para padronizar os relatórios de riscos climáticos levaram investidores, como bancos comerciais e fundos de investimento imobiliário, a incluir perguntas sobre emissões de gases de efeito estufa e risco de mudança climática em suas avaliações de projetos de incorporação. Os incorporadores têm se mostrado hábeis em avaliar como fatores fora de seu controle direto afetarão o retorno projetado para o investimento. Mas agora eles se encontram sob uma crescente pressão para estimar tanto os efeitos positivos quanto os negativos que seus projetos terão sobre a sociedade e o ambiente. Os enquadramentos ambientais, sociais e de governança, que conhecemos pela sigla ESG, em inglês, tornaram-se a metodologia predominante para investidores orientados para o impacto avaliarem investimentos.3

 

A análise da situação de saúde é uma maneira melhor de avaliar um projeto imobiliário porque dedica atenção às circunstâncias e características locais que afetam o bem-estar dos residentes

 

Mas a triagem ESG não é muito adequada para avaliar os efeitos positivos, sociais e ambientais de um projeto individual de incorporação imobiliária. Isso porque ela geralmente opta por medidas universais, e valores imobiliários se calcam nas características do lugar. Mesmo quando a abordagem ESG usa parâmetros da construção civil ou específicos do local, como classificações Leed (sigla em inglês para “liderança em energia e design ambiental”), sistema de classificação amplamente usado para construções verdes, ela não leva em conta as maneiras como um trecho de terra, ao ser incorporado, afeta seu entorno e é afetado por ele. Por fim, o enquadramento ESG lida separadamente com cada um de seus três fatores, quando na verdade eles se interligam e agem em sinergia nos projetos imobiliários.

Avaliar esses impactos exige uma metodologia melhor. Propomos, a seguir, aplicar os princípios da “análise da situação de saúde”. Esse é um caminho superior porque possibilita uma abordagem sistemática para definir e medir os desafios da saúde pública e permite lidar com eles de um modo sensível ao contexto. Quando aplicado à incorporação imobiliária comercial, pode reestruturar o processo de aprovação pública, vinculando o impacto social na saúde e no bem-estar da vizinhança de maneira evidente para os moradores e membros da comunidade.

Essa abordagem também pode mudar conceitos de valor no mercado imobiliário, expandindo-os para além dos limites estritos de uma propriedade, de modo a abranger o bairro onde ela se insira, beneficiado por aspectos do seu projeto. Empregada em maior escala, a análise da situação de saúde pode redefinir o valor imobiliário de tal forma que os projetos mais lucrativos serão aqueles que proporcionem os maiores benefícios para a população e para a saúde do planeta.

 

Enraizado no lugar

 

O valor de um projeto de incorporação imobiliária se liga irremediavelmente ao território. Dados os seus efeitos no ambiente, na economia e na qualidade de vida na vizinhança, a incorporação imobiliária encontra-se fortemente regulamentada por meio de revisões ambientais e de zoneamento. Lote e entorno têm uma relação de mão dupla; o contexto influencia o valor da propriedade para os investidores e usuários, assim como o projeto influencia o valor e a utilidade das propriedades e comunidades da vizinhança. Adequar um projeto novo ou a requalificação de um edifício preexistente para tirar o máximo dessa relação pode gerar valor para a equipe da incorporação, a comunidade e o governo local.

Essa é uma verdade fundamental que tem sido ignorada pelos guias de melhores práticas, pelos códigos de construção verde e pelos mais modernos métodos ESG de triagem. Medidas universais, na maior parte dos casos, menosprezam questões ligadas ao contexto. Com isso, perde-se a oportunidade de fazer com que os projetos se adaptem às necessidades da vizinhança, conquistando a confiança da comunidade e aumentando o valor da propriedade imobiliária.

A análise da situação de saúde é uma maneira melhor de fazer isso porque dedica atenção às circunstâncias de vida e características locais que possam afetar o bem-estar dos residentes. Em um projeto convencional, os representantes dos incorporadores poderiam, em uma reunião com a comunidade, enfatizar os esforços de sustentabilidade do projeto, como zerar as emissões líquidas de carbono do empreendimento. No entanto, se o projeto em questão estiver localizado em um bairro que registre altos índices de pessoas com asma, é improvável que os moradores associem o objetivo universal de reduzir as emissões de gases de efeito estufa com melhoras no seu dia a dia.

A análise da situação de saúde ligaria as elevadas taxas de asma na vizinhança a efeitos das mudanças climáticas que podem desencadear ou exacerbar ataques respiratórios, tais como dias de forte presença de ozônio e eventos de calor extremo. Essa conexão levaria naturalmente a um debate sobre maneiras como o projeto poderia reduzir a exposição dos residentes aos gatilhos da asma, por exemplo com medidas para melhorar o tráfego e diminuir congestionamentos.

O plantio estratégico de árvores e arbustos, criando uma barreira para proteger o local de fontes de poluição atmosférica, pode preservar ainda mais os moradores da poluição do ar relacionada ao trânsito. Mais plantas e sombra podem resfriar o ar em torno da construção, e técnicas de resfriamento passivo, tais como o isolamento térmico, superfícies pintadas em cores leves e janelas, em vez de vidros fixos, diminuem o risco de que as temperaturas internas alcancem níveis perigosamente elevados durante interrupções de energia. Todas essas estratégias também ajudam a reduzir a pegada de carbono do empreendimento – e isso pode ser mencionado tanto pelos incorporadores quanto pela administração pública como um ponto extra para a comunidade, um benefício adicional de um projeto cujo objetivo central é melhorar a saúde e o bem-estar da vizinhança.

Para investidores e reguladores, a análise da situação de saúde pode ajudar a balizar e mensurar os objetivos ESG. Também torna essas métricas e suas interconexões visíveis ao recorrer a dados ambientais, demográficos e de saúde de fontes como os de agências sanitárias e de proteção ambiental a fim de mapear as condições iniciais de clima, bem-estar e equidade na vizinhança de um projeto imobiliário.

Ao usar conjuntos de dados de código aberto prontamente disponíveis e um método sistemático que gera recomendações específicas para uma vizinhança, a análise da situação de saúde amplia a transparência e a equidade na avaliação pública dos projetos que o mercado imobiliário propõe, refletindo as características sociais, ambientais e de saúde únicas de cada vizinhança. Ao serem usados para conduzir debates sobre o projeto, esses dados fazem com que o engajamento da comunidade deixe de ser meramente mecânico e se torne uma oportunidade de adaptar o projeto, voltando-o para o bem-estar e as aspirações dos moradores.

Coautora deste artigo, Adele Houghton conduziu recentemente uma pesquisa em três comunidades nos Estados Unidos (Albany, Nova York; Buffalo, Nova York; e Waterford, Virgínia), a qual mostrou que o uso da análise da situação de saúde nesses termos era mais eficaz para equilibrar todas as prioridades de grupos de interessados do que o processo regular de aprovação pública de um projeto. Quando indagados se sentiam que suas vozes tinham sido ouvidas durante o processo de engajamento da comunidade e se suas perspectivas estavam refletidas no projeto final, os participantes responderam positivamente, com uma pontuação média de 4,65 num total de 5. Um membro da comunidade observou: “Senti que a combinação de todas as vozes foi ouvida”. 4

Os objetivos ESG também têm mais a ganhar com a nossa metodologia. A construção verde e as recomendações de operação do empreendimento contemplam o fator ambiental (o E da sigla), levando em conta necessidades sociais e de saúde da vizinhança (o S). Ao mesmo tempo, incita os incorporadores a rever sua governança (o G), colocando os moradores no centro do projeto, em um processo de engajamento deliberado da comunidade, cuja voz de fato se ouve na modelagem do projeto final. Por fim, a análise da situação de saúde permite escala. Utiliza dados específicos do bairro e outros de livre acesso vindos de fontes confiáveis para priorizar evidências e estratégias que reduzem a exposição a condições nocivas à saúde e promovem resultados positivos para o bem-estar. Os indicadores usados na análise podem ser aplicados a sistemas de avaliação para medir o alcance de resultados positivos referentes à mudança climática, saúde da população e equidade social. Os indicadores também dialogam com os painéis existentes de ESG, políticas locais, guias de melhores práticas, como Leed, e estruturas globais, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. Isso faz com que eles possam ser expandidos da escala de um projeto específico até a do portfólio global de bens imóveis.

 

Incorporação baseada na comunidade

 

Regulamentações ambientais e grupos comunitários esperam cada vez mais que projetos imobiliários demonstrem de que modo podem beneficiar o contexto em que pretendem se inserir. Questões climáticas e objetivos de equidade têm sido crescentemente incorporados a planos de zoneamento e a outros instrumentos governamentais, bem como às demandas dos ativistas urbanos. Por outro lado, financiadores do mercado imobiliário colocam os empreendimentos sob escrutínio para ver quanto eles se adaptam ao perfil e às regras ESG de seus investidores. Essa pressão pode fazer os processos de aprovação mais morosos e duros, causando estresse durante o pré-desenvolvimento do projeto para todos os participantes. A análise da situação de saúde ajuda a priorizar fatores ambientais e de bem-estar que podem dotar o projeto de mais impacto. Os incorporadores podem se valer disso para demonstrar como seu projeto contribui para indicadores-chave em planos municipais, sejam eles referentes a ações climáticas ou a questões de saúde pública, como obesidade e asma.

Essa abordagem calcada nos parâmetros específicos da comunidade pode ajudar a construir confiança e uma visão compartilhada para o projeto. Tal dinâmica aumenta a probabilidade de que o processo de aprovação pública seja mais simples e direto, o que traz ganhos para todas as partes – incorporadores, que economizam recursos e melhoram sua a reputação; a comunidade, mais do que todos, porque tende a ter melhora na qualidade de vida; e governo e líderes comunitários, vistos como eficazes em constituírem o equilíbrio entre anseios dos moradores e projetos que contribuirão para a economia.

 

Estudo de caso de Boston

 

Um exemplo que ilustra, na prática, como a análise da situação de saúde pode beneficiar os três diferentes grupos de interessados é o caso do Parcel P3, um lote de terra de 3,075 hectares, localizado em Roxbury, bairro de baixa renda a 4,5 quilômetros do centro de Boston, com composição étnica diversificada e historicamente sem muitos investimentos. A menos de 1,5 quilômetro dali fica a Área Médica e Acadêmica de Longwood, que concentra instituições ligadas à saúde, como a Escola de Medicina de Harvard, e que é um importante polo gerador de emprego. Roxbury também fica ao lado do terminal intermodal Ruggles, para o qual confluem linhas de ônibus, metrô e trens metropolitanos.

O lugar tem ainda importância simbólica por ser a maior extensão de terra ainda de propriedade pública na cidade, desde a conturbada renovação urbana dos anos 1950 e 1960, quando autoridades deslocaram residentes marginalizados de seus bairros para a construção de grandes projetos de infraestrutura, edifícios administrativos e habitações para famílias de renda mais elevada. Por fim, o lote P3 também é importante porque suas dimensões são suficientes para que ele funcione como catalisador de oportunidades econômicas e benefícios sociais para o bairro.

Em outubro de 2021, a Agência de Planejamento e Desenvolvimento de Boston (BPDA, na sigla em inglês) abriu uma concorrência para que incorporadores desenvolvessem um projeto comercial que pudesse trazer benefícios significativos para a comunidade junto dos esperados retornos financeiros. Dois grandes incorporadores apresentaram projetos semelhantes, cada um com aproximadamente 100 mil metros quadrados, nos quais distribuíram, em várias construções, centros de medicina, biologia e outras ciências e residências para famílias de renda média. A BPDA escolheu um incorporador em janeiro de 2023.

Funcionários públicos e grupos comunitários pressionaram para que fosse demonstrado de que modo uma proposta de incorporação imobiliária beneficiaria os residentes e os negócios do bairro. A concorrência acabou reconhecendo que o estímulo ao desenvolvimento econômico resultaria no deslocamento dos moradores do bairro. Então pediu aos incorporadores que o projeto se voltasse a beneficiar os atuais residentes de Roxbury, em vez de ter como meta apenas atrair novos negócios e moradores para a região.

Um dos autores deste texto e professor de arquitetura em Harvard, Matthew Kiefer, com a ajuda da coautora Adele Houghton, desafiou alunos de uma disciplina sobre incorporação imobiliária com impacto social a considerar como a análise da situação de saúde poderia oferecer uma abordagem mais sistemática para atingir aquele objetivo no lote P3 do que a prática atual.

Uma análise da situação de saúde começa por mapear a localização, a gravidade e as causas de exposição ambientais no local proposto para a construção e em seu entorno. Em seguida, a análise examina se aquelas condições tendem a prejudicar de maneira desproporcional os moradores atuais e futuros residentes do projeto.

No caso do P3, dados do censo revelam que a vizinhança mostra-se consideravelmente mais diversa que Boston como um todo e os Estados Unidos em geral: 25,2% de asiáticos, 20,4% de negros não hispânicos, 16,1% de hispânicos/latinos e 35,3% de brancos não hispânicos.

Dados públicos sobre as ameaças ambientais no bairro mostram que ele é altamente vulnerável a ilhas de calor e inundações, porque boa parte da superfície do terreno é impermeável – ruas, estacionamentos e construções. Cerca de metade do lote ainda tem cobertura vegetal e, portanto, é permeável. Um novo empreendimento que ampliasse as superfícies impermeáveis poderia aumentar esses riscos.

Além disso, a Tremont Street, uma rua importante de Roxbury, é lindeira ao P3. De 2015 a 2022, a cidade documentou 20 acidentes relacionados ao trânsito envolvendo pedestres e ciclistas ao longo daquele trecho da rua – muitos no meio do quarteirão do P3. Esse dado fornece ao projeto a oportunidade de criar na Tremont um acesso peatonal mais seguro ao terminal Ruggles.

Roxbury é um bairro de baixa renda a 4,5 quilômetros do centro de Boston, com composição étnica diversificada e historicamente sem muitos investimentos; fica a menos de 1,5 quilômetro da Área Médica e Acadêmica de Longwood, que concentra instituições ligadas à saúde, como a Escola de Medicina de Harvard, e que é um importante polo gerador de emprego

Dados do censo sobre as características de saúde na vizinhança imediata mostram uma alta prevalência de asma e problemas de saúde mental entre adultos, além de uma taxa de pobreza de 48%. Por outro lado, a saúde física geral é boa, o que pode refletir a baixa incidência demográfica de crianças e idosos, os quais, devido a razões fisiológicas e comportamentais, são potencialmente mais vulneráveis a riscos ambientais, como má qualidade do ar, inundações, calor extremo e cruzamentos perigosos.

A avaliação desses dados ambientais e sociais relacionados à saúde deveria sugerir algumas prioridades a combater com o projeto: ferimentos e mortes associados ao calor, a inundações e à poluição do ar; acidentes envolvendo ciclistas e pedestres; e questões de saúde mental. Tais fatores da saúde, por sua vez, sugerem diversas estratégias baseadas em evidências para o terreno, o desenho da construção e as operações, que poderiam reduzir as exposições nocivas e promover a saúde geral.

Projeto | Projetar estruturas e construções totalmente elétricas e reduzir o condicionamento de ar dessas construções atenderia a duas prioridades ambientais que despontaram na análise da situação de saúde – calor extremo e poluição do ar –, e ao mesmo tempo reduziria as emissões de gases de efeito estufa. Entre outras estratégias para reduzir a exposição ao calor extremo podem-se listar telhados brancos ou cobertos de vegetação, paredes e tetos com melhor isolamento, mais área de janelas, orientação e desenho espacial, bem como dispositivos externos (como toldos), visando ao sombreamento.

Janelas, no lugar de vidros fixos, também são úteis para dois fatores identificados como prioritários na análise da situação de saúde – proteção contra o calor extremo e apoio à saúde mental. Elas ampliam o tempo de uso do edifício em caso de interrupção do fornecimento de energia5 e os efeitos restauradores da luz solar e das vistas da natureza.

Áreas abertas, cobertas ou não, que possam abrigar atividades normalmente realizadas no interior do edifício aumentam a porcentagem de área útil do edifício sem aumentar a superfície construída. Com isso, ajudam o projeto a zerar suas emissões de carbono, além de contribuir para a saúde mental e o bem-estar dos ocupantes da construção e dos residentes do bairro ao ampliar o acesso à natureza.

Considerando a renda mediana e as construções antigas do local, o projeto deveria contemplar um espaço que funcionasse como um ponto de reunião ou um centro de resfriamento durante interrupções de energia ou desastres naturais. Esse poderia, inclusive, ser um dos benefícios mais significativos do empreendimento para a comunidade.

Implantação | Com relação à localização estratégica do lote P3, em frente ao terminal Ruggles, a forma como as construções estarão implantadas no terreno pode servir para responder a questões ambientais identificadas na análise da situação de saúde. Por exemplo, ciclovias e faixas de travessia interligadas à rede de caminhos arborizados poderiam reduzir o risco de acidentes. Tal abordagem, bem como implantar os prédios perto de áreas verdes de acesso público, contribuiria para a saúde mental, propiciando contato com a natureza de forma segura, apartada do tráfego.

A ampliação de zonas verdes e permeáveis e de áreas de sombra reduziria os riscos que inundações poderiam causar para o ambiente e para a saúde,6 assim como o efeito das ilhas de calor.7 Uma cobertura arbórea maior também contribuiria para todos esses aspectos.

A ligação com os caminhos arborizados da região e a redução do número de vagas de estacionamento, encorajando os residentes a circular a pé, de bicicleta ou em transporte público, diminuiria o risco de acidentes e a exposição à poluição do ar relacionados ao tráfego na Tremont Street.8

Microrrede comunitária de energia renovável | A análise da situação de saúde também apoiaria a inclusão de uma microrrede comunitária de energia renovável – um local pertencente a uma cooperativa, que dispusesse de equipamentos de produção adequados, como painéis solares ou turbinas eólicas, e de linhas de transmissão, transformadores e unidades de armazenamento de energia, que pudessem ser isolados da rede elétrica central e funcionar independentemente por algum tempo, durante uma longa interrupção no fornecimento de energia.

A microrrede também poderia reduzir o impacto da conta de luz para os habitantes de baixa renda, podendo, de fato, se constituir como uma iniciativa de desenvolvimento econômico comunitário capaz de aumentar a prosperidade dos atuais residentes de Roxbury. Para estruturar o financialmento, o desenvolvimento e a operação desse equipamento, a comunidade poderia estabelecer parceria com a administração pública ou com projetos similares nas proximidades, como a microrrede localizada no Instituto de Tecnologia Wentworth. Além do mais, a microrrede beneficiaria os incorporadores, ao criar uma nova fonte de receita para o empreendimento, ao mesmo tempo que reduziria emissões de gases de efeito estufa.

Custo-benefício | A análise da situação de saúde também pode ajudar a avaliar o custo-benefício de um projeto. Além de propor soluções para as principais questões de saúde ambiental, beneficiando moradores e incorporadores nesse processo, a abordagem permite, de forma notável, medir a maior parte dos impactos positivos de que o governo pode se servir para melhorar indicadores-chave em seu plano de ação climática ou de melhoria da saúde da comunidade e outros programas municipais existentes.

Como em qualquer análise de custo-benefício, esses últimos aspectos são mais difíceis de quantificar em termos monetários. No entanto, podem ser estimados com base em técnicas de modelagem aceitas para orientar a tomada de decisões. Enquanto os custos provavelmente recaem sobre o incorporador, os benefícios fluem igualmente para outras partes. Isso ajuda o incorporador a defender o projeto junto aos outros interessados, contribuindo para o sucesso de ideias que à primeira vista, por si só, poderiam ser consideradas muito dispendiosas. Também permite que os responsáveis pelo empreendimento proponham medidas que respondem a necessidades que a vizinhança reconhece como suas, em vez de responder a uma miríade de pedidos de interessados e de agências de concessão de subsídios. É mais fácil que o projeto seja bem assimilado pelos interessados quando atende a necessidades e prioridades destes. A abordagem pode, assim, reduzir os riscos do projeto, melhorar seu desempenho financeiro e suas contribuições podem ser claramente transpostas para métricas ESG.

 

Alinhando os interessados

 

Embora na teoria a análise da situação de saúde possa ajudar a alinhar os interesses dos três principais grupos envolvidos em um projeto de incorporação – a comunidade, os incorporadores e o governo –, na prática podem surgir conflitos e desconfianças. Portanto, por mais fundamentada que ela seja, a análise deve ser acompanhada de um processo incisivo e direto de engajamento comunitário, usando métodos participativos9 para garantir que todos os grupos percebam que sua voz foi ouvida e sua visão levada em conta no desenho final do projeto.

As reações dos três grupos ao projeto apresentado pelos estudantes de Harvard foram esclarecedoras. Os interessados queriam entender principalmente como o projeto integraria espaços de laboratório (que provavelmente atrairiam a maior parte da população externa a Roxbury) e habitações a preço razoável, que acolhessem uma vasta gama de faixa de renda e trajetórias de vida. Eles acolheram as ideias dos alunos para facilitar o transporte público, ampliar o acesso à natureza e às atividades ao ar livre e tornar mais seguro o deslocamento para o terminal Ruggles pela Tremont Street.

De forma similar, a pesquisa de Adele Houghton, coautora deste texto, mostrou que usar a análise da situação de saúde para estruturar um processo de engajamento comunitário aumentava o apoio dos participantes ao projeto. Em um processo participativo real, de início havia a preocupação, por parte de vários líderes comunitários, de que o projeto em questão lidasse com a poluição do ar associada a caminhões e trens nas proximidades. A análise, porém, demonstrou que a poluição fazia parte de um quadro mais amplo, que incluía calor extremo, inundações, necessidades de saúde mental, violência armada, obesidade, asma, além de determinantes sociais, como os altos índices de pobreza e o legado do racismo, que contribuíam para piorar indicadores de saúde. Em resposta a isso, os participantes concordaram em priorizar estratégias para proteger as pessoas das três exposições relacionadas à mudança climática (calor, inundações e poluição do ar). Os moradores também enfatizaram a necessidade de os incorporadores e grupos comunitários trabalharem em conjunto para levar serviços urbanos e organizações da sociedade civil a ocupar o térreo de uma construção bem importante no empreendimento.

No fim do processo, a maioria dos participantes estava de acordo com as linhas gerais e declarou ter sentido que as perspectivas de seu grupo de interessados estavam refletidas na visão final do projeto (uma pontuação média de 4,44 em 5). Ainda mais notável foi a marcante mudança na atmosfera durante o processo. De início, muitos membros da comunidade expressaram preocupação com gentrificação e deslocamento de moradores, céticos quanto às intenções dos incorporadores. Ao final, os três grupos haviam chegado a um consenso, e um líder comunitário perguntou aos incorporadores o que os moradores podiam fazer para se manifestar em prol do projeto.10

 

Desafios de implementação

 

A análise da situação de saúde tem imenso potencial para a incorporação imobiliária. Mas, como qualquer nova empreitada interdisciplinar, pode haver desafios. As incorporadoras não têm a competência interna para realizar uma análise da situação de saúde. Embora outros aspectos do ramo já requeiram conhecimento especializado, como a eficiência em energia e a retenção de águas pluviais, a metodologia abordada neste artigo foi testada em apenas uns poucos projetos, de modo que não existem consultores em número representativo para aplicá-la. De maneira similar, é provável que os moradores dos locais afetados não estejam familiarizados com esse método, e pode faltar a funcionários da administração a competência em saúde pública para avaliar como incorporar essa abordagem a processos de avaliação.

A boa notícia é que todas as partes querem um método melhor para isso. Investidores de impacto, incorporadores, arquitetos, consultores especializados em projetos verdes e organizações comunitárias estão cada vez mais conscientes de que a atual abordagem do setor imobiliário não é capaz de alcançar seu impacto potencial máximo – seja pelas métricas financeiras, seja pelos padrões de ESG. Desde 2020, Adele Houghton entrevistou mais de 50 incorporadores imobiliários, arquitetos e consultores nos Estados Unidos. Eles expressaram o desejo de ajustar seus projetos para responder às necessidades demonstradas pela vizinhança do entorno.

Um segundo desafio é a quantidade e a dispersão dos dados secundários. Ao longo da última década, a informação disponível em livre acesso na escala dos bairros cresceu de tal forma que alguém que se disponha a executar uma análise da situação de saúde se vê lançado numa caça ao tesouro. O estudo de caso aqui apresentado mobilizou informação de 40 conjuntos de dados sobre o lote P3, disponíveis em13 websites. A análise da situação de saúde possibilita converter essa profusão de dados em uma expressão sucinta do que um empreendimento imobiliário pode fazer a fim de propiciar o maior benefício possível a todos os envolvidos.

A recente emergência de ferramentas como o ChatGPT levanta a possibilidade de empregar inteligência artificial para automatizar o primeiro passo no processo de análise da situação de saúde – com isso tornando o plano descrito neste artigo acessível a qualquer um sob o impacto de um determinado projeto de incorporação, não importando seu grau de escolaridade. O uso ético e eficiente de grandes conjuntos de dados é um desafio que os inovadores sociais e os primeiros a adotar nosso método devem enfrentar ao longo do tempo, como aconterá em outros campos que se deparem com questões similares.

A incorporação imobiliária pode parecer um ramo improvável para a mudança social positiva. Embora a conexão entre o ambiente físico e os resultados sociais seja cada vez mais clara, muitos membros de comunidades e seus porta-vozes temem mudanças indesejadas que possam vir de um empreendimento. Os incorporadores precisam equilibrar a necessidade de defender os benefícios de seus projetos e os riscos inerentes ao seu setor. Conceber um empreendimento exige um alto capital inicial e um horizonte de investimentos a longo prazo, que devem prometer uma elevada taxa de retorno para atrair aportes. O senso comum talvez sugira que acrescentar benefícios sociais ao rol de exigências poderia ser contraproducente.

Nossa pesquisa mostra que não. Ansiamos pelo emprego mais generalizado da análise da situação de saúde, ao lado de avaliações de custo-benefício e de amplos processos participativos com as comunidades, a fim de que a incorporação imobiliária possa atuar em benefício de todos os envolvidos.

 

OS AUTORES

Adele Houghton é presidente da Biositu e professora na Escola T. H. Chan de Saœde Pœblica da Universidade Harvard.

Matthew Kiefer é um dos diretores da Goulston & Storrs e professor na Escola de Design da Universidade Harvard.

*Os autores agradecem aos estudantes no SES 5383: Developing for Social Impact na Graduate School of Design em Harvard e aos representantes do governo e dos incorporadores do lote P3, cujas apresentações e contribuições para as discussões na sala de aula ajudaram a enriquecer os conceitos apresentados neste artigo. Um reconhecimento especial a Linda Kaboolian, da Escola T. H. Chan de Saúde Pública, por sua contribuição para as versões iniciais deste texto.

 

Notas

1 Amy Schulz e Mary E. Northridge, “Social Determinants of Health: Implications for Environmental Health Promotion” [Determinantes sociais da saúde: implicações para a promoção da saúde ambiental], Health Education & Behavior, v. 31, n. 4, 2004; World Health Organization, A Conceptual Framework for Action on the Social Determinants of Health [Um enquadramento conceitual para a ação sobre os determinantes sociais da saúde], 2010.

2 Andrew L. Dannenberg, Howard Frumkin e Richard J Jackson (orgs.), Making Healthy Places: Designing and Building for Health, Well-Being, and Sustainability [Fazendo lugares saudáveis: projetando e construindo para a saúde, o bem-estar e a sustentabilidade], Washington, DC: Island Press, 2011.

3 Elizabeth Pollman, “The Making and Meaning of ESG” [A criação e o significado de ESG], European Corporate Governance Institute, Working Paper Series in Law, paper n. 659/2022, out. 2022.

4 Adele Houghton, Priority Green for Community Benefit: A Framework for Tailoring Real Estate Entitlement Concessions to Neighborhood-Specific Priorities Around Climate, Health, and Equity [Prioridade verde para os benefícios à comunidade: uma estrutura para ajustar as concessões do direito à propriedade de imóveis às prioridades específicas da vizinhança em termos de clima, de saúde e de equidade], Harvard University ProQuest Dissertations Publishing, 2023.

5 Adele Houghton e Carlos Castillo-Salgado, “Associations between Green Building Design Strategies and Community Health Resilience to Extreme Heat Events: A Systematic Review of the Evidence” [Associações entre estratégias de projeto de construções verdes e a resiliência da saúde da comunidade a eventos de calor extremo: uma revisão sistemática da evidência], International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 16, n. 4, 2019.

6 Salman Anees Soz, Jolanta Kryspin-Watson e Zuzana Stanton-Geddes, The Role of Green Infrastructure Solutions in Urban Flood Risk Management [O papel das soluções de infraestrutura verde na administração do risco de inundações urbanas], World Bank Group, 2016.

7 George Luber e Michael McGeehin, “Climate Change and Extreme Heat Events” [Mudança climática e eventos de calor extremo], American Journal of Preventive Medicine, v. 35, n. 5, 2008.

8 Piers MacNaughton et al., “Impact of Bicycle Route Type on Exposure to Traffic-Related Air Pollution” [O impacto do tipo de via para bicicletas na exposição à poluição do ar relacionada ao trânsito], Science of the Total Environment, v. 490, 2014.

9 Meredith Minkler, “Using Participatory Action Research to Build Healthy Communities” [Usando a pesquisa sobre ação participativa para construir comunidades saudáveis], Public Health Reports, vol. 115, 2000.

10. Houghton, Priority Green [Prioridade verde].



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