Restaurar a enfermagem comunitária
Precisamos transformar a educação da área para que haja enfermeiras em cada setor dos Estados Unidos
Por Robert Atkins
Minha mãe era enfermeira. Tenho lembranças de infância de vizinhos batendo na porta de nossa casa em Cherry Hill, Nova Jersey, para perguntar a ela sobre o que fazer com a erupção cutânea de seu recém-nascido, ou pedindo que ela medisse sua pressão ou que analisasse resultados de laboratório que tinham acabado de receber.
Segui os passos dela na enfermagem. Meu primeiro emprego foi em uma escola de ensino fundamental em Camden, Nova Jersey, uma das cidades mais pobres dos Estados Unidos. Encarregado por mais de 600 alunos do quinto ao oitavo ano, ao lado de vários professores e funcionários, passei meus dias oferecendo primeiros socorros, tratando crises de asma e rastreando problemas de audição e visão. Também fazia parte do meu trabalho colaborar com parceiros da escola e da comunidade para identificar e ajudar alunos e famílias com insegurança alimentar, instabilidade habitacional, questões comportamentais e outros desafios socioeconômicos.
A forma como minha mãe e eu prestamos nossos serviços segue um modelo de enfermagem comunitária de menor escala que deveria ser replicado nos 84 mil setores censitários que definem a paisagem americana. Cada setor, com uma média de 4.000 habitantes, seria muito mais saudável se tivesse um enfermeiro dedicado para fornecer informações de saúde e colaborar com a comunidade para combater o isolamento social, a instabilidade habitacional e a insegurança alimentar, além de abordar outros determinantes sociais da saúde.
As evidências são claras em dois pontos. Em primeiro lugar, tais fatores sociais têm maior influência nos desfechos de saúde do que os cuidados clínicos. Apesar de gastar mais per capita em saúde do que qualquer outra nação, os Estados Unidos têm resultados de saúde dramaticamente piores quando comparados a outros países ricos, em parte porque muitos americanos enfrentam circunstâncias sociais que os deixam vulneráveis. Nenhum sistema de saúde pode contar apenas com os hospitais para lidar com os determinantes sociais básicos da saúde. Em segundo lugar, a saúde das populações melhora quando os enfermeiros, o maior segmento da força de trabalho de saúde de nossa nação, trabalham dentro das comunidades para aumentar as taxas de conclusão do ensino médio e emprego, o acesso a parques e playgrounds, além de outros fatores de saúde da comunidade.
Reforma da educação de enfermagem
A profissão de enfermagem tem uma rica história profundamente enraizada no cuidado comunitário. No entanto, mais da metade dos enfermeiros hoje trabalha em hospitais. Quando foi que deixaram de prestar cuidados diretos nas comunidades para se tornarem funcionários de centros médicos? Na década de 1930 e com mais força depois da Segunda Guerra Mundial, o governo, em todos os níveis, fomentou a construção de hospitais e a profissionalização da assistência médica. E os leitos desses hospitais estavam cheios de pessoas com doenças e enfermidades que precisavam de cuidados de enfermagem.
Havia uma necessidade crescente, nesses centros médicos, de trabalhadores treinados para prestar assistência qualificada a pacientes com condições que exigiam tratamento tecnicamente complexo. Portanto, os hospitais contrataram mais enfermeiros e tornaram-se centros de treinamento. Embora as faculdades comunitárias e universidades tenham passado depois a fornecer educação em enfermagem – a maior parte dos enfermeiros se forma nessas instituições–, elas mantiveram o modelo de educação em enfermagem que os hospitais desenvolveram.
Essa história explica, em parte, um duplo problema que assola a saúde no país. Em primeiro lugar, os Estados Unidos estão enfrentando uma escassez de enfermeiros, especialmente aqueles preparados para enfrentar os desafios das comunidades rurais distantes de hospitais. E, o que é igualmente preocupante, as escolas de enfermagem estão recusando candidatos qualificados porque não têm vagas suficientes. O país precisa de mais enfermeiros além daqueles que acabam trabalhando nos hospitais.
Existem mais de 5 milhões de enfermeiros registrados (RNs, registered nurses) nos Estados Unidos, e a profissão ocupa o topo do ranking de profissionais mais confiáveis do país. No entanto, isso não basta, como ressaltou a pandemia de covid-19. Seu impacto desproporcional sobre os mais vulneráveis evidenciou a necessidade urgente de enfermeiros comunitários, que possam ajudar a construir redes de cuidados e fornecer uma rede de segurança para os membros mais suscetíveis de nossa sociedade.
É impressionante a história do envolvimento ativo dos enfermeiros em prol de redes de cuidados para melhorar a saúde. Lillian Wald (1867-1940), uma figura pioneira na enfermagem de saúde pública e uma líder visionária na profissão, lançou as bases para esse cuidado voltado para a comunidade. Em 1895, ela estabeleceu o Henry Street Settlement, uma rede de cuidados abrangentes projetada para melhorar o bem-estar dos imigrantes residentes no Lower East Side de Nova York. Ela cunhou o termo “enfermeiro de saúde pública” e defendeu que os enfermeiros estabelecessem uma “relação orgânica com a vizinhança”, servindo como pilar para um serviço universal à comunidade. Seu legado continua até hoje em programas como o Nurse-Family Partnership, que oferece cuidados pré-natais e de primeira infância para mães de primeira viagem de baixa renda, por meio da experiência de RNs. Uma extensa pesquisa demonstrou o impacto positivo desse programa nos resultados de saúde de mães e seus filhos.
Agora, é essencial transformar o ensino de enfermagem, para que os alunos forjem as ferramentas necessárias para construir e fortalecer redes de cuidado que remetam a programas bem-sucedidos do passado, como Henry Street Settlement, ou da atualidade, como o Nurse-Family Partnership.
A forma como a enfermagem é ensinada hoje é moldada de forma indevida pelos hospitais. Consideremos, por exemplo, os extensos rodízios clínicos exigidos dos estudantes de enfermagem de nível básico. Originadas da necessidade de pessoal hospitalar na década de 1930, essas movimentações entre setores são intensivas em recursos. Duas das principais razões pelas quais as escolas de enfermagem negam a admissão a milhares de candidatos qualificados todos os anos são a falta de professores e a escassez de colocações clínicas. No entanto, não há evidências de que todos os recursos dedicados a esses rodízios contribuam para a competência clínica dos estudantes de enfermagem. Além de voltar às nossas raízes comunitárias (por exemplo, saúde comunitária, saúde pública), nosso objetivo como nação deveria ser o de adotar inovações que nos permitam educar mais enfermeiros de nível básico de forma mais eficiente (por exemplo, em menos tempo, com menos professores) e equipá-los para servir comunidades longe de um ambiente hospitalar.
Podemos atingir esse objetivo com um aumento drástico do uso de simulação. Um número crescente de escolas de enfermagem já está substituindo horas de rodízio clínico por simulação (por exemplo, manequins de alta e baixa fidelidade, pacientes padronizados, realidade virtual e vinhetas clínicas) a fim de replicar quadros reais. Por meio da simulação, os alunos desenvolvem habilidades de pensamento crítico, aplicam o que estão aprendendo e resolvem problemas sem colocar em risco os pacientes e sem utilizar o valioso tempo dos preceptores.
Além de reduzir os recursos requeridos, a simulação também oferece um ambiente de aprendizado padronizado e personalizado. Fazer essa mudança permitiria que os educadores criassem quadros clínicos precisos para os alunos, preparando-os para uma gama diversificada de situações do mundo real que eles podem não enfrentar em rodízios. Com pacientes padronizados, eles podem ser treinados, por exemplo, para dar atendimento adequado a pacientes com lesões decorrentes de violência por parceiro íntimo. Usando manequins de alta fidelidade, podem praticar exames pélvicos e auxílio a parturientes.
É certo que os rodízios clínicos oferecem aos alunos algumas experiências importantes – por exemplo, gerenciamento de tempo e trabalho em equipe. No entanto, devemos examinar se essa concentração de recursos realmente se alinha com o aprimoramento da competência clínica. Um dos objetivos deveria ser equipar a próxima geração de enfermeiros para um futuro além dos limites dos cuidados intensivos.
O modelo da Costa Rica
Não vamos resolver os desafios futuros da força de trabalho de enfermagem direcionando a maior parte dos recursos para enfrentar a escassez de professores e locais de treinamento clínico. Em vez disso, precisamos de um novo paradigma na educação que busque eliminar a escassez de profissionais.
Felizmente, organizações como a Associação Americana de Faculdades de Enfermagem estão fazendo investimentos importantes para desenvolver uma nova base para a educação no setor. Propostas de financiamento, como o Future Advancement of Academic Nursing (Faan) Act, devem se concentrar no desenvolvimento de melhores práticas, como simulação e educação baseada em competências, a serem implementadas em todas as escolas de enfermagem.
À medida que as escolas de enfermagem progridem no desenvolvimento, implementação e disseminação dessa abordagem inovadora para a educação no setor, os EUA verão um aumento no número de enfermeiros preparados para se reconectar com a comunidade e integrar equipes multidisciplinares visando a melhoria da saúde da população.
A Costa Rica oferece um exemplo bem-sucedido de adoção dessa abordagem; lá, avanços em resultados de saúde, acessibilidade e qualidade foram alcançados por meio da implementação de um modelo multidisciplinar de atenção primária. Cada cidadão é designado a uma equipe responsável pelo atendimento dentro de uma região geográfica específica, que abrange aproximadamente 4.000 indivíduos. Essa abordagem baseada em equipe opera há cerca de 25 anos, tendo se concentrado inicialmente em regiões rurais carentes de assistência médica, com posterior expansão para áreas urbanas, incluindo a capital, San José.
O modelo multidisciplinar de prestação de cuidados de saúde comunitários da Costa Rica oferece insights valiosos para os Estados Unidos. Os setores censitários americanos têm em média 4.000 habitantes e são semelhantes em tamanho às regiões geográficas da Costa Rica. O cuidado comunitário que os enfermeiros prestam nesse modelo é semelhante ao que eu prestei como enfermeiro escolar em Camden. Mas um modelo norte-americano que seguisse esse exemplo estenderia esse atendimento a todas as idades em um setor censitário inteiro. Com um enfermeiro dedicado compartilhando informações de saúde e colaborando com agentes comunitários de saúde e outros parceiros para lidar com o isolamento social, estabilidade habitacional, segurança alimentar e outros determinantes sociais da saúde, setores censitários e, por extensão, todo o país seriam muito mais saudáveis.
Podemos revolucionar a educação e o cuidado da enfermagem se simplesmente abraçarmos as raízes históricas focadas na comunidade. O desafio, agora, é redesenhar a educação para preparar um futuro sistema de saúde que alimente as comunidades, promova uma nação mais saudável e resiliente e inspire e forme uma geração maior e mais eficaz de enfermeiros.