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Em Busca da Desejada Nutrição Saudável

A consolidação de uma boa legislação e a priorização de recursos para proteção social fizeram o Brasil sair do mapa da fome. Agora, depois de retrocessos legais e da pandemia, é preciso reaprumar as políticas públicas e garantir o direito à alimentação saudável.

Por Luana Silva de Oliveira, Mariana Ribeiro, Juliana de Paula Matos e Ana Paula Bortoletto Martins

Em 1946, o recifense Josué de Castro (1908-1973), médico de formação e geógrafo, trouxe um novo ponto de vista analítico acerca dos problemas alimentares e nutricionais de diversos países, tendo o Brasil como foco principal. Em seu livro Geografia da fome, ele leva em consideração os contextos histórico, geográfico, político, socioeconômico e cultural. Ressalta aspectos como a baixíssima diversidade alimentar, carências nutricionais e as diferentes expressões da fome em cada região brasileira. Quase 80 anos depois, o Brasil ainda enfrenta grandes desafios para a garantia do direito à alimentação adequada para toda a população e, principalmente, para crianças e adolescentes.

Este artigo apresenta a evolução dos indicadores de segurança alimentar e nutricional no Brasil, com enfoque em adolescentes e crianças. São destacadas as principais consequências em termos de saúde e nutrição em relação aos padrões de consumo alimentar desses grupos populacionais. Incluímos os aspectos mais relevantes e determinantes das causas da má nutrição. O artigo apresenta, ainda, as políticas públicas que mais contribuíram para a melhoria da saúde e nutrição em crianças e adolescentes, realçando os fatores essenciais para a redução da insegurança alimentar no país e seu retorno posterior. Por fim, são apontados os caminhos a percorrer para o enfrentamento da atual situação de má nutrição, considerando os obstáculos e as políticas públicas decorrentes de evidências científicas.

 

Fome: um breve panorama

 

Para que se pudesse compreender de forma ampla a insegurança alimentar e nutricional, fenômeno complexo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adotou, a partir de 2003, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). A Ebia é uma metodologia que dialoga com o conceito de segurança alimentar e nutricional e identifica situações de falta de alimentos vividas pelas famílias antes de seus integrantes serem afetados por consequências negativas para a sua saúde. Sua utilização com amostras representativas da população permite o acompanhamento da (in)segurança alimentar no país.

Com a Ebia, tornou-se possível avaliar as condições alimentares da população, a partir da caracterização de quatro níveis:

1. segurança alimentar – quando não há preocupação com a falta de alimentos;

2. insegurança alimentar leve – quando uma família não tem certeza sobre o acesso à alimentação no futuro ou quando a qualidade da comida diminui para garantir alimentos em quantidade suficiente;

3. insegurança alimentar moderada – nos casos em que a quantidade de comida começa a diminuir em um domicílio;

4. insegurança alimentar grave – quando uma família já deixou de comer o suficiente, ou seja: quando a fome se instalou de forma cotidiana.

O gráfico desta página apresenta a tendência dos níveis de insegurança alimentar no Brasil segundo a Ebia. Entre 2004 e 2013, a Segurança Alimentar (SA) saltou de 64,8% para 77,1%, um aumento significativo. No mesmo período, a Insegurança Alimentar (IA) grave caiu de 9,5% para 4,2% e a moderada teve redução de 12% para 6,1%. Em 2014, a situação era tão favorável que o Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome, segundo o relatório Estado da Insegurança Alimentar no Mundo, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Apesar dos êxitos alcançados na primeira década do século 21, os indicadores da Ebia disponíveis em 2018 mostram que o cenário favorável foi interrompido, de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Com a pandemia de Covid-19 e com o desmonte das políticas públicas observado a partir de 2016, a redução da segurança alimentar foi ainda mais intensa, caindo para 44,8% em 2021 e 41,3% em 2022. Os dois Inquéritos Nacionais sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 retratam ainda um quadro de insegurança alimentar grave, ou seja, 15,5% da população está passando fome (cerca de 33 milhões de brasileiros, segundo dados de 2022 da Rede Penssan). Tal situação é ainda mais grave em domicílios com a presença de crianças menores de 10 anos, em que a SA alcança apenas 33% do total e a insegurança alimentar moderada e a grave, somadas, já chegam a 37,8%, pelo mesmo levantamento.

 

Os produtos ultraprocessados são obtidos por meio de fracionamento, extração e transformação de alimentos in natura.

 

O agravamento da insegurança alimentar e da fome no Brasil foi registrado também no Relatório sobre Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo (SOFI), publicado pela FAO em conjunto com outras agências internacionais em 2022. O documento registra a volta do Brasil ao mapa da fome no mundo.

As consequências imediatas da insegurança alimentar para a saúde das crianças e adolescentes estão relacionadas à má nutrição em todas as suas formas. O conceito se refere a deficiências, excessos ou desequilíbrios provocados por padrões alimentares inadequados ou não saudáveis e aborda três grupos de condições, segundo categorização da Organização Mundial da Saúde (OMS):

1. desnutrição, que inclui baixo peso para altura, baixa estatura ou baixo peso para idade;

2. deficiência de micronutrientes, incluindo falta de vitaminas e minerais ou excesso de micronutrientes;

3. sobrepeso, obesidade e doenças crônicas não transmissíveis relacionadas à alimentação (como doenças cardíacas, diabetes e alguns tipos de câncer).

Diante do cenário recente e estarrecedor de fome e insegurança alimentar, faz-se necessário analisar e compreender os padrões e tendências dessa situação e avançar com o diálogo e a produção de evidências sobre as políticas públicas necessárias para a reversão urgente desse quadro.

 

Tendência da má nutrição

 

A transição nutricional é um processo de alterações na alimentação e composição corporal de uma população e está diretamente relacionada a modificações no padrão e consumo alimentar. Esse fenômeno, observado mundialmente com o aumento da obesidade e o declínio da desnutrição, é determinado por diversos fatores, incluindo aqueles de origem econômica, demográfica, ambiental e cultural. No Brasil, a transição nutricional aconteceu de forma mais intensa entre os anos de 1990 e 2010, com o intenso declínio da desnutrição infantil, acompanhado do aumento exponencial da obesidade na população em geral. A melhoria no acesso a serviços essenciais e o crescimento do poder aquisitivo das famílias foram os fatores que mais contribuíram para a redução da desnutrição. Em paralelo, o afastamento de um padrão alimentar mais tradicional, baseado em alimentos in natura e minimamente processados, e a ascensão no consumo de produtos ultraprocessados contribuíram para o aumento da obesidade em todas as faixas etárias, segundo levantamentos de 2014 e 2020.

Para o monitoramento e análise da saúde em nível populacional, o diagnóstico e acompanhamento do estado nutricional é um parâmetro importante, sendo a avaliação antropométrica (peso e comprimento/estatura) frequentemente utilizada. Com esses valores é possível identificar os índices adequados, de acordo com a fase do ciclo de vida. Para crianças, os índices utilizados são: peso/idade; estatura/idade; peso/estatura; e Índice de Massa Corporal (IMC)/idade. Para adolescentes, usa-se o IMC/idade e estatura/idade, segundo recomendações da OMS de 1995.

Para crianças, os dados antropométricos utilizados para análise dos Indicadores do Estado Nutricional (Ien) são: déficit de altura, déficit de peso, excesso de peso e obesidade. Na década de 1970, a situação alarmante da desnutrição infantil no país foi quantificada nacionalmente pela primeira vez, atingindo 27% das crianças na região Norte e destacando as desigualdades regionais presentes, segundo estudo publicado em 1978 no Rio de Janeiro. Entre 1974-1975 e 2008-2009, o Brasil registrou uma redução da prevalência de déficit de altura em crianças de ambos os sexos: de 26,7% para 6,3% (meninas) e de 29,3% para 7,2% (meninos). O declínio desses percentuais indica uma queda progressiva da desnutrição infantil no país. Nesse mesmo período, a prevalência de excesso de peso e a obesidade aumentaram. O excesso de peso passou de 8,6% para 32% (meninas) e de 10,9% para 34,9% (meninos). Enquanto isso, a obesidade também cresceu: de 1,8% para 11,8% (meninas) e de 2,9% para 16,6% (meninos), segundo dados de 2014.

 

A alimentação de crianças e jovens piorou na pandemia, com consumo de alimentos não saudáveis, mais uso de telas e ganho de peso.

 

Em 2019, a prevalência de sobrepeso (segundo o índice IMC/Idade) na primeira infância foi de 7%, sendo maior na faixa etária de 12 a 23 meses, com 10,7%. Entre aqueles de 48 e 59 meses, o índice foi de 5,2%. No total, 3% das crianças menores de 5 anos tiveram registro de obesidade (dados da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2019).

Entre adolescentes, observou-se que, entre 1974-1975 e 2008-2009, a prevalência de déficit de peso diminuiu de 5,1% para 3% (sexo feminino) e de 10,1% para 3,7% (sexo masculino). Como foi observado em relação às crianças, o excesso de peso tem apresentado um crescimento contínuo ao longo dos anos, passando de 7,6% para 19,4% no sexo feminino e de 3,7% para 21,7% no sexo masculino. A obesidade também está em crescimento, porém com um aumento menor. No sexo feminino passou de 0,7% para 4%, enquanto no sexo masculino foi de 0,4% para 5,9% em 2014.

De acordo com dados de 2015, provenientes da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), que analisou jovens de 13 a 17 anos de idade, o déficit de peso apresentou prevalência nacional inferior a 3,5%, enquanto aproximadamente um em cada quatro adolescentes está com um peso superior ao que é considerado saudável. O excesso de peso se mostrou diferente entre os adolescentes que cursam escolas públicas e privadas. Há maior prevalência em estudantes de escolas privadas, principalmente no sexo masculino, em quase todas as regiões. O contrário apenas acontece com o sexo feminino na região Sul (dados de 2018).

É importante ressaltar que, apesar das reduções e aumentos terem acontecido em indicadores específicos para crianças e adolescentes no país como um todo, o Brasil possui dimensões continentais e cada região apresenta a sua especificidade. Por isso, pode haver desigualdades regionais, além das etárias, sociais, econômicas e étnicas, em relação ao crescimento e desenvolvimento da população infantil e adolescente.

 

Evolução dos padrões alimentares

 

O consumo alimentar é largamente utilizado para caracterizar as condições individuais e coletivas de alimentação e nutrição, isto é, como um instrumento indireto de diagnóstico nutricional. É usado também em pesquisas direcionadas à investigação do papel da dieta na determinação do processo saúde-doença.

Nas últimas décadas, as refeições caseiras têm sido substituídas por produtos ultraprocessados. Esses produtos não são propriamente alimentos, mas formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento, extração e transformação de alimentos in natura. Essas substâncias incluem açúcar, óleos e gorduras, isolados proteicos, gordura hidrogenada, amidos modificados, corantes, aromatizantes, emulsificantes, espessantes, entre outros. Esses ingredientes servem para disfarçar características indesejadas do produto final. Exemplos típicos são refrigerantes, bebidas lácteas, salgadinhos de pacote, doces e chocolates, barras de “cereal”, sorvetes, pães, margarinas, nuggets de frango e peixe, salsichas etc. O termo “ultraprocessados” faz parte da classificação NOVA de alimentos, que prevê outras três categorias: alimentos in natura ou minimamente processados (como frutas frescas ou arroz embalado), ingredientes culinários (como óleo, sal e açúcar), alimentos processados (como geleia de morango apenas com a fruta e açúcar), segundo designação do Guia Alimentar da População Brasileira, do Ministério da Saúde, de 2014.

Com base nos dados de consumo alimentar individual coletados pelo IBGE em 2008/2009 e em 2018/2019 foi possível compreender os padrões alimentares segundo características sociodemográficas relatadas pelo mesmo órgão em 2011 e 2021. Ao analisar os dados tendo como base a classificação NOVA, pouco mais da metade (53,4%) das calorias consumidas pela população brasileira maior de 10 anos foi proveniente de alimentos in natura ou minimamente processados; 15,6% vieram de ingredientes culinários processados; 11,3%, de alimentos processados; e 19,7%, de ultraprocessados. No Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o consumo de alimentos ultraprocessados foi inferior à média nacional, correspondendo a 11,4%, 14,4% e 16,6% das calorias, respectivamente. No Sul e no Sudeste, entre famílias com maior renda, os alimentos ultraprocessados já representam mais de 20% das calorias.

Observou-se também que a participação dos alimentos in natura ou minimamente processados, assim como de ingredientes culinários processados e de alimentos processados, foi menor entre adolescentes e mais elevada entre idosos. Já os alimentos ultraprocessados representaram 26,7% do total de calorias consumidas pelos adolescentes.

O padrão alimentar destes jovens, caracterizado pelo maior consumo de ultraprocessados, é muito preocupante, visto que as faixas etárias dos mais novos estabelecem hábitos alimentares desfavoráveis para a saúde e para a segurança alimentar e nutricional das próximas gerações. Com dados de consumo alimentar de indivíduos de 10 a 18 anos em 2008-2009, um estudo estimou a relação entre esses padrões e o excesso de peso. Os padrões mais frequentes foram: 1. Padrão Tradicional Brasileiro (composto por arroz, feijão, verduras e legumes, raízes e tubérculos e carne); 2. Padrão de Lanches (composto por café, pão de sal, manteiga, embutidos, queijos e bebidas açucaradas); 3. Padrão de Comida Rápida (composto por bebidas açucaradas, doces, chocolates, biscoitos, massas, alimentos fritos, salgadinhos); e 4. Padrão de Leite, Frutas e Cereais (composto por cereais matinais, frutas e sucos naturais de frutas e produtos lácteos). A conclusão do estudo foi que, quanto maior a aderência aos padrões Lanches e Comida Rápida, maiores as chances de excesso de peso.

 

Políticas de transferência de renda estão entre aquelas estruturantes e fundamentais para enfrentar a fome e a insegurança alimentar.

 

Outra pesquisa verificou que a adesão a um padrão alimentar com as características da comida tradicional brasileira foi mais presente entre adolescentes com mães de maior nível de educação, e por meninos com idade superior a 16 anos. Já os padrões considerados menos saudáveis foram mais praticados por adolescentes que viviam em residências com cinco ou mais pessoas, nas regiões Sul e Sudeste, e que moravam em domicílios de maior renda.

Entre as crianças menores de 5 anos, os indicadores de padrões alimentares mais recentes são do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), de 2019. Houve consumo de alimentos ultraprocessados por 80,5% das crianças menores de 2 anos, sendo mais baixo entre crianças de 6 a 11 meses (66,3%) e mais alto na faixa etária de 18 a 23 meses (91%). O consumo de alimentos ultraprocessados também esteve presente na grande maioria (93%) das crianças entre 2 e 5 anos, com valores semelhantes entre as cinco regiões do país e nível socioeconômico das famílias. Não consumir frutas e hortaliças foi um hábito para 22,2% das crianças de 6 a 23 meses e para 27,4% das crianças de 2 a 5 anos. O consumo de bebidas adoçadas esteve presente em 24,5% da alimentação das crianças de até 2 anos e em 37,8% na faixa etária de 18 a 23 meses. Entre crianças de 24 a 59 meses, o consumo de bebidas adoçadas saltou para de 50,3%.

Em relação ao aleitamento materno, os indicadores do Enani apontam que a prática no Brasil ainda está aquém das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Cerca de 96% das crianças brasileiras menores de 2 anos foram amamentadas alguma vez. O aleitamento materno exclusivo (AME) em menores de 6 meses foi registrado para 45,8% dos bebês, com menores percentuais no Norte e Nordeste (40,3% e 39%, respectivamente). A duração mediana do AME foi de três meses e a do aleitamento materno em geral foi de quase 16 meses. O consumo de alimentos ultraprocessados desde os primeiros meses de vida, oferecidos inclusive em mamadeiras, representa um obstáculo para que as recomendações da OMS sejam atingidas.

A pandemia de Covid-19 impactou diretamente os padrões alimentares de crianças e adolescentes. Ainda que estudos com representatividade nacional não estejam disponíveis, é possível descrever essas mudanças em populações específicas. Ao comparar as práticas de famílias em Fortaleza (CE) nos anos de 2017 a 2021, verificou-se atraso na oferta de alimentos sólidos, assim como maior duração do aleitamento materno durante a pandemia. Apesar dessa mudança positiva nos primeiros meses de vida, um estudo de revisão que incluiu outros nove estudos com crianças e adolescentes sobre hábitos alimentares durante a pandemia de Covid-19 concluiu que as alterações foram mais negativas do que positivas para a saúde. Os principais impactos foram: aumento do consumo de alimentos não saudáveis, maior tempo de uso de telas e ganho de peso. Um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês) analisou a alimentação de famílias com crianças menores de 6 anos beneficiárias de programas de transferência de renda em dez capitais brasileiras, na Amazônia Legal e no semiárido brasileiro. Durante a pandemia, 72% das famílias entrevistadas afirmaram que uma ou mais crianças de seu domicílio deixaram de fazer alguma refeição ou não comeram em quantidade suficiente porque não havia dinheiro para comprar comida. O alto consumo de alimentos ultraprocessados (80% das famílias relataram consumo de ao menos um tipo) e outras práticas alimentares não saudáveis, como baixa diversidade de alimentos, foram apontados como os principais achados do estudo realizado pelo Unicef em 2021.

Levantamentos realizados em diferentes países concluem que padrões alimentares baseados em alimentos ultraprocessados promovem o ganho de peso em curto período de tempo, em todas faixas etárias. Três revisões de literatura concluíram que a ingestão de produtos ultraprocessados foi associada a maiores chances de obesidade entre 23% e 51% e de maiores chances de obesidade abdominal entre 39% e 49%. O consumo de ultraprocessados também provoca aumento da adiposidade, doenças cardiovasculares, depressão e câncer, segundo levantamento da Cátedra Josué de Castro e do Nupens, de 2021.

Diante do atual quadro de volta da fome, da piora nos padrões alimentares e do aumento da obesidade, faz-se necessário um olhar estratégico para entender os caminhos percorridos, identificando os principais elementos que nos fizeram chegar até aqui. O Brasil já foi exemplo para o mundo na redução da fome, o que só foi possível com a implementação de políticas públicas e marcos de referência efetivos. Os caminhos já são conhecidos. É preciso construir novas pontes para que sejam retomados.

 

A luta contra a má nutrição

 

O país avançou muito na construção de legislações para o enfrentamento da má nutrição e o favorecimento da alimentação adequada e saudável. Em 2010, a Constituição Federal brasileira incluiu, em seu artigo 6º, a alimentação como um direito social para a população. Além desse marco relevante, outros documentos oficiais especificam a necessidade de oferecimento de uma alimentação adequada e saudável, tendo em vista que sua efetivação está ligada à realização dos demais direitos constitucionais. O tema também está presente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), prevendo que os direitos referentes à alimentação precisam ser garantidos para esse grupo, sem qualquer tipo de discriminação. Isso faz com que o poder público seja responsável pela garantia da segurança alimentar e nutricional para todas as faixas etárias da população brasileira.

A Política Nacional de Alimentação e Nutrição (Pnan) é aquela que, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), tem como propósito “a melhoria das condições de alimentação, nutrição e saúde da população, mediante a promoção de práticas alimentares adequadas e saudáveis, a vigilância alimentar e nutricional, a prevenção e o cuidado integral dos agravos relacionados à alimentação e nutrição”. As diretrizes da Pnan destacam as políticas relacionadas à regulação e controle de alimentos, promoção da alimentação adequada e saudável e de cooperação para segurança alimentar e nutricional voltadas à promoção de ambientes alimentares mais saudáveis para crianças e adolescentes.

As políticas intersetoriais que visam o alcance do direito à alimentação adequada estão previstas dentro da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), estabelecendo a definição de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN): “consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”.

Todo esse arcabouço legal – somado à priorização de recursos para os principais programas de proteção social, educação, saúde e SAN e à grande participação e controle social nos espaços políticos de decisão e monitoramento das políticas públicas – fez o Brasil sair do Mapa da Fome da FAO em 2014. Porém, o caminho da superação da insegurança alimentar e fome foi interrompido a partir de 2016, com uma onda de redução de orçamentos e de restrições aos gastos públicos para a proteção social, culminando com a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um novo regime fiscal (o teto de gastos). Agravando ainda mais tal panorama, a pandemia de Covid-19 intensificou o caminho de retrocessos, colocando o Brasil na situação alarmante da fome em 2022.

As políticas de transferência de renda estão entre aquelas que são estruturantes e fundamentais para o enfrentamento da insegurança alimentar para os vulneráveis. Apesar da interrupção do programa Bolsa Família em 2021, há robusta literatura científica comprovando os efeitos positivos de tal ação na saúde e nutrição da população beneficiária. Entre os estudos que avaliaram a influência de programas de transferência de renda no Brasil sobre a alimentação e nutrição das famílias, houve destaque para a melhoria do estado nutricional das crianças, da qualidade da alimentação e do nível de segurança alimentar das famílias assistidas. Em estudo longitudinal realizado na Paraíba, foi constatada a redução da ocorrência e da severidade da insegurança alimentar, segundo a Ebia, entre 2011 e 2014 nas famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. Estudo quase experimental, realizado com amostra representativa da população brasileira, também concluiu que as famílias beneficiárias do mesmo programa apresentaram maior compra e variedade de alimentos disponíveis no domicílio em comparação com aquelas de baixa renda que não faziam parte desse tipo de transferência de renda em 2008-2009. As famílias beneficiárias compraram mais alimentos in natura e minimamente processados em comparação com as não beneficiárias, sem diferenças significativas para a compra de alimentos ultraprocessados.

Considerando o enfrentamento da má nutrição em todas suas formas em crianças e adolescentes, são fundamentais as políticas de prevenção e controle do excesso de peso e obesidade. Entre as ações brasileiras, encontram-se os marcos e orientações sobre Educação Alimentar e Nutricional (EAN) como estratégia de promoção da alimentação adequada e saudável no contexto do Direito Humano à Alimentação Adequada. As diretrizes oficiais sobre alimentação saudável que orientam as ações da EAN e são indutoras de políticas públicas são vitais para o cumprimento das recomendações. A segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, e do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, de 2019, publicados pelo Ministério da Saúde, tornaram-se referências internacionais de recomendações para a adoção de padrões alimentares saudáveis e sustentáveis. Eles se baseiam na classificação NOVA, que considera o nível e o propósito do processamento de alimentos.

Ainda sob a perspectiva da EAN, uma das políticas mais antigas e duradouras que garantem alimentação para milhões de crianças e adolescentes nas escolas públicas do país é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que tem como objetivo principal oferecer no mínimo uma refeição escolar por dia aos alunos. Atualmente, o Pnae atende todos os alunos da educação infantil (creche e pré-escola), ensinos fundamental e médio, educação especial, educação de jovens e adultos e programas como o Mais Educação e o Ensino Educacional Especial. O Pnae é considerado referência internacional ao promover ações que têm o potencial de prevenir e controlar a má nutrição em todas suas formas. O programa inclui a perspectiva da valorização das culturas alimentares, dos hábitos alimentares regionais e da promoção de escolhas alimentares saudáveis e sustentáveis.

Em complemento às ações de educação alimentar e nutricional, as medidas regulatórias são ações que criam diretrizes e limites para a atuação dos setores comerciais e objetivam proteger a população contra práticas abusivas. Entre as suas prerrogativas, as medidas regulatórias podem incluir estratégias que melhorem a informação nutricional ou restrinjam a comercialização e publicidade de alimentos não saudáveis, especialmente para crianças e adolescentes, e também estratégias fiscais, como aquelas que aumentam o preço de alimentos não saudáveis ou reduzem o custo de alimentos saudáveis.

Nas medidas regulatórias previstas na Pnan, observa-se uma relevante interface destas com um ambiente alimentar promotor de escolhas alimentares seguras e saudáveis. Essa é uma associação potente do ponto de vista de saúde pública, uma vez que o ambiente alimentar é um lugar crítico no sistema para implementação de intervenções protetivas de saúde e nutrição.

Diante da relevância do ambiente alimentar de crianças e adolescentes, é clara a necessidade de construir medidas regulatórias para a proteção da saúde e nutrição desse público. A implementação de medidas regulatórias é justificada por evidências de influências negativas sobre o ambiente alimentar de crianças e adolescentes, tais como: (i) ampla disponibilidade e acessibilidade de alimentos ultraprocessados em detrimento de alimentos saudáveis; (ii) vulnerabilidade de crianças e adolescentes a práticas mercadológicas; (iii) diversidade de práticas abusivas e enganosas para comercialização de alimentos; (iv) abuso de poder dos atores comerciais e presença de conflitos de interesse, segundo apontamento do Unicef, de 2019.

A partir dessas constatações, uma característica importante e potente das medidas regulatórias é que estas assumem um caráter multifacetado e complementar, ou seja, se fundem e podem ser objeto de reforço mútuo. Nesse sentido, as medidas regulatórias têm potencial impacto na melhora das escolhas alimentares dos consumidores, podendo influenciar positivamente a rápida e complexa transição que compromete a segurança alimentar e nutricional dos indivíduos, especialmente de crianças e adolescentes.

Apesar de sua relevância, as medidas regulatórias de proteção da alimentação adequada e saudável no Brasil progridem lentamente. No país, as principais medidas regulatórias estão sob o escopo da regulação da comercialização de alimentos no ambiente escolar, da publicidade de alimentos e da rotulagem nutricional de alimentos. Até o ano de 2020, um estudo que objetivou identificar e descrever os dispositivos legais que regulamentam a venda de alimentos nas escolas brasileiras constatou que 67% dos 27 estados brasileiros possuíam algum tipo de previsão legal em vigor. De modo geral, a maioria dos dispositivos legais proíbe a comercialização de alimentos ultraprocessados e incentiva a venda de frutas e alimentos in natura nas redes pública e privada.

No âmbito da publicidade de alimentos, destacam-se as medidas regulatórias restritivas em relação à promoção comercial de alimentos que competem com o aleitamento materno. Essa regulação é baseada na Norma Brasileira para a Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância e de Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL). Em 2006, a NBCAL tornou-se lei nacional (Lei no 11.265), regulamentada em 2018 pelo Decreto no 9.579. Entre outros aspectos, a lei proíbe a promoção comercial de fórmulas infantis e de seguimento para lactentes e fórmulas de nutrientes apresentadas ou indicadas para recém-nascidos de alto risco. Embora exista uma sustentabilidade da NBCAL ao longo dos anos, ela é frequentemente infringida, expondo famílias à agressividade da publicidade dos substitutos do leite materno e prejudicando a alimentação e nutrição das crianças.

Apesar da restrição da publicidade de alimentos que competem com o aleitamento materno, não há no Brasil uma medida regulatória específica a outras categorias de alimentos ultraprocessados. Mesmo que a proibição da publicidade abusiva e enganosa esteja prevista em lei pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), há grandes desafios para adequação do entendimento jurídico sobre o tema. A publicidade abusiva é definida, entre outros fatores, como aquela que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança. Para auxiliar na compreensão do escopo da publicidade abusiva, o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) promulgou, em 2014, a Resolução nº 163, que lista elementos de direcionamento da comunicação mercadológica à criança e ao adolescente. Alguns exemplos de publicidade abusiva são: uso de linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores, trilhas sonoras de músicas infantis, representação de criança, promoção com distribuição de brindes colecionáveis e promoção com jogos com apelo ao público infantil.

 

Em direção ao futuro

 

Olhando para os graves impactos do atual cenário desastroso da fome nas gerações futuras, a priorização das políticas públicas de proteção social e de saúde é de extrema relevância. Diante disso, a Pnan é o instrumento de gestão norteador do SUS para garantir o direito humano à saúde e à alimentação a partir do cumprimento de suas diretrizes nos estados e municípios. É fundamental que essa política seja fortalecida para que o setor de saúde possa implementar, avaliar e fiscalizar ações que atuem sobre os sistemas alimentares. Para tanto, condições adequadas de financiamento, alinhamento aos princípios do SUS e aos desafios atuais em saúde, a qualificação das equipes, a continuidade e valorização de mecanismos de controle social e a articulação intersetorial são alguns dos aspectos.

Esses enfrentamentos incluem o fortalecimento da vigilância e da obtenção de dados qualificados para orientar as ações e a superação de barreiras de comunicação e capacitação de atores públicos. Por exemplo, a disseminação e a implementação dos guias alimentares brasileiros ainda carecem de ações coordenadas de EAN em mídias de massa e de capacitação para profissionais da saúde e da educação, como relatado em estudo de 2021. Outros desafios a serem superados para avançar nas medidas regulatórias voltadas às crianças incluem a restrição das atividades políticas corporativas das grandes indústrias de produtos ultraprocessados, que buscam influenciar políticas públicas sobre essa agenda. A restrição da publicidade de alimentos dessa natureza para crianças e a adoção de medidas fiscais que estimulem o consumo de alimentos in natura e desestimulem o consumo de ultraprocessados ainda não foram priorizadas como políticas necessárias para o enfrentamento da má nutrição. Apesar das evidências científicas que comprovam os efeitos positivos dessas medidas para saúde, economia e sociedade, além das recomendações de organismos internacionais como Organização Mundial da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde e Banco Mundial, é necessário maior apoio político para essas agendas.

Por fim, o enfrentamento da fome e da má nutrição exige a retomada do pensamento de Josué de Castro, colocando a insegurança alimentar e a fome como problemas fundamentalmente políticos.

Durante as celebrações dos 75 anos da obra Geografia da Fome, em 2021, foram identificados consensos relevantes que sumarizam as principais bases a serem estabelecidas no futuro próximo: a) as enormes desigualdades sociais de gênero, raça e idade estão entrecruzadas e se retroalimentam, sendo necessário enfrentar a perpetuação das iniquidades que afetam mais as famílias com crianças e adolescentes; b) a valorização do papel do Estado como ator e regulador das políticas públicas, com participação e controle social, visto que o mercado não será o protagonista de mudanças efetivas; c) o combate à desnutrição e a garantia do direito humano à alimentação de forma sustentável são desafios que não serão superados apenas com políticas públicas estruturantes e contínuas.

 

 

AS AUTORAS

Luana Silva de Oliveira é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Nutrição em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

Mariana Ribeiro é nutricionista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Juliana de Paula Matos é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Mingas Gerais (UFMG).

Ana Paula Bortoletto Martins é pesquisadora do Nupens/USP e da cátedra Josué de Castro (USP). Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Nutrição em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6353246485930284



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