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Merendeiras do Milênio

Município de Sergipe implanta modelo tecnológico de oferta da merenda que integra agricultores familiares, merendeiras e escolas; detecção da anemia foi o ponto de partida para fazer a saúde contribuir para o desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes.

Por Fernando Antonio Basile Colugnati

Santa Luzia do Itanhy é um pequeno município ao sul de Sergipe, quase fronteiriço com a Bahia e a famosa Mangue Seco, onde foi ambientada a novela Tieta do Agreste, baseada no romance de Jorge Amado, sucesso televisivo em 1989. Sua realidade, no entanto, é bem diferente daquela do santuário turístico baiano, apesar de distante apenas 32 quilômetros.

Mais antigo povoado de Sergipe, fundado por jesuítas em 1575, Santa Luzia se estende por 325 quilômetros quadrados, com uma população de 14 mil habitantes e uma rarefeita densidade de ocupação: menos de 40 pessoas por quilômetro quadrado. Sua população se espalha por 11 pequenos povoados e, desde 2020, é beneficiária do projeto NHAM, Nutrition for a Health and Appetizing Meal (algo como nutrição para refeições saudáveis e apetitosas). O programa tem como objetivo a promoção da “Segurança Alimentar e Nutricional nas escolas públicas por meio do emprego da ciência de dados, qualificação e protagonismo das merendeiras e integração com a agricultura familiar”.

 

Uma das ações estratégicas do projeto é a conquista da adesão das merendeiras escolares, apoio vital para mudança da cultura alimentar.

 

O projeto é mais um desdobramento das ações do Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI) na cidade, onde atua de maneira sistemática desde 2009. Foi então que, com objetivo de oferecer tecnologias sociais que pudessem melhorar as condições de vida locais e, posteriormente, serem replicadas em outras localidades, o instituto transferiu sua sede de São Paulo para Santa Luzia.. Três anos antes, ainda em São Paulo, o IPTI começou a desenvolver um medidor de hemoglobina de baixo custo, a partir de coleta de sangue por punção digital. Batizado de Agabê (ou Hb), o medidor é uma tecnologia social para verificação dos níveis de ferro no sangue e detecção de casos de anemia, comuns em regiões onde as populações estão submetidas à insegurança alimentar.

O aparelho foi desenvolvido depois de o IPTI vencer um edital promovido pelo Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o órgão paulista de fomento à pesquisa. Ao lado de São Paulo e regiões ribeirinhas da Amazônia, Santa Luzia foi um dos campos de teste escolhidos para validação do Hb. A eficácia do método foi comparada à medição em laboratórios que realizam a extração de sangue pelo método tradicional e, no caso do município sergipano, para que se avaliasse uma intervenção junto às escolas para tratamento de crianças e adolescentes diagnosticados com anemia.

A partir de 2010, testes apontaram uma alta prevalência de anemia em Santa Luzia do Itanhy, registrando números cinco vezes maiores do que a taxa média nacional. Eram mais de 50% de crianças e adolescentes acometidos pela doença, contra números na casa dos 10% no país. Com supervisão de uma equipe multidisciplinar coordenada por um médico e a ingestão de sulfato ferroso (FeSO4), os índices baixaram para patamares próximos à média nacional em cerca de quatro meses.

Mas, além desse efeito positivo, a experiência serviu também para que, ao longo dos anos e depois de ações diversas, houvesse a associação de questões que indicavam ter forte inter-relação: o combate à anemia, a nutrição saudável e o desempenho escolar. Já com a ideia de levantar e analisar dados que auxiliassem a gestão do sistema escolar e os resultados dos estudantes, foi criada a Tecnologia de Apoio à Gestão (TAG).

Desenvolvida de forma colaborativa entre 2011 e 2014 com a participação de pesquisadores do IPTI e técnicos administrativos das escolas de Santa Luzia, a TAG nada mais é do que um sistema informatizado de gestão que roda online ou offline e está integrado aos dados do Censo de Educação Básica, o Educacenso, com informações de todo o Brasil levantadas pelo Inep/MEC. Hoje presente em mais de 16 municípios, depois de ser selecionado para o Guia de Tecnologias Educacionais do Ministério da Educação em 2015, a TAG cumpre um dos objetivos estratégicos da mudança do IPTI para Sergipe: o de fazer de Santa Luzia do Itanhy uma incubadora global de tecnologias sociais.

Nasce um programa

 

Como relembra Saulo Barreto, engenheiro civil e fundador do IPTI, “a segurança alimentar já estava no nosso radar desde 2014”. De lá até 2020, ano em que o NHAM foi lançado, o IPTI conseguiu a captação de aportes financeiros significativos, como da global Bayer, que, além de apoiar um projeto para monitoramento de vetores epidemiológicos, também se mostrou interessada em apoiar a agricultura familiar.

Após a intervenção medicamentosa para resolução do problema da anemia e de posse da informação de que alguns problemas crônicos da infância e da adolescência, como diabetes, hipertensão, anemia, sobrepeso e obesidade, estão comprovadamente ligados a uma alimentação deficiente, o próximo passo foi analisar como fazer para que a merenda escolar se tornasse um diferencial positivo. E, com isso, criar possibilidades para melhorar o desempenho escolar.

O programa tomou forma a partir de um projeto-piloto que contou com a elaboração de cardápios não só saudáveis, mas também adaptáveis às condições das oito escolas públicas e 2.800 estudantes da rede municipal. Prevê o fornecimento de alimentos por agricultores familiares não só para atender à determinação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que estabelece que ao menos 30% do valor dos produtos da merenda sejam de produtores locais, mas que essa meta seja ultrapassada.

 

Um aplicativo conecta a administração da escola à central de abastecimento, permitindo a gestão online dos alimentos disponíveis.

 

No caso dos cardápios, o NHAM propõe, além de um cardápio geral que atenda à maioria das crianças, dietas específicas para aqueles que apresentem problemas derivados de alimentação insuficiente ou inadequada, como as crianças anêmicas ou obesas, por exemplo. Para que as merendeiras das escolas tenham acesso a essa variedade de cardápios, entra em campo o uso computacional, com o cruzamento da gestão pela TAG com a tabela brasileira de composição nutricional, TACO.

Como nem sempre as escolas dispõem de todos os alimentos recomendados nos cardápios, um modelo computacional baseado em inteligência artificial permite, com o acesso a dados sobre alimentos disponíveis em estoque, indicar para as merendeiras por qual alimento substituir aquele ausente. Por exemplo, num cardápio composto pela batata, ela pode ser substituída por mandioca ou batata-doce. Assim, há vários tipos de cardápio que auxiliam o trabalho das merendeiras, seja em função de necessidades nutricionais específicas, seja em função da oferta de alimentos na despensa da escola.

Esse modelo preditivo de substituição foi desenvolvido por pesquisadores do Departamento de Ciências da Computação da Universidade Federal de Juiz de Fora, a partir de métodos de aprendizado de máquina (machine learning). Para que isso fosse possível, houve desenvolvimento e aprimoramento das bases de dados envolvidas nesse sistema.

O protagonismo das merendeiras

 

O papel da computação, no entanto, vai até um certo ponto. Apesar da robustez dos dados e da inteligência utilizada para os cardápios, foi preciso ainda enfrentar uma outra barreira: a da cultura alimentar das comunidades que, por razões diversas, resistem a abrir mão de seus hábitos. Questões como a facilidade trazida por produtos industrializados, processados e ultraprocessados, a sedução que eles promovem no imaginário infantil e a crença dos pais de que o açúcar é um condimento essencial parar tornar diversos alimentos mais palatáveis para as crianças.

Por esse motivo, a adesão mais importante ao NHAM é das merendeiras que, como define a nutricionista do projeto, Rita de Cássia Lisboa Ribeiro, são grandes referências de suas comunidades. Esse, aliás, foi um dos problemas encontrados na implantação inicial. Das quatro escolas selecionadas para o projeto-piloto, duas delas acabaram desistindo em função da falta de apoio de merendeiras e diretoras escolares. A percepção era de que a iniciativa traria carga maior de trabalho para elas. O problema foi solucionado com a substituição das unidades por outras três escolas. Em 2023, há cinco escolas e 12 merendeiras engajadas no projeto.

Rita Ribeiro mantém contato diário com essas profissionais desde janeiro de 2021, quando foi contratada. O primeiro passo de sua atuação foi realizar um trabalho de sensibilização, sempre que possível em conjunto, ouvindo os relatos sobre quais comidas elas traziam na memória. Os relatos apontaram para pratos feitos por suas mães ou avós, numa relação de afeto que valoriza a alimentação. Aos poucos, essas merendeiras foram sendo integradas às escolas, numa tentativa de mudar a história de exclusão que viviam até então, alijadas da participação no planejamento de suas unidades, por exemplo.

 

O modelo de avaliação escolhido permite ajustes e adequações metodológicas, algo recomendável para implantar projetos na área de saúde.

 

A rotina das merendeiras é bastante sobrecarregada, por isso a sugestão de alterações no seu trabalho pode deixá-las reticentes. À medida que recebem os alimentos da central, devem identificá-los, separá-los e planejar seu uso para o atendimento contínuo das crianças. Por esse motivo, os cardápios previamente pensados pelo sistema e a listagem do que está disponível no estoque, além das possíveis substituições, ajudam a organizar os dias, que às vezes preveem um cardápio de preparo mais fácil.

Aquelas que trabalham em creches entram às 6h30 ou 7h da manhã e já oferecem um mingau para as crianças. Preparam o lanche e o almoço e pouco depois das 11h vão para casa, retornando às 13h. Na linha de valorização das profissionais, o NHAM promoveu oficinas em que a nutricionista ensinou algumas técnicas de preparo, procurando valorizar tradições locais. Também houve uma oficina com a chefe Janaina Rueda, do restaurante paulistano Dona Onça.

Com a adesão das merendeiras, alguns hábitos estão mudando. Os sucos agora recebem bem menos açúcar. O sal e o caldo de carne ou galinha industrial estão sendo trocados por temperos naturais, como cebola, açafrão, coentro e outras coisas que dão sabor à comida.

“Temos evoluído para merendeiras mais conscientes e independentes, mais preocupadas com a alimentação saudável. Elas já se veem como promotoras da segurança alimentar e nutricional”, diz Rita de Cássia.

Elas estão, inclusive, promovendo um movimento ao lado dos professores para pedir que os pais não mandem alimentos industrializados para os alunos, como biscoitos recheados, sucos e achocolatados de caixinha. Fizeram um painel com imagens mostrando, de forma comparativa, tubinhos com sal e açúcar de alimentos processados e outros naturais. “Já tivemos casos de os pais levarem açúcar para a escola, pensando que estava em falta ou o município não queria fornecer”, relembra Saulo Barreto.

 

Abastecimento e produção local

 

Como em outros municípios situados em regiões muito extensas, Santa Luzia do Itanhy também enfrenta o problema da dificuldade de acesso dos produtores locais à central de abastecimento. Isso torna mais difícil o cumprimento da meta de 30% de produção local na composição da merenda escolar, como determina o Pnae. A lógica dessa medida é clara: incentivar a produção e a economia locais, desenvolver o cultivo e baratear a logística.

No entanto, as grandes distâncias entre a central e os povoados da cidade tornaram estratégico o uso de um sistema de gestão central de abastecimento, vinculando os estoques ao consumo das escolas e ao produtor rural. Com essa finalidade, foram desenvolvidos aplicativos que dão agilidade aos processos.

 

Ainda não há, na literatura acadêmica, estudos que apontem o impacto positivo da inteligência artificial para a alimentação escolar.

 

O app central conecta a administração de cada unidade escolar à central de abastecimento, permitindo a gestão, recepção e consumo de alimentos e ingredientes. Além da gestão de estoques, o sistema permite também a automatização da gestão da demanda. O aplicativo do agricultor dá vazão a algumas demandas, tais como: que o produtor familiar se conecte à central de abastecimento; que mostre suas ofertas via sistema; mediar as compras e as entregas feitas pelo agricultor. Tudo isso em uma interface simples e o mais visual possível.

Em médio prazo, essa integração com o agricultor prevê um modelo preditivo para informar os produtores sobre as principais demandas do município em relação à alimentação escolar, permitindo a escolha estratégica de culturas para que possam vender com mais segurança sua produção. Um terceiro aplicativo, este ainda esperando uma solução para que seja autorizado pela Vigilância Sanitária, é o app dos taxistas, que permitiria que eles fossem uma alternativa para transporte de produtos que não necessitem de resfriamento. Já desenvolvido, o aplicativo mostra aos motoristas as ofertas dos agricultores, origem, destino e preço, além de fazer o controle da entrega. Seu funcionamento seria integrado ao sistema central.

 

De onde vem o dinheiro

 

A primeira etapa do NHAM recebeu em 2021, por meio de um Termo de Fomento, um financiamento de R$ 367 mil do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Santa Luzia do Itanhy, em acordo firmado com o IPTI. O termo contemplava dois grandes objetivos iniciais. O primeiro era fazer a correlação entre as demandas das escolas e a produção dos agricultores familiares, por meio do desenvolvimento do app e dos modelos preditivos. O segundo foi o de valorizar a utilização pelas escolas de alimentos produzidos localmente. Isso foi feito a partir da perspectiva da segurança alimentar, com ênfase nas oficinas com as merendeiras e no desenvolvimento da base de informações disponível no TAG para a gestão da alimentação escolar. Ambas as metas foram cumpridas. O destaque do processo foi o engajamento das gestoras da Secretaria de Educação local.

Aporte importante para a sustentabilidade do projeto, de R$ 1 milhão, foi feito pela Bayer, parceira do IPTI desde o financiamento do Aplicativo Vetores, para controle epidemiológico. Além disso, encontra-se em análise proposta feita no edital Natural One, para a realização de atividades educacionais previstas para 2023, com as merendeiras atuando como multiplicadoras dos conceitos de alimentação saudável. O projeto prevê a edição de material didático e aulas a serem ministradas pelas profissionais da cozinha para os estudantes da rede pública.
Implementação: nova ciência

Projetos de caráter inovador, em especial aqueles concebidos para se tornar política pública, devem ser avaliados desde o nascedouro para que se saiba se o problema ao qual tentam responder foi adequadamente formulado e delimitado. Para isso, o tipo de avaliação hoje mais recorrente é a ex-ante. A partir do desenho de implementação da solução, cada etapa tem sua viabilidade analisada sob os aspectos operacional, econômico e social, submetendo-se a proposta aos ajustes eventualmente necessários, sempre procurando prever a possibilidade de erros posteriores e otimizar o uso de recursos públicos.

No caso de uma tecnologia social que visa atuar na condição de saúde de uma determinada população e que ainda esteja em fase de desenvolvimento e implementação-piloto em um único município, esse tipo de avaliação permite ajustes e adequações metodológicas. Isso garante uma proposta de modelo final ancorada em evidências científicas e boas práticas comprovadas.

A ciência da implementação (Implementation Science, IS), área recente das ciências da saúde, apresenta convergência em termos de estruturação científica com a avaliação ex-ante voltada à implementação de uma tecnologia para a saúde. Isso pode se dar nos âmbitos populacional, clínico ou da medicina interna.

Segundo a pesquisadora nigeriana Pascale Alottey, da Organização Mundial da Saúde, a ciência da implementação pode ser definida como “a pesquisa aplicada que visa desenvolver a base de evidência crítica que informa sobre a adoção efetiva, sustentada e integrada, de intervenções em sistemas de saúde e comunidades”.

Assim, a IS será o arcabouço metodológico para a avaliação ex-ante do NHAM. A estruturação metodológica utilizará a abordagem conceitual estruturada pelo PARiHS (Promoting Action on Research Implementation in Health Services), pois a tecnologia sob avaliação já contém informações sobre sua implementação preliminar em Santa Luzia de Itanhy. Essa ferramenta possibilita a avaliação em duas etapas:

1. Diagnóstico e avaliação de medidas de efetividade de elementos e subelementos que compõem a tecnologia, trazendo à luz evidências e conceitos;

2. Utilização dessas informações e dados agregados para propor métodos mais adequados de facilitação para a implementação da tecnologia.

Como a tecnologia NHAM está estruturada em várias frentes, estas devem ser avaliadas de forma independente no que diz respeito às evidências identificadas. Esta avaliação buscará apontar, assim, pontos fortes, limitações e eventuais gargalos detectados até então em todas as frentes que compõem a tecnologia. Todas as buscas de evidências, como as exemplificadas abaixo, serão realizadas nas plataformas BVS (www.bvs.org) e PubMed, estando disponíveis para busca no link do Open Science Framework: https://osf.io/pbvgt/

 

1. Associação de condições nutricionais com desempenho escolar

 

Entre todas, esta é a frente que mais encontra respaldo científico, sendo também a mola propulsora do NHAM, depois de verificados os resultados do projeto Agabê (Hb). Trabalhos recentes foram publicados mostrando o papel de uma nutrição adequada no desempenho escolar, medido de diversas maneiras. Meta-análise realizada com os critérios rígidos desse tipo de estudo encontrou nível moderado de evidência desta associação. No entanto, isso se deve ao fato de a grande maioria desses trabalhos ter delineamento transversal, o que resulta num decréscimo do nível de evidência final do resultado combinado.

 

2. Algoritmos de inteligência artificial na montagem de cardápios adequados a partir da oferta e demanda dos estoques de produtos

 

A elaboração de menus nutricionalmente adequados e concebidos por computador remonta à década de 1960. Nos anos 1990, foram realizados trabalhos mais expressivos com o uso de computadores pessoais. Mais recentemente, houve incremento a partir do emprego de algoritmos de aprendizagem de máquina e inteligência artificial (IA).

Entretanto, não há literatura acadêmica sobre esse tipo de utilização de IA, principalmente em relação à alimentação escolar. A maioria dos trabalhos está direcionada a pacientes hospitalizados, portadores de doenças crônicas (hipertensão, diabetes) ou à população em geral. Os artigos costumam trazer os algoritmos ou métodos utilizados. Raramente há estudos com dados primários, sendo inexistente até então a evidência de que esse tipo de tecnologia impacta a condição de saúde.

Os algoritmos do NHAM foram testados pela equipe de desenvolvimento do projeto, e a validação foi apenas interna. De todo jeito, fica claro que a tecnologia traz benefício para o controle de estoque. Mas as validações dos diversos tipos de menu carecem ainda de análise formal de especialistas em nutrição, com desenho experimental de fácil execução.

3. Inserção das merendeiras como atrizes fundamentais na gestão e oferta dos cardápios

 

Há pouca literatura especializada a respeito do papel das merendeiras tal como desenhado no NHAM (e descrito anteriormente neste artigo), como agentes centrais e criativas da segurança alimentar nas escolas. Em 2011, a pesquisadora Catarina Lima Leite, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e seu grupo, da mesma instituição, relataram um programa de formação com objetivos bem semelhantes aos do NHAM, registrando bom resultado preliminar de oficinas, porém sem continuidade e implementação.

Outro programa de educação em saúde baseado na escola inclui os profissionais, inclusive merendeiras, na prevenção a parasitoses, muitas delas associadas à higienização de alimentos. No entanto, não há avaliação quantitativa acerca dessa intervenção, apenas relatos.

A adesão de escolas e merendeiras não foi imediata ou total ao NHAM. Foi necessário fazer a substituição de escolas. A possibilidade dessa rejeição inicial acontecer em outros casos pode se transformar num gargalo em uma escala maior, assim como a não aceitação, por parte de alunos e suas famílias, dos cardápios com valores nutricionais adequados.

 

4. Abastecimento das escolas por meio da produção local de hortifrútis e demais alimentos da merenda

 

Diversos trabalhos avaliaram as compras realizadas pelos municípios com a verba do Pnae. Em nível nacional, o quadro é bastante heterogêneo, mas, de forma geral, os municípios que atendem à exigência do Pnae de ter 30% de suas compras oriundas da agricultura familiar contemplam também as diretrizes de alimentação saudável.

Nos trabalhos que investigam essa questão, a maior barreira encontrada é a visibilidade do produtor ante a sociedade. Principalmente nas cidades maiores, há um menor empenho da verba da merenda na agricultura familiar, provavelmente pela dificuldade que eles têm de concorrer com grandes varejistas e também pela presença de entrepostos, como Centrais de Abastecimento (Ceasas).

Por esse motivo, o aplicativo do NHAM busca melhorar a conexão entre o produtor e o centro de distribuição, sendo assim uma peça-chave do programa. Há, no entanto, barreiras de infraestrutura, como a indisponibilidade de acesso à internet em vários pontos da cadeia produtiva, a falta de aparelhos celulares que consigam rodar os aplicativos e a dificuldade dos produtores locais em função de seu baixo nível de letramento.

 

Modelos replicáveis

 

Pelo que constatamos até agora, as ações e instrumentos utilizados pelo NHAM são condizentes com as evidências científicas sobre alimentação escolar saudável e suas consequências em saúde e educação.

As ferramentas computacionais possuem objetivos claros e simples e, pelas indicações até o momento, funcionam e se relacionam de forma adequada e coesa quando confrontadas com o objetivo do projeto. Pelos relatos da equipe do IPTI, os módulos utilizados por usuários responsáveis pela gestão das escolas e da central de distribuição tiveram boa aceitação e usabilidade aprovada.

No caso dos produtores, a usabilidade ainda necessita de adequações em função das limitações destes no que tange à escolaridade e familiaridade com meios tecnológicos. A carência de smartphones, vitais para o uso dos aplicativos, também acaba sendo uma barreira. Muitas famílias têm apenas um aparelho, com uso múltiplo por seus membros.

Outro ponto ainda a ser destravado é a adequação dos táxis para transporte de alimentos, segundo as exigências da Vigilância Sanitária. São questões pontuais que devem ser superadas nas próximas etapas do NHAM. A lógica do programa, no entanto, mostrou-se sólida em relação à atuação em diversas frentes, como na saúde e nutrição infantil, mudança de hábitos alimentares, adesão das merendeiras e educadores, valorização dos agricultores, agilidade e otimização de custos na oferta dos ingredientes saudáveis.

 

O AUTOR

Fernando Antonio Basile Colugnati é mestre em Estatística (Unicamp) e doutor em Ciências (Unifesp). É membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Tratamento em Nefrologia, do departamento de Internato/FaMed/UFJF. É coordenador científico do Programa de Pós-Graduação em Saúde – FaMed/UFJF.

 



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