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O Futuro é logo ali

A cidade de Tupã, no interior de São Paulo, aposta em uma tecnologia social ancorada na gestão participativa, desenha um aplicativo para compartilhamento de dados e mira combater a má nutrição infantojuvenil.

Por Maria Paula de Albuquerque e Maria Rita Marques de Oliveira

A participação de pesquisadores da Universidade Estadual Julio de Mesquita Filho (Unesp) e de gestores municipais de Tupã, cidade paulista a 514 quilômetros da capital do estado, em um Hackathon internacional, a convite da Rede Nacional de Pesquisa (RNP), serviu como elemento propulsor para o desenvolvimento de uma tecnologia social inovadora para o combate à má nutrição.

Realizado em 2021 pela RNP, órgão federal vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, o evento contou com a participação de representantes de universidades internacionais. Um Hackathon é uma maratona que “reúne equipes de programadores, designers e outros profissionais ligados ao desenvolvimento de softwares”, segundo definição da Fundação Oswaldo Cruz. Geralmente, costuma durar de um dia a uma semana, sendo “ambiente ideal para desenvolvimento da inovação e resolução de problemas”.

A troca de experiências tem papel central nesse tipo de interação. No caso presente, a proposta que surgiu entre os pesquisadores brasileiros (membros do Centro de Ciência, Tecnologia e Inovação para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Interssan/Unesp, e do Núcleo de Tecnologia Estratégicas em Saúde, da Universidade Estadual da Paraíba) foi a de desenvolver uma ferramenta digital que utilizasse inteligência artificial para apoiar pais e responsáveis, profissionais das áreas da saúde, educação e da assistência social nas ações de promoção da saúde e nutrição infantis.

Nascia assim o Tupã 2030, Programa de Promoção Integral e Sustentável da Saúde e Bem-Estar da Criança e do Adolescente. O nome é praticamente a síntese da missão estabelecida: “promover e proteger a saúde, a boa nutrição e o bem-estar de crianças e adolescentes, em ambientes saudáveis e sustentáveis”. A visão, ou o objetivo principal, é “estar entre os dez municípios do estado de São Paulo com menores índices de má nutrição (desnutrição e obesidade) em crianças e adolescentes até 2030”.

 

Direitos da criança

 

Essa proposta vem ao encontro de um ambiente receptivo ao trabalho intersetorial na Prefeitura de Tupã. Antes do projeto, as secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social já trabalhavam de forma colaborativa, formando a Rede Protetiva de Tupã. Esse organismo monitora os casos de violência e violação de direitos da criança, além de negligência de pais e responsáveis. A escola é o denominador comum entre as áreas. As famílias são acompanhadas a partir da presença das crianças na escola, verificando o cumprimento do direito à educação, em especial para aquelas acima de 4 anos. Mas também são verificados indícios de maus-tratos e outros problemas de que os menores possam ser vítimas. A Secretaria da Saúde monitora ainda a questão vacinal e o Centro de Referência da Assistência Social (Cras) faz o combate à violência contra a criança. Essa abordagem sistêmica já existente foi potencializada com o tema da nutrição infantil e abriu novas frentes de cooperação, na sociedade civil e na própria administração municipal.

Um exemplo disso é a participação da Secretaria da Agricultura, que passou a ter papel-chave no processo para aproximar produção e consumo de alimentos saudáveis. O engenheiro agrônomo Jorge Gonçalves Dias resume o espírito de colaboração que encontrou junto aos colegas de outras áreas. “Pela primeira vez nesses anos todos – e eu trabalho em prefeitura desde 1986 –, vi as secretarias trabalharem juntas, unidas. Isso foi muito gratificante. Fiquei estarrecido, pois o que a gente sempre vê é o individualismo entre os secretários, o que atrapalha muito”, relata o engenheiro.

 

O real e o virtual

 

Motivada pelo conceito de cidade-inteligente, a Prefeitura de Tupã tomou a decisão de fazer a gestão de todo o processo para cuidar do perfil nutricional das crianças por meio de Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Espera, com isso, obter maior eficiência operacional e compartilhamento de informações entre as diversas áreas da gestão e a população. Assim, Tupã terá seus dados agregados em nuvem e compartilhados entre os gestores municipais das diversas secretarias. Trata-se de um conceito da inteligência artificial, para que todo o sistema de governança alocado na nuvem facilite o acesso aos dados, dando agilidade à gestão por meio desses recursos tecnológicos.

Para isso, entre outras coisas, a ferramenta a ser desenvolvida deverá informar a localização dos ambientes favoráveis às melhores práticas de saúde, tanto do ponto de vista da aquisição de alimentos saudáveis como dos locais que estimulam atividades físicas diversas, como brincadeiras, lazer e esportes. No plano da gestão, o programa deverá trazer dados relativos ao estado nutricional e também sobre os ambientes favoráveis.

Em termos de software, tendo como público-alvo a população local, o objetivo é ter uma interface entre o cuidador (pai, mãe ou responsável) e o profissional responsável que está na ponta (saúde, educação, assistência social). Ou seja, é necessária uma interface bastante amigável, pois será utilizada por agentes comunitários, visitadores do programa Criança Feliz, a assistência social, os professores e outros profissionais da educação. Desse modo, o aplicativo não terá apenas informações sobre a criança, mas também alertas e orientações que ajudem as famílias e os profissionais. A ferramenta deve ter como parâmetros as políticas públicas já existentes, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança.

Para conseguir os recursos necessários para o desenvolvimento e implantação do aplicativo, a cidade entrou na Chamada de Propostas Eureka Globalstars 2022, iniciativa que reúne os governos de São Paulo (por meio da Fapesp, entidade local de fomento à ciência), da Suécia e da Alemanha. Para as organizadoras da iniciativa, o maior desafio é garantir a segurança dos dados a serem coletados, em função das rígidas normas da General Data Protection Regulation (GDPR), a lei europeia de proteção de dados, e da brasileira Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), redigida com base na legislação europeia. No caso de governos e empresas, é fundamental estar em dia com o cumprimento dessas legislações, sob pena de não ter acesso a oportunidades de acordos e negócios.

 

Participação coletiva

 

A decisão de qualificar os ambientes e de trazer de maneira pormenorizada práticas nutricionais e de saúde levou à conclusão de que o ideal para a introdução dessa filosofia seria o uso de metodologia participativa e que explorasse a intersetorialidade, potencializando os conhecimentos que cada secretaria municipal e representantes da sociedade civil podem trazer ao projeto. Dessa maneira, trabalhado de forma sistêmica, o tema da nutrição infantil e combate à obesidade ganha visão e objetivos compartilhados para que a cidade possa atingir seus objetivos.

Os problemas alimentares e nutricionais na infância se apresentam de modos diversos. Nas últimas décadas, o Brasil teve relativo sucesso no combate à desnutrição, restando como zonas mais críticas nesse aspecto as regiões Norte e Nordeste. A desnutrição apresenta como consequências mais diretas a baixa estatura e problemas de cognição, entre outros. Já no caso do Sudeste e do estado de São Paulo, em particular, há uma crescente preocupação com sobrepeso e obesidade, casos de maior prevalência entre as crianças, muito em função do apelo de alimentos ultraprocessados, como biscoitos, massas etc.

Com cerca de 65 mil habitantes, segundo projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020, a cidade de Tupã tem entre seus habitantes 7,3% (4.216) de crianças na primeira infância, ou seja, de 0 a 6 anos. A pontuação da cidade no Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH (IBGE/Pnud), é considerada alta, 0,771, segundo o último Censo disponível, de 2010. A renda per capita local é de R$ 26,7 mil (IBGE/2017). Com base também no Censo de 2010, a expressiva maioria das famílias pobres era beneficiária do Programa Bolsa Família (80,98%).

No que diz respeito à escolarização dessas crianças, 58,35% dos menores de 5 anos estavam matriculados em creches e pré-escolas em 2022. No ano de 2021, em meio à pandemia de Covid-19, a coleta de dados antropométricos (peso e altura) ficou abaixo dos 20% da população estimada nessa faixa etária, com a medição sendo feita apenas em 471 crianças. Destas, 3,82% apresentaram estatura baixa ou muito baixa. Um número mais de duas vezes maior, 9,13%, estava com peso elevado para a idade, enquanto 1,91 pesava menos do que deveria em relação à estatura. Desse grupo, 6,58% tinham indicação de magreza ou magreza acentuada. No outro polo, 14,23% tinham risco para sobrepeso (faixa limítrofe), 4,88% apresentavam sobrepeso e outros 4,25% estavam obesos.

Em relação ao Índice Município Amigo da Primeira Infância (Imapi), elaborado por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) em associação com a Universidade de Yale, em que são avaliados cinco aspectos (saúde; nutrição; cuidado responsivo; aprendizagem precoce; segurança e proteção), Tupã obteve 43 pontos, o que a coloca numa posição intermediária no cenário nacional (3.282 de 5.570 municípios, no total) e um pouco mais abaixo no ranking estadual (440 de 645 municípios). Os dados são um grande balizador para o objetivo da cidade de estar entre as dez mais bem ranqueadas do estado de São Paulo até 2030.

 

SUS, uma inspiração

 

Para dar sustentação técnica e teórica ao programa, algumas diretrizes internacionais e políticas públicas serviram de base. Um dos eixos centrais dessas diretrizes é o modelo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS), organismo que, além de eficaz, confirmou-se na pandemia de Covid-19 como grande referência para a atuação nos mais diversos territórios, por sua capilaridade.

Sua política de Atenção Primária à Saúde (APS), elemento de coordenação e ordenação dos cuidados integrados no território, considera esse campo de forma ampla e sistêmica. A partir dessa visão, o Programa Tupã 2030 se inspirou nas já mencionadas características de intersetorialidade e participação social e nas interfaces com políticas e diretrizes de Segurança Alimentar e Nutricional (San) existentes, como aquelas referendadas pelo Pacto de Milão (lançado em 2015 com adesão inicial de 100 cidades), o Sistema Nacional de Segurança Alimentar (Sisan) e o Plano Paulista de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan/SP).

 

Em busca de recursos para seu aplicativo, Tupã apresentou proposta no edital internacional Eureka Globalstars 2022, iniciativa da Fapesp.

 

O enfoque central dessas políticas baseia-se no acesso à alimentação saudável e sustentável, conceitos que estão contemplados no Direito Humano à Alimentação e que norteiam este projeto.

Outra referência ao se tratar da primeira infância é o documento Nutrição de Cuidados, proposto pela Organização Mundial da Saúde, que leva em conta os mesmos cinco domínios utilizados pelo Imapi (saúde; nutrição; cuidado responsivo; aprendizagem precoce; segurança e proteção). O modelo tem como objetivo favorecer a capacidade de resposta (ou responsiva) dos cuidadores (mãe, pai ou outros familiares e responsáveis), para que as comunidades saibam o que é necessário fazer e tenham à disposição serviços e orientação do poder público para que todos compartilhem o olhar sobre a primeira infância.

 

Área social à frente

 

Com as bases e princípios de trabalho definidos, enquanto a primeira versão do aplicativo – uma versão teste – era elaborada, o trabalho de organização foi adiante. Num primeiro momento, as secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social definiram quais servidores de cada área seriam os responsáveis por ações e acompanhamento. O secretário de Educação foi escolhido como ponto focal da construção do programa. Foi constituído um grupo de trabalho, denominado Grupo Gestor do Programa, do qual participam representantes das três secretarias, que já trabalhavam de forma articulada, como também das secretarias da Agricultura e da Cultura e Esportes. Desde então, esse grupo se reúne semanalmente, às sextas-feiras, para acompanhar a evolução das ações planejadas.

Houve ainda apoio do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), referencia nacional e internacional na prevenção e tratamento de má nutrição infantojuvenil, como consultor, e do Interssan, da Unesp, que trabalha para produzir e ampliar o acesso a tecnologias sociais e para o desenvolvimento de processos de gestão de políticas públicas e para a promoção de práticas alimentares que resultem em saúde e bem-estar.

Andréia Benício Loreto, diretora do Departamento de Creches-escolas foi uma das pessoas mais importantes dessas articulações, principalmente nos poucos casos em que foi preciso vencer as resistências de pais e responsáveis que ficaram temerosos do que poderia acontecer às crianças quando da realização da Chamada Nutricional, no segundo semestre de 2022.

“Muitos pais temiam que as crianças fossem assediadas ou que se machucassem. Fizemos um trabalho de esclarecimento para todos. Gravamos áudio no WhatsApp, explicando detalhadamente os procedimentos da Chamada Nutricional. Os diretores das unidades ajudaram disparando esses áudios nos respectivos grupos. Recebemos autorizações por escrito de todos para coletar os dados”, explica Loreto.

Antes disso, a diretora relata que os pais foram bastante receptivos ao convite para participar dos testes com o aplicativo. Todos foram comunicados, em creches e escolas, sobre a ferramenta que traria dados sobre a saúde das crianças a qualquer momento em que fosse consultada. A proposta era a promoção da saúde integral das crianças, começando por sua condição em termos alimentares.

Pronta a primeira versão-teste do programa, pais cujos filhos tinham registros dos dados de saúde a utilizaram durante mais ou menos uma semana. O teste foi acompanhado por pesquisadores da Universidade Estadual da Paraíba, outra parceira do projeto.

Segundo o relato de Loreto, a maioria gostou do aplicativo, mas foram registrados alguns problemas técnicos no seu desenvolvimento. Seria preciso que houvesse investimento financeiro para melhorar a usabilidade.

 

Fundamentos da mudança

 

Para conhecimento mútuo dos agentes sociais dos setores público e privado, das universidades e da sociedade civil, foi realizado um processo de aproximação, sensibilização, articulação e pactuação. Seminários virtuais uniram parceiros atuais e potenciais da prefeitura, escolhidos em função dos eixos do programa. A partir daí, um questionário levantou o interesse e a disponibilidade de cada um para cooperar com as ações, aferindo de que maneira poderiam fazê-lo (participação em reuniões, planejamento, atividades coletivas, oferta de instalações ou recursos etc.).

Os agentes sociais então foram ouvidos acerca do tema da nutrição infantil em Tupã e seus problemas para identificação dos recursos existentes. Com base na Teoria da Mudança, metodologia que visa à transformação social por meio da participação de stakeholders, conhecimento do problema em questão, definição de objetivos e formas de avaliar o desenvolvimento do processo, foram promovidos encontros com os segmentos envolvidos.

O diagnóstico teve como alicerce o roteiro criado pelo Interssan (instrumento de diagnóstico das ações locais públicas de soberania e segurança alimentar e nutricional no estado de São Paulo). Foram levantados os recursos disponíveis, ações, programas e políticas já existentes no município compatíveis com os objetivos do Tupã 2030.
Os grupos foram divididos por setores de atuação (educação, saúde, desenvolvimento social, agricultura, sociedade civil). Após o diagnóstico de “o que temos”, foram traçadas as metas de “o que queremos”.

Entre as políticas já disponíveis, foram levantados os dados do município como IDH, Sisvan (Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional), CadÚnico, cobertura de condicionalidades dos programas de transferência de renda, Tass (Taxa de Acompanhamento Agenda da Saúde) e o já mencionado Imapi.

Após o diagnóstico rápido, começou a construção da matriz lógica, elaborada também por meio de metodologias participativas. Antes da efetiva “mão na massa”, houve um painel com especialistas de universidades, mentores, pesquisadores e gestores e técnicos das cinco secretarias participantes.

Dois fóruns, o primeiro deles em novembro de 2021 e o segundo em abril de 2022, definiram as 113 ações prioritárias a serem realizadas e aquelas, entre estas, consideradas mais importantes e das quais as outras muitas vezes dependem.

O primeiro fórum teve mais de 250 participantes e metodologia participativa World Café (grupos divididos em mesas de discussões temáticas). Estiveram presentes membros da sociedade civil, técnicos e gestores das secretarias do município, do poder Legislativo e de universidades. Estes últimos se encarregaram de sistematizar e organizar as propostas em eixos temáticos e apresentá-las no segundo fórum, quando foram escolhidas as 30 ações prioritárias, distribuídas nas seis dimensões do programa: Cuidado, Proteção Social; Educação; Ambientes Saudáveis Disponibilidade e Regulação de Alimentos; Governança.

O II Fórum contou ainda com uma feira, da qual participaram agricultores familiares, artesãos, artistas e estudantes, com produtos e projetos relacionados à sustentabilidade e alimentação adequada (ver quadro na página anterior).

Cada uma das 30 ações prioritárias tem um órgão responsável, mas, como na lógica geral do projeto, deverá contar com a colaboração de outras unidades. A seguir, alguns exemplos dessas ações:

– Promover a parceria entre as áreas da saúde, educação e assistência social para o diagnóstico e monitoramento nutricional, por meio de antropometria e marcadores de consumo alimentar. Responsável principal: Secretaria da Saúde.Porém os programas educacionais, como o Saúde na Escola, serão um importante apoio, assim como visitas da assistência social.

– Promover discussões periódicas com envolvimento da comunidade para pensar em transformações que devem ser realizadas em cada bairro para valorizar a alimentação saudável e adequada para as crianças e seus familiares. Responsável: Educação.

– Oferecer oficinas de aproveitamento integral de alimentos; comercialização de alimentos in natura como ferramentas para geração de renda na agricultura familiar; oferta de oficinas de formação como compostagem, produção comunitária, participação em política pública, educação financeira e aproveitamento integral dos alimentos. Responsável: Agricultura, com apoio da Assistência Social.

– Ampliar as compras da agricultura familiar e o estreitamento das relações com os agricultores familiares, incluindo atividades de fim pedagógico. Responsável: Secretaria da Agricultura, com apoio da Secretaria da educação.

– Implantar a Lei de Segurança Alimentar Nutricional em Tupã – área de governança.

 

Da parte para o todo

 

O programa optou por usar indicadores já existentes para a primeira infância e classificação do desempenho comparativo com os demais municípios brasileiros. Há congruência entre vários dos indicadores do Primeira Infância e o programa Tupã 2030. Será necessário, no entanto, criar indicadores locais relativos a questões que dizem respeito ao âmbito regional, como ambientes saudáveis, disponibilidade e regulação de alimentos e governança.

Após a realização do II Fórum, algumas ações prioritárias já foram realizadas ou estão em curso. Duas delas entre as mais centrais são a Chamada Nutricional, já realizada, e o georreferenciamento de uma das regiões de Tupã, que servirá de piloto para o levantamento de ambientes saudáveis e análise de toda a área selecionada.

Nos meses de setembro e outubro de 2022, membros da Secretaria da Saúde, enfermeiros e técnicos, representantes e alunos do Instituto Federal e de escolas técnicas participaram do processo de medição de peso e altura das crianças de Tupã. Aparadas as arestas com os pais que ficaram receosos de os filhos participarem, 883 crianças passaram pelo processo. Para atingir esse número, foi preciso fazer uma “repescagem” do processo em novembro, pois algumas crianças não estavam nas escolas nos meses anteriores.

 

O trabalho em rede foi um dos princípios basilares do projeto, uma estrutura construtiva que gerou um processo vivo e orgânico.

 

 

A medição reconfirmou ou acendeu o alerta para o problema do sobrepeso e obesidade. O excesso de peso em Tupã é maior do que a média da região Sudeste, segundo dados do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), de 2019.

Apesar de apenas ligeiramente acima quando comparados aos índices do Sudeste, os números de Tupã para as três categorias de sobrepeso somam 30% do total aferido, ou seja, quase uma a cada três crianças.

No começo de 2023, começou a ser feito o georreferenciamento de uma área central da cidade para levantamento dos comércios locais e do tipo de alimentos que oferecem, se adequados e saudáveis, e para a qualificação dos espaços, como praças, parques e calçadas. O trabalho, que tem o apoio de estudantes da Unesp dos campi de Botucatu e de Tupã, valeu-se de um georreferenciamento feito em maio de 2022 para fins tributários.

A área escolhida para a ação tem, nas suas imediações, aparelhos públicos que a tornam ideal: num raio de 800 metros, há uma escola de educação infantil (Emei Profa. Enedina Botteon), com 260 crianças, e a Escola Estadual Profa. Irene Resina Migliorucci, com 150 alunos. A região conta com uma Unidade Básica de Saúde e uma unidade do Cras com prontuário eletrônico das crianças. Considerando suas famílias, calcula-se que a região tenha cerca de 1,2 mil habitantes. Uma vez terminado o processo, este será um local considerado promotor de saúde.

 

Desafio: trazer a indústria

 

A maior dificuldade de todo o processo foi ainda não ter um braço tecnológico no programa, pois este era um de seus pontos centrais, a partir do objetivo estabelecido no Hackathon. Por esse motivo, a busca pelo financiamento da Fapesp, em parceria com instâncias governamentais de outros países, tornou-se estratégica. Ainda que não tenha sido impeditivo para a construção do programa, a tecnologia facilita e potencializa as ações previstas. Os sistemas de informação são fundamentais para orientar a formulação de políticas nacionais e regionais. A desagregação de dados é estratégica para tornar as políticas sensíveis ao objetivo da equidade. Para que esse caminho seja atingido é preciso que haja integração entre sistemas de informação, criação de parcerias e redes com instituições acadêmicas e científicas para estabelecer sistemas abrangentes de vigilância. Neste momento, esse parece ser o maior desafio a ser suplantado.

Outra dificuldade foi a baixa participação da indústria local, que não se mobilizou para apoiar a iniciativa. Eles são stakeholders muito importantes, pois há na cidade uma significativa indústria de alimentos e pontos comerciais.

A pandemia foi outro empecilho, pois obrigou que se trabalhasse de forma remota num projeto que envolve uma escuta atenta sobre os problemas locais. Como boa parte da população não tem meios de acesso digital, isso impediu uma participação social mais ampla. Em contrapartida, a governança sempre foi a alma do projeto, com um grande comprometimento da gestão municipal. A oferta de recursos humanos, políticos e financeiros foi fator decisivo para que a intersetorialidade ocorresse.

Na ausência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (Consea), ou de outros de espaços democráticos, isso foi muito importante, principalmente num projeto que começou em maio de 2021, depois de o governo federal extinguir o Consea. E também considerando que São Paulo é um estado de baixa adesão ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

Além disso, Tupã conta com uma sociedade civil atuante, que trabalha com hortas comunitárias, tem várias ONGs, entre elas a Casa da Criança de Tupã, que oferece cursos e é bastante presente, com intensa participação nos fóruns de construção. Também o Rotary Clube local foi atuante, assim como a colônia oriental (japonesa), que tem um núcleo cultural na cidade. Houve costura com essas diversas vozes da sociedade civil, que foram chamadas a participar do programa.

O trabalho em rede foi um dos princípios basilares do Tupã 2030, uma estrutura construtiva que gerou um processo vivo e orgânico. Aspectos metodológicos foram incorporados ao longo do percurso, com a introdução de novos referenciais ao processo. Por esse motivo, sem abrir mão de uma lógica de produção acadêmica e rigor científico, optou-se pela realização de pesquisa participativa baseada em políticas preexistentes. Para tanto se abriu mão do método de estudo clínico controlado.

O programa Tupã 2030 traz em sua experiência a premissa do olhar sistêmico em relação às ações preconizadas para o enfrentamento da sindemia global. Sindemia esta que comporta três importantes pandemias simultâneas e apresenta determinantes em comum: obesidade, desnutrição e mudanças climáticas. O programa propõe caminhos que enfrentam a inércia política para a promoção de um sistema alimentar mais resiliente, sustentável, promotor da saúde e de justiça social. É o pensar global e agir local.

 

AS AUTORAS

Maria Paula de Albuquerque é pediatra e nutróloga, doutora pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp), membro do Departamento de Fisiologia da mesma escola, vice-coordenadora do grupo de pesquisa Nutrição e Pobreza, do Instituto de Estudos Avançados da USP, gerente-geral clínica do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren).

Maria Rita Marques de Oliveira é nutricionista, mestre pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e doutora pela Universidade de São Paulo. É docente do Instituto de Biociências de Botucatu (Unesp). Coordenadora do Centro de Ciência e Tecnologia em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional da Unesp (Interssan).



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