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Por uma cultura do cuidado

Para melhorar a experiência do usuário e alavancar os indicadores de equidade na saúde, as empresas e os profissionais terão de adotar uma postura mais holística no atendimento ao público

Por Whitney Easton

(Ilustração de Dadu Shin)

No mundo todo, os sistemas de saúde estão falhando em oferecer serviços confiáveis e satisfatórios aos pacientes. A confiança na assistência de saúde chegou a uma taxa de 66% nos 27 países pesquisados em 2022 pelo Barômetro de Confiabilidade Edelman. Nos Estados Unidos, onde a maioria da população acredita que o sistema de assistência à saúde esteja em crise, a Deloitte relata que a insatisfação é a maior já registrada e que disparidades no grau de confiança têm forte correlação com fatores raciais e étnicos. Embora as condições sejam propícias para uma mudança sistêmica, métodos e ferramentas antigos não nos levarão a atingir a equidade na saúde. Em vez disso, proponho uma “cultura do cuidado”, uma visão holística, voltada para o ser humano e ciosa de aspectos culturais, como meio para reverter a queda de confiança e de satisfação e a desigualdade no setor.

A adoção de uma cultura do cuidado requer, primeiro, que os serviços de assistência à saúde adotem uma visão mais diversificada sobre o que é uma cultura. O discurso vigente no setor se centra principalmente nas discussões sobre competência cultural – entendida, basicamente, como uma barreira espinhosa que os profissionais de saúde precisam vencer por meio de treinamento. Nesse contexto, a visão das organizações é muito limitada, porque elas não percebem o papel que desempenham como criadoras ativas de uma cultura que afeta todos os envolvidos no sistema, desde os pacientes e seus familiares até os médicos e suas equipes.

E se a cultura fosse passível de inovação, como a tecnologia? Para os antropólogos, a cultura não é estática. A antropologia da saúde a define como “as formas padronizadas por meio das quais vidas individuais se desenrolam em contextos de grupo dinâmicos e multifacetados”, o que sugere que os grupos e identidades não são monolíticos, mas heterogêneos, e se sobrepõem.1

Uma visão antropológica da cultura também ilumina a criação de sentidos em consultas médicas e como isso informa os processos de cura. Antropólogos da saúde já mostraram como as ferramentas que os profissionais da cura utilizam possuem tanto funções práticas como simbólicas. O jaleco branco do médico, por exemplo, é um símbolo de sua expertise, servindo para despertar confiança nos pacientes. Tais simbologias criam e legitimam a fé do paciente em seu médico, o que molda positivamente todo o processo de diagnóstico, tratamento e cura.

Considerando que a cultura se constrói socialmente e é, em essência, dinâmica, como os sistemas de saúde podem criar uma cultura de cuidado que traga uma melhor experiência e melhores resultados para o paciente? Neste artigo apresentamos quatro vetores de mudança que podem transformar o setor: atendimento médico centralizado, a fim de humanizar a assistência; maior autonomia do paciente, para consultas mais produtivas; melhor compreensão e mais respeito entre médico e paciente, para aumentar a satisfação e gerar confiança; atendimento que leve em conta o contexto e a experiência, a fim de atingir populações marginalizadas.

 

“Atenção ao atendimento”

 

O cuidado é a cola humana que une famílias, comunidades e sociedade”, afirma o antropólogo da saúde e psiquiatra Arthur Kleinman, em seu livro, The Soul of Care (a alma do cuidado, de 2020, sem tradução no Brasil). “O cuidado oferece uma alternativa à forma como vivemos e a quem somos. Mas ele tem sido negado e desvalorizado, sendo sacrificado em nome da economia e da eficiência”.

As observações de Kleinman revelam as fortes tensões existentes entre os cuidados aos pacientes e o lucro perseguido pela indústria de assistência à saúde. A crítica de Kleinman nasce de sua própria experiência de ter que suprir falhas no tratamento de Alzheimer de sua mulher. Quando as organizações depreciam o atendimento médico, elas prejudicam não só a experiência do paciente, mas também a satisfação do profissional de saúde. A seguir, fazemos quatro recomendações por uma cultura do cuidado. Elas se baseiam nos estudos de Kleinman e no trabalho teórico e prático de outros pesquisadores.

O atendimento médico deve ser a principal preocupação dos profissionais. | Nas empresas de saúde que visam lucros, os médicos são cada vez mais pressionados a reduzir o tempo das consultas. Nos Estados Unidos, a duração média é de 13 a 16 minutos. Em geral, esse é o tempo máximo que as seguradoras reembolsam aos prestadores de serviços. A título de comparação, um médico de família, por exemplo, gasta, em média, mais de 16 minutos com o prontuário eletrônico de saúde (EHR, na sigla em inglês) para cada consulta padrão com pacientes adultos. A burocracia consome a maior parte das atividades do médico e contribui para seu burnout.

 

Priorizar o atendimento ao paciente significa respeitar sua autonomia e dignidade. A possibilidade de escolher o profissional de sua preferência permite que o paciente tenha certo controle de sua jornada médica e pode melhorar sua satisfação, principalmente para pessoas socialmente excluídas

 

Para que os médicos possam dispor de mais tempo para os pacientes, é preciso que as empresas de assistência médica aloquem mais recursos. Pesquisas mostram que consultas mais longas significam mais atenção a problemas psicossociais, menos e melhores prescrições, menos encaminhamentos para especialistas e taxas de retorno mais baixas, melhorando os indicadores de satisfação do paciente. Esses efeitos sugerem mais confiança e conexão com os médicos. Pesquisas compiladas pela psicóloga clínica Shamini Jain mostram que os tratamentos em que o paciente recebe mais apoio dos profissionais de saúde são mais bem-sucedidos.

Kleinman e Jain mostram que, mesmo nas empresas de assistência menos flexíveis com o tempo, os médicos podem melhorar a experiência fazendo contato visual, utilizando linguagem corporal tranquilizadora, gestos solidários, ouvindo atentamente, explicando de forma clara e compreensível o diagnóstico e o tratamento e empregando palavras encorajadoras.

O atendimento deve ser uma interação, não uma transação. | Alguns fatores fazem o atendimento parecer mais uma transação comercial que uma interação médica. Entre eles, plataformas digitais mal projetadas e contatos distantes, nos quais o paciente sente mais frieza que acolhimento. As tecnologias de diagnóstico e tratamento consomem cada vez mais tempo do médico, substituindo ou comprometendo seriamente a interação direta com o paciente. O atendimento também não é levado em conta quando se projetam ferramentas e tecnologias clínicas como o EHR. Até há bem pouco tempo, não existia, na maioria das versões do EHR, espaço para observações dos médicos sobre o bem-estar emocional dos pacientes. Estas não eram consideradas informações importantes para o tratamento.

No entanto, a tecnologia não precisa estar na contramão do atendimento, da construção de relacionamentos ou da experiência do paciente. Em nosso estúdio, o Artefact, criamos recentemente a plataforma Traverse, uma carteira digital de dados controlada pelos pacientes, que utiliza IA e processamento de linguagem natural para oferecer atendimento médico personalizado, culturalmente responsivo, sem comprometer a experiência do paciente. A Traverse foi criada para promover a capacidade de os profissionais de saúde utilizarem nas consultas sua habilidade de ouvir, aprender e adaptar-se a todo o espectro de valores culturais dos pacientes, práticas relacionadas à saúde e identidades multifacetadas. A plataforma oferece aos profissionais recursos relevantes e as ferramentas para tal, como acesso em tempo real à informação sobre o histórico dos pacientes e acompanhamento exclusivo e culturalmente responsivo a eles, garantindo ao médico capacitação contínua e estimulando o aprendizado e a autorreflexão.

Todos os profissionais de saúde são parceiros no processo de tratamento. | Embora seja comum na assistência comunitária, o atendimento colaborativo que inclui a rede de apoio direta do paciente no tratamento ainda é raro na maioria das empresas do setor. O atendimento colaborativo cria uma parceria entre a família e os profissionais da saúde para melhorar a qualidade do serviço e facilitar a transição da orientação clínica para a domiciliar. Nessa modalidade, os profissionais de saúde informam a família e as equipes de assistência sobre as expectativas do tratamento e ajudam a formar uma rede de apoio. As outras partes, por sua vez, podem ajudar os médicos informando sobre o estado clínico do paciente com base nas observações e contextos diários. Criar formas simples para incorporar às consultas o conhecimento dos familiares que cuidam do paciente pode orientar o tratamento e garantir que os pacientes recebam um pós-tratamento eficiente.

O atendimento médico deveria ser uma disciplina e prática padrão nos cursos, no treinamento e na profissão. | Uma pesquisa realizada nos EUA mostrou que, à medida que os alunos de medicina avançam no curso, a empatia com os pacientes diminui. A correlação sugere que o treinamento deprecia sua capacidade de cuidar e/ou que as faculdades não valorizam o atendimento ao paciente. Programas alternativos de treinamento, como a medicina social e narrativa, tentam suprir essa falha. A crescente popularidade desses programas, que hoje integram o currículo em 80% das faculdades de medicina americanas, expõe tanto as deficiências do ensino convencional como o apetite dos alunos pelo atendimento empático. Recentemente, algumas faculdades, centros de treinamento e hospitais passaram a avaliar a empatia dos alunos de medicina e suas habilidades interpessoais como fatores para ingresso e aprovação.

Essas mudanças institucionais provavelmente melhorarão a satisfação profissional dos médicos, em especial a daqueles em crise moral devido à corporatização do setor. Recentemente, na revista The New York Times Magazine, o sociólogo e jornalista Eyal Press descreveu como “chaga moral” o fato de que os médicos têm de comprometer sua ética de bom atendimento por causa dos cortes de gastos promovidos por um setor movido pelo lucro. Um estudo citado por Press mostrou que mais de 70% dos médicos de pronto-socorro concordam que o corporativismo crescente da assistência prejudicou tanto a qualidade do atendimento quanto sua satisfação profissional. A gestão que rastreia a produtividade horária, a exigência de que eles sejam mais ágeis e a avaliação de seu desempenho por unidades de valor relativo – usadas para estabelecer reembolsos, favorecendo assim pedidos de exames, mais lucrativos, em vez de conversas – são todas medidas que produzem efeitos negativos na satisfação no trabalho.

Esse descontentamento médico indica que pode estar havendo uma crise de liderança. Por outro lado, os gestores dos serviços de saúde precisam se posicionar contra as justificativas apresentadas para os lucros e os problemas sistêmicos que prejudicam a eficiência e a rentabilidade no atendimento ao paciente. Além disso, os líderes precisam desafiar essas estruturas limitadoras e tomar medidas para reduzir a carga dedicada à burocracia, combatendo práticas arraigadas nas empresas de seguros de saúde.

 

“Aumente a autonomia dos pacientes”

 

Priorizar o atendimento ao paciente significa respeitar sua autonomia e dignidade. A possibilidade de escolher o profissional de sua preferência permite que o paciente tenha certo controle de sua jornada médica. Dar-lhe mais autonomia pode facilitar seu acesso aos sistemas e melhorar sua satisfação, principalmente para pessoas socialmente excluídas. A implementação da política de escolha pelos segurados também pode ser realizada de forma fácil e rápida em locais de atendimento primário, bastando adaptar as plataformas e os processos disponíveis para incluir essa possibilidade.

A escolha é importante por várias razões. O paciente pode optar, por exemplo, por um médico adequado a suas questões culturais, o que pode aumentar seu bem-estar nas consultas, facilitar a interação e reduzir o medo de preconceito. Pesquisas sugerem que pacientes se sentem mais satisfeitos com o atendimento quando o médico tem identidade racial similar à sua. Uma pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington mostra que pacientes negros se sentem menos à vontade com médicos brancos. Assim, a escolha pode reduzir as principais barreiras psicológicas – medo, desconfiança e desconforto – relacionadas ao atendimento médico.

O desenvolvimento de bancos de dados do consumidor e de um número crescente de aplicativos que promovem melhor sintonia entre médico e paciente mostra que, cada vez mais, o paciente prefere escolher o médico. Uma pesquisa recente da Deloitte mostrou que mais da metade dos respondentes asiáticos e negros estava disposta a se deslocar mais para consultar um médico mais compatível, fosse pela identidade, cultura ou experiência. Já existem nos Estados Unidos aplicativos que atendem a essa demanda. O app Hued, por exemplo, acessa o histórico dos pacientes e procura a melhor correspondência entre o usuário e o médico, segundo necessidades culturais, físicas e mentais. O Culture Care, por sua vez, estabelece um elo entre pacientes e médicas negras.
O direito de escolher o médico cria um ambiente propício para um tratamento mais eficiente por dois motivos. Primeiro, o caminho para a conexão médico-paciente – e os benefícios que dela decorram, incluindo melhores resultados – é fortalecido quando se evita qualquer possível viés cultural. Segundo, desperta uma melhor resposta do paciente.

O processo de cura dos seres humanos ocorre de três formas: resposta autônoma (os sistemas convocados pelo corpo para recuperar a saúde ou o equilíbrio), respostas específicas (efeitos do tratamento médico) e respostas de significado (efeitos da interação interpessoal dentro do contexto da cura).

As respostas de significado geralmente são subestimadas, mas revelam o papel da cultura na cura. Estudos pioneiros do antropólogo Daniel Moerman defendem que essas crenças moldam os resultados do tratamento. Ele descobriu, por exemplo, que a convicção dos médicos sobre sua capacidade e a eficácia do tratamento afeta a resposta do paciente. Em seu livro Meaning, Medicine, and the “Placebo Effect” (Significado, medicina e o efeito placebo, sem tradução em português), publicado em 2002, ele observa: “Uma vez que essas convicções são, de alguma forma, transmitidas aos pacientes e no processo os convencem o poder do médico, então elas provavelmente (dentro do limite de nossa mortalidade) serão eficazes”.

 

A cura é um processo biopsicossocial – não apenas biológico –,  no qual a vivência e o apoio são determinantes para os  resultados. Isso significa que a qualidade do relacionamento médico-paciente afeta o processo

 

E se, inversamente, as expectativas do paciente moldarem o tratamento e a cura? Uma infinidade de reações decorrentes das expectativas iniciais do paciente sobre o médico – incluindo a escolha do profissional – pode vir a definir os resultados do tratamento. Esta possibilidade deverá estimular ainda mais a indústria de assistência de saúde a apoiar a decisão do paciente.

Outro aspecto importante da escolha é a localização. As opções foram expandidas durante a pandemia de covid-19, com os serviços de atendimento virtual. A flexibilidade na oferta de atendimento – em consultórios, virtual, ou domiciliar – pode fazer crescer a taxa de escolha do médico. A telemedicina, por exemplo, permite que os pacientes consultem um médico culturalmente compatível. Elas ajudam os clientes a superar barreiras como distância, custo de transporte, dispensa do trabalho e obrigações com as crianças. Em 2021, em uma amostra de 525 pessoas não brancas em pesquisa da Deloitte nos Estados Unidos, mais da metade de hispânicos e praticamente a metade dos negros e asiáticos preferiram consultas virtuais para serem atendidas por um médico culturalmente compatível.

A seguir, listo práticas que gestores e criadores de sistemas de assistência à saúde devem incorporar para aumentar a autonomia dos pacientes e eliminar qualquer barreira que os impeça de escolher o médico e o local da consulta.

Evite impor um “match” de cima para baixo. | Ao tomar a iniciativa de conectar pacientes com médicos de mesma raça, ou outras identidades, as organizações acreditam que estão agindo com responsabilidade e apoiando a diversidade e a inclusão. No entanto, muitas vezes, essas iniciativas se baseiam em estereótipos e automaticamente excluem a autonomia do paciente. Estudos sobre a compatibilização de pacientes em contextos de saúde mental e comportamental não amparam uma correspondência entre médicos e pacientes que siga fórmulas baseadas na similaridade cultural. Pesquisas antropológicas mostram que alguns pacientes temem ser julgados negativamente por um médico com o mesmo histórico cultural – por exemplo, quando um médico com similaridades culturais lida com uma doença propondo um tratamento estigmatizado ou aceitável em sua cultura.

Analise como as desigualdades se apresentam em diferentes ambientes clínicos. | Embora possa ser importante para os pacientes escolher profissionais de saúde culturalmente similares, a qualidade de atendimento ainda pode ser prejudicada pelas formas de discriminação estrutural que afetam negativamente os médicos. Nos Estados Unidos, em comparação com pares brancos, médicos negros, em geral, trabalham mais isolados, têm menor probabilidade de serem indicados como especialistas e enfrentam mais dificuldades para internar seus pacientes em hospitais. Eles também são vítimas de racismo em avaliações por colegas, na promoção em hospitais, nos reembolsos pelos programas do governo (Medicaid e Medicare), em processos por prática irregular, na supervisão de planos de saúde privados e na obtenção de contratos de planos de saúde com atendimento gerenciado. Muitas vezes, por causa desse racismo, os pacientes enfrentam o dilema entre ter de escolher um profissional culturalmente adequado e um atendimento de alta qualidade. Organizações de saúde precisam coletar cuidadosamente dados e monitorar padrões que possam surgir na satisfação e experiência do médico, tomando as medidas necessárias para apoiar aqueles que sofrem essas discriminações.

Supere as barreiras que dificultam o acesso à escolha do médico. | O acesso dos pacientes aos serviços e aplicativos que facilitam a escolha pode não estar disponível por vários motivos – desde a falta de acesso à internet até barreiras de linguagem, analfabetismo ou diferentes capacidades. Os obstáculos de mobilidade relacionados a determinantes sociais da saúde também dificultam a escolha do paciente. Para promover equidade, as organizações precisam entender como esses fatores afetam as opções de atendimento médico, incluir pontos de acesso virtual nas comunidades e disponibilizar serviços de transporte para facilitar a escolha do paciente.

 

“Melhore as relações médico-paciente”

 

O relacionamento é a essência do atendimento. De modo geral, o atendimento médico mira principalmente o diagnóstico, e não a experiência do paciente com a doença. Mas a cura é um processo biopsicossocial – não apenas biológico –, no qual a vivência e o apoio são determinantes para os resultados. Isso significa que a qualidade do relacionamento médico-paciente afeta o processo de cura.

As pessoas criam suas próprias “narrativas” da doença, incluindo expectativas sobre as causas, diagnósticos e o curso do tratamento. Kleinman e Moerman argumentam que os médicos precisam extrair de seus pacientes informações detalhadas para evitar a dificuldade de comunicação cultural e fundamentar o tratamento em uma compreensão mútua. A comunicação, a gestão do atendimento, a adesão e a satisfação do paciente aumentam quando a compreensão da narrativa da doença se dá entre ele, a família e os médicos. A melhora do estado de saúde depende de como os profissionais discutem os planos de tratamento com os pacientes. Quando os médicos os encorajam a fazer perguntas e tomam decisões compartilhadas, a ansiedade diminui.

As narrativas da doença podem ser incorporadas no atendimento médico para melhorar a experiência do paciente e os resultados pretendidos. A medicina baseada em narrativa (NBM, na sigla em inglês) é uma abordagem que merece ampliação. De acordo com George Zaharias, especialista em educação médica, a NBM “muda o foco do médico, que passa da necessidade de resolver o problema para a necessidade de entendê-lo”, o que gera uma relação médico-paciente mais forte e resultados clínicos mais promissores. Zaharias explica que os pacientes procuram não só um alívio para os sintomas, mas também “explicações pessoal e socialmente significativas e tratamento psicossocial para a doença” que a NBM pode incluir no tratamento clínico. Alguns estudos demonstram que a abordagem ajudou a melhorar o bem-estar, reduziu a dor causada pelo câncer, aliviou a artrite reumatoide, melhorou a função pulmonar de pessoas asmáticas e aumentou a resposta imunológica depois da vacinação contra a hepatite B.

Várias ferramentas e estruturas ajudam os médicos a melhorar seu relacionamento com os pacientes quanto à narrativa. Por exemplo, a estrutura de Oito Perguntas proposta por Kleinman ajuda os médicos a obter informações detalhadas e discutir abertamente o que os pacientes pensam sobre o que os aflige. A “entrevista de formulação cultural” da Associação Americana de Psiquiatria, incluída no Manual de Estatística e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-5) para ajudar os médicos a entender o contexto cultural e social de seus pacientes pode ser adaptada a outras especialidades clínicas para facilitar a compreensão do ponto de vista do paciente. Nos Estados Unidos, bases de dados clínicos, como a EthnoMed e CultureVision, concentram informações sobre crenças e práticas de saúde de diferentes grupos culturais, que podem aflorar na discussão das narrativas da doença, e apresentam sugestões para um atendimento culturalmente adequado. Já a plataforma OurNotes permite que os profissionais de saúde registrem memorandos que os pacientes podem acessar.

Para melhorar o relacionamento médico-paciente, as organizações de assistência médica precisam oferecer aos profissionais de saúde um ambiente acolhedor e os recursos necessários. À medida que a infraestrutura e a governança para desenvolver a equidade do setor melhoram, as organizações começam a perceber que é preciso aumentar o tempo das consultas e apoiar com mais empenho certos contextos dos pacientes. As organizações precisam explorar como as ferramentas mencionadas podem ajudar os médicos a melhorar a experiência da consulta. Se houver mais incentivo na forma de treinamento na NBM ou no melhor detalhamento da narrativa da doença, o conhecimento dos médicos que não dispõem desse tipo de capacitação na faculdade de medicina pode melhorar.

Embora as narrativas da doença possam melhorar a comunicação entre médico e paciente, as disparidades no tratamento não são simplesmente uma questão de diferença cultural. É importante que as organizações monitorem como as disparidades se manifestam e procurem entender as barreiras ao atendimento de qualidade. Para se comprometer com o desenvolvimento de parcerias clínicas mutuamente benéficas e não paternalistas com diferentes comunidades, é preciso refletir criticamente, a fim de entender como a dinâmica do poder influencia cada etapa da jornada do paciente. Perguntas do tipo “quais diferenças de poder podem estar presentes nessa interação?” e “como devemos trabalhar para corrigir o rumo de relacionamentos de poder desiguais nesse caso?” podem ajudar as equipes a refletir e entender como o poder funciona – e como deveria funcionar de forma mais equitativa em suas instituições.

 

“Integre a competência estrutural ao atendimento”

 

Embora seja raro encontrar profissionais de saúde preparados para entender os determinantes sociais das doenças, existe uma consciência crescente de que fatores sociais e estruturais influenciam na saúde e no acesso a ela. A competência estrutural – a capacidade dos profissionais de saúde de entender e resolver as disparidades da área – está se tornando cada vez mais importante na prática da medicina.

Para lidar com a crise de confiança, a insatisfação e a disparidade dos indicadores do setor de assistência de saúde, é preciso olhar além das interações individuais com as estruturas institucionais e sociais. Qualquer preconceito racial, social ou econômico é um fator importante que afeta as disparidades e os indicadores de saúde. A Deloitte estima que os determinantes sociais de saúde – como renda, local de residência e qualidade do apoio social – determinam 80% dos seus produtos.

Modelos de assistência de saúde de comunidades mostram o que significa competência estrutural no atendimento médico. A assistência de saúde inclui os serviços oferecidos por uma grande variedade de especialistas que formam parcerias dentro das comunidades para oferecer assistência médica focada nas pessoas e criam sistemas resilientes. Os profissionais de saúde da comunidade (CHWs, na sigla em inglês) são pessoas dignas de confiança ou convidados respeitados que, por passarem a maior parte do tempo em meio a esses grupos, entendem melhor os contextos de saúde locais, as forças sociais que lá atuam e as disparidades sociais. Os modelos de assistência de saúde em comunidades também ajudam a resolver situações nas quais a localização física de clínicas e médicos limita o acesso do paciente ao atendimento médico.

Dois exemplos inovadores ilustram como usar a competência estrutural para reduzir as disparidades de saúde. A organização sem fins lucrativos Partners in Health (PIH) foi a primeira a aplicar um modelo de saúde de comunidade que melhorou radicalmente a equidade dos indicadores em alguns dos ambientes mais estruturalmente restritos e carentes de recursos no mundo. A PIH trabalhou com mais de 13 mil CHWs em dez países. No fim da década de 1980, a instituição percebeu que no Haiti os pacientes com tuberculose não se recuperavam devido às barreiras estruturais da assistência médica causadas pela pobreza extrema. A organização também comparou os resultados associados ao atendimento médico gratuito com seu próprio modelo, também gratuito, mas acompanhado por uma ampla rede de apoio socioeconômico. Os resultados foram surpreendentes: enquanto somente 56% dos pacientes foram curados e 10% morreram no primeiro grupo, no segundo o índice de cura foi de 100%. Atendimento de alta qualidade associado a um robusto apoio social tornou-se a marca registrada da PIH na abordagem da assistência de saúde comunitária.

Um modelo similar foi aplicado de forma pioneira pela Commonwealth Care Alliance (CCA), organização sem fins lucrativos que oferecia à comunidade planos de saúde com serviços pagos, ilustra como o atendimento integrado e o uso efetivo de CHWs pode ter um impacto significativo nas disparidades do setor. A base de beneficiários da CCA seria classificada pela indústria de planos de saúde como “difícil” de atender: em geral eram beneficiários do Medicare e do Medicaid, culturalmente diversificados, de baixa renda e com vários problemas complexos de saúde física, social e comportamental, entre os quais se incluem trauma e necessidades especiais.

A CCA acreditava que investir na assistência médica e no apoio social que promovesse o bem-estar holístico e um alto padrão de atendimento para os pacientes acabaria reduzindo os atendimentos emergenciais de alto custo. Enquanto a maioria dos sistemas de saúde mira o tratamento dos doentes, a CCA adota uma abordagem mais abrangente capaz de prevenir doenças, ajudar a administrar males crônicos e evitar atendimentos de urgência. O modelo de assistência da organização consiste em melhorar a atenção primária, com equipes multidisciplinares coordenadas, planos individuais, assistência à saúde comportamental integrada e equipes de atendimento domiciliar, hospitalar ou ambulatorial 24 horas, sete dias por semana. Em 2021, praticamente 60% dos beneficiários da CCA receberam ao menos um auxílio social, como transporte até internação para tratamentos não convencionais, acupuntura e massagem terapêutica.

A CCA obteve reconhecimento em nível nacional pela qualidade do atendimento e os resultados surpreendentes. Um estudo recente mostrou que os beneficiários da CCA que receberam em casa refeições preparadas de acordo com prescrições médicas durante pelo menos seis meses tiveram uma redução significativa no número de consultas de emergência e na utilização de outros serviços altamente onerosos, como internações hospitalares. O estudo destaca que oferecer refeições melhora a saúde e reduz os custos médicos. Os inscritos no atendimento sênior da CCA mostraram uma redução de 66% no número de casos de enfermagem domiciliar e uma redução de 48% em internações hospitalares, em comparação com os pacientes atendidos pelo Medicare ou Medicaid, além de uma redução geral nas despesas de terapias intensivas.

 

A cultura do cuidado é uma visão ideal que coloca o atendimento no centro da assistência de saúde. Os pacientes se sentem  empoderados quando podem escolher, eles e os médicos se  sentem  satisfeitos e respeitados em suas interações, e os  indicadores estão em sintonia com a experiência dos pacientes

 

PIH e CCA são dois exemplos inovadores de organizações de serviços de saúde que atendem pacientes em seus contextos locais e não só oferecem um serviço de alta qualidade para populações menos favorecidas como também trabalham para melhorar a equidade da saúde. Para incorporar a competência estrutural no atendimento médico, as organizações devem implementar a Ferramenta de Avaliação da Vulnerabilidade Estrutural, questionário que ajuda os médicos a identificar que pacientes provavelmente se beneficiarão dos serviços multidisciplinares. Além disso, é recomendável que os gestores do setor adotem as quatro práticas a seguir para incorporar a competência estrutural a suas organizações.

Divulgue as crenças e os valores a que se aspiram. | As empresas de assistência de saúde precisam priorizar a criação de valores organizacionais concebidos para alavancar as melhores práticas de modelos de saúde de comunidades, maximizar o impacto por meio de parcerias e investir na experiência da equipe.

Paul Farmer, cofundador do PIH, afirmava que todas as pessoas têm direito à saúde de qualidade com dignidade e respeito. Com a mesma ênfase, Christopher D. Palmieri, presidente e CEO da CCA, declarou no relatório anual de 2021 da entidade que acreditava em sua “abordagem inusitada” de atendimento médico para a comunidade. Para promover algo assim, os valores que a liderança defende devem ser incorporados ao treinamento e à prática das equipes. A CCA oferece, por exemplo, um teinamento inicial intenso sobre entrevistas motivacionais, atendimento traumatológico especializado e sensibilização cultural.

Promova as melhores práticas em saúde da comunidade. | Os CHWs precisam ser membros profissionalizados de equipes médicas, devem fazer parte da estrutura da organização e receber apoio, orçamento financeiro e tempo que permita que prestem serviço comunitário, não apenas médico.

Pense criativamente em parcerias que priorizam valores. | O impacto das organizações citadas foi maximizado graças a parcerias fortes. Os principais valores do PIH incluem formação de capacidade e colaborações verdadeiramente participativas com stakeholders locais que, na verdade, são aqueles que acabam contribuindo com recursos e conhecimento para manter a saúde das comunidades, em vez de depender de ONGs externas para suprir suas necessidades. As parcerias da CCA permitiram que ela ampliasse o atendimento em quatro estados, preenchesse os nichos nos mercados estaduais de assistência de saúde e consolidasse seu modelo de atendimento integrado. Além disso, um estudo de 2022 realizado por pesquisadores do Mass General Brigham (MGB) – sistema de saúde integrado sem fins lucrativos nos EUA –, mostra como grandes centros médicos de universidades podem formar parcerias eficientes com ONGs de atendimento primário de saúde em comunidades, como a CCA. Aproveitando a boa gestão de tratamento intensivo da CCA, a MGB conseguiu reduzir as despesas de saúde para beneficiários de alto custo e alto risco da Medicaid.

Invista na experiência e satisfação da equipe. | Incorporar a competência estrutural no atendimento médico pode tanto piorar como melhorar o burnout da equipe. Vários provedores de assistência médica já consideram como prática profissional obrigatória oferecer atendimento holístico e trabalhar para reduzir as disparidades de saúde sempre que possível. Se os profissionais da área tivessem a oportunidade de reduzir as vulnerabilidades de seus pacientes, provavelmente perceberiam a relevância de seu trabalho e se sentiriam mais satisfeitos. De acordo com o website de informações médicas Medscape, para os médicos de família americanos, contribuir para um mundo melhor é a parte mais compensadora do trabalho, depois de criar relacionamentos e sentir a gratidão dos pacientes.

 

“Mais saúde para todos”

 

As empresas de assistência de saúde mais preocupadas em entender a importância da cultura podem melhorar significativamente os sistemas de assistência de saúde para todos. A cultura do cuidado é uma visão ideal que coloca o atendimento no centro da assistência de saúde. Os pacientes se sentem empoderados quando podem escolher com quem e como se consultar, eles e os médicos se sentem satisfeitos e respeitados em suas interações clínicas, e os indicadores estão em sintonia com a experiência dos pacientes. Em resumo, cada uma das quatro alavancas da mudança trabalha em prol da equidade na saúde. Abordar os determinantes sociais, como fizeram o PIH e a CCA, pode não só contribuir para uma cultura do cuidado, mais também ajuda a curar a ferida social da dolorosa e injusta discriminação estrutural.

Os meios para a mudança e as recomendações servem de plataforma para as organizações começarem ou ampliarem o debate sobre como aproveitar as dimensões culturais que já existem tanto na vida dos pacientes quanto nos sistemas de assistência de saúde. Os promotores da assistência médica também promovem uma cultura – e ela pode ser alterada para melhorar a saúde de todos.

A AUTORA

Whitney Easton é antropóloga e pesquisadora-sênior da Artefact, empresa de design voltado para o humano, que trabalha nas áreas de assistência de saúde, educação e tecnologia.

Notas

1 Katherine A. Mason et al., “How Do You Build a ‘Culture of Health’? A Critical Analysis of Challenges and Opportunities from Medical Anthropology”, Population Health Management, vol. 23, no. 6, 2020.



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