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A tecnologia de ponta nem sempre é o melhor

Estamos vendo avanços notáveis na telemedicina decorrentes da resposta da ajuda internacional à guerra na Ucrânia. O que aprendemos que também poderia ser aplicado nos Estados Unidos e no mundo?

Por Jarone Lee, Wasan Kumar, Marianna Petrea-Imenokhoeva, Hicham Naim e Shuhan He

(Foto de iStock/Joel Carillet)

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia causou uma perda significativa de vidas e a destruição dos meios de subsistência das pessoas desde que começou, em 2022. Os esforços de ajuda internacional continuam com foco na restauração da saúde e da segurança na região. Tempos de guerra demandam ações urgentes, e isso tem apresentado oportunidades para destacar a incrível inovação que pode ser aplicada ao nosso sistema de saúde moderno e a outras situações em que a ajuda humanitária é necessária.

Assim como a Segunda Guerra Mundial impulsionou muito a produtividade industrial, agora estamos vendo avanços notáveis na telemedicina decorrentes do conflito. Embora a pandemia da Covid-19 tenha provocado uma rápida expansão da telemedicina nos Estados Unidos e em outros países ocidentais, os esforços ucranianos foram, por necessidade, muito mais agressivos.

Somos todos médicos, estudantes de medicina e profissionais de telemedicina envolvidos nos esforços de socorro à Ucrânia, trabalhando ao lado de enfermeiros, voluntários e cidadãos engajados. O que aprendemos até agora? A maior lição é que, com a tecnologia, menos é mais. As empresas e os órgãos reguladores correm o risco de perder as maiores oportunidades de aumentar a produtividade ao exigir soluções de alta tecnologia que são caras e desnecessárias.

 

Atendendo na catástrofe

 

Em 2022, quando a invasão da Rússia devastou grande parte da infraestrutura de saúde da Ucrânia, voluntários e dezenas de grupos humanitários novos e antigos de todo o mundo mobilizaram recursos para ajudar. A telemedicina rapidamente se tornou um canal essencial e evolui sem cessar enquanto a guerra continua. Um estudo com 125 profissionais da saúde ucranianos constatou que 99% dos médicos continuaram a usar ferramentas de telemedicina, e mais da metade dos  aumentou a adoção da telemedicina durante o conflito.

Logo após o início da guerra, ajudamos a mobilizar duas organizações: a Telemedicina Sem Fronteiras (HTWB) e a Telehelp Ucrânia. Juntas, elas realizaram mais de 62 mil teleconsultas. A HTWB recrutou 800 voluntários, a maioria deles de fora dos Estados Unidos, com foco em médicos de língua ucraniana e russa que pudessem se conectar a uma plataforma de telemedicina construída na Ucrânia chamada Doctor Online.

Enquanto a HTWB se concentrava na atenção primária, a Telehelp Ukraine ajudava os pacientes que precisavam de especialistas. Ambas coordenaram seus esforços para transferir os pacientes conforme necessário. Em colaboração com outros provedores, a HTWB e a Telehelp Ukraine oferecem desde o atendimento primário até consultas especializadas por meios virtuais.

É claro que muitos pacientes na Ucrânia ainda precisam de atendimento presencial tradicional, especialmente aqueles que foram feridos no conflito. A telemedicina proporcionou um meio de triagem e tratamento inicial, permitindo que os centros médicos se concentrassem naqueles com necessidade de atenção direta sem ficarem sobrecarregados.

Nos Estados Unidos, o uso da telemedicina atingiu seu pico durante a primeira onda da Covid-19 em abril de 2020, quando 69% das consultas médicas foram realizadas remotamente. Desde então, seu uso diminuiu significativamente. As organizações de saúde se esforçaram muito para criar uma infraestrutura de saúde digital, mas ainda estão aprendendo a aproveitar essas tecnologias para resolver o problema de baixo acesso e adoção em comunidades carentes.

Em todo o país, 80% das áreas rurais se qualificam como “desertos médicos” designados pelo governo federal. Isso significa que aproximadamente 30 milhões de pessoas vivem a pelo menos uma hora de distância do hospital mais próximo com serviços de trauma. Além disso, muitas delas sofrem de doenças crônicas ou enfrentam barreiras sociais que as impedem de ter acesso a cuidados de saúde em consultórios médicos e hospitais. A telemedicina pode ser uma solução eficaz para reduzir seu sofrimento, permitindo, por exemplo, que alguém com ansiedade receba terapia de saúde mental no conforto de sua casa. Ou que  um paciente que note um nódulo suspeito tenha uma consulta virtual para ajudar a determinar a gravidade do problema. No entanto, existem barreiras importantes para a adoção da telemedicina, como níveis de escolaridade mais baixos, habilidades de alfabetização digital ou acesso à conectividade de banda larga, que devem ser abordadas para garantir o acesso equitativo à assistência médica. Para melhorar ainda mais a adoção da estratégia, é importante propor opções fáceis de usar e de baixa tecnologia para aqueles que são menos experientes em tecnologia, mesmo que haja tecnologia mais avançada disponível.

 

 

(Foto de Anna Tartynskyh)

Baixa tecnologia funciona bem

 

Como em muitos outros campos, o mundo da telemedicina adotou um tipo de determinismo tecnológico: se existe uma tecnologia que promete uma experiência melhor, então devemos incorporá-la à nossa oferta atual. Mas a experiência ucraniana sugere o contrário. Das 62.000 consultas de telemedicina realizadas pela HTWB e pela Telehelp Ukraine, 98% envolveram apenas mensagens de texto entre o médico e o paciente em uma plataforma segura de telessaúde. Não é necessário vídeo ao vivo ou mesmo áudio, e não há necessidade de dispositivos biométricos sofisticados hoje em desenvolvimento.

O envio de mensagens de texto tem a vantagem óbvia de demandar menos conectividade, especialmente em uma zona de guerra. Além disso, tornou-se uma prática adotada por pacientes de idades variadas em todo o mundo, enquanto muitas pessoas têm dificuldades com as chamadas de vídeo. As mensagens escritas também permitem um uso mais produtivo de um recurso escasso: o tempo dos médicos. Eles podem responder de forma assíncrona, quando for mais conveniente, assim como os pacientes. Com essas mensagens, a telemedicina pode atender a um número muito maior de pacientes do que se dependesse da tecnologia síncrona.

Os provedores americanos estão começando a perceber isso. A CirrusMD é uma plataforma de atendimento primário virtual que prioriza o texto e em que os pacientes começam cada consulta enviando uma mensagem para um médico. Eles podem enviar imagens ou realizar chamadas de vídeo e receber encaminhamentos para especialistas. As mensagens assíncronas permitem uma maior troca de mensagens entre um médico ocupado e o paciente.

Pesquisas sugerem que o envio de mensagens de texto é uma forma eficaz de assistência médica, inclusive para reduzir visitas desnecessárias ao pronto-socorro. Um estudo com 700 crianças submetidas a apendicectomias constatou que uma intervenção com mensagens de texto para responder a perguntas reduziu as visitas ao pronto-socorro pós-operatório em mais da metade. Essas visitas evitáveis levam ao aumento do tempo de espera para todos os pacientes que precisam de atendimento de urgência e podem levar a piores resultados de saúde para aqueles que seriam mais bem atendidos em um ambiente diferente. Além disso, estima-se que o custo do pronto-socorro seja 12 vezes maior do que o de uma consulta no consultório de atendimento primário, o que faz com que as seguradoras privadas paguem um valor potencial de US$ 32 bilhões por ano, aumentando os custos gerais de assistência médica.

As mensagens de texto como ferramenta de saúde digital preventiva, também podem se encaixar facilmente nos modelos de seguro e pagamento do sistema de saúde dos Estados Unidos. Quando a UCSF Health ficou sobrecarregada com perguntas no início da pandemia, começou a reembolsar com sucesso os médicos pelo tempo de resposta a essas mensagens e, em seguida, a cobrar do seguro as mensagens que exigiam conhecimento médico. Os provedores determinam se uma mensagem será cobrada do seguro, e o sistema hospitalar cobra do seguro com base no tipo de seguro (ou seja, privado, Medicare ou Medicaid estadual).

Uma barreira enfrentada pela telessaúde baseada em texto são as disposições dos conselhos médicos para “exames de boa fé”. Essas leis remontam aos anos 1800, quando os conselhos de medicina foram criados e estabeleceram regras que exigem que o médico realize um histórico médico e um exame físico antes de prescrever qualquer coisa para um paciente. Embora esses exames possam ser necessários para estabelecer o atendimento, devem ser criados métodos de texto digital para acompanhar o paciente, de modo que os exames físicos presenciais nem sempre sejam necessários, especialmente em situações em que a queixa principal é psiquiátrica ou mais simples, como reabastecimento de medicamentos.

Os órgãos reguladores, no entanto, estão indo na direção oposta. As chamadas telefônicas ainda são a principal forma de telemedicina nos Estados Unidos. De acordo com uma pesquisa da Associação Médica Americana, dois terços dos médicos realizam consultas de telemedicina somente com áudio. No entanto, o Medicare e o Medicaid, depois de permitirem a telemedicina somente por áudio nos três primeiros anos da pandemia, agora estão voltando a reembolsar as consultas por vídeo, exceto para tipos específicos de consultas. O CMS (The Centers for Medicare and Medicaid Services) define as taxas de reembolso para serviços de saúde na tabela anual de honorários médicos, sendo que as seguradoras privadas geralmente seguem as políticas do CMS. Durante a emergência de saúde pública (PHE, na sigla em inglês) da Covid-19, as regras de emergência incluíam taxas mais altas para o reembolso de telessaúde; no entanto, essas regras não foram aprovadas e devem ser encerradas em breve. Essa reversão não só prejudicaria o atendimento aos pacientes que têm dificuldades para usar a tecnologia ou não têm conexões confiáveis com a internet, como também limitaria a produtividade e a capacidade da telemedicina.

 

Pacientes precisam de orientadores

 

Embora a telemedicina prometa resolver muitos dos problemas do nosso sistema de saúde falido, ela cria um novo problema. A assistência médica sempre será complexa, e a telemedicina acrescenta uma barreira tecnológica, especialmente entre as populações que não estão acostumadas a usar a tecnologia, como os idosos. A Telehelp Ukraine percebeu isso logo no início. Além de criar recursos de tradução, ela buscou voluntários para atuar como orientadores de assistência médica. Eles ajudam os pacientes a se conectarem à plataforma e os lembram das consultas. Eles também coletam os vários formulários de informações antes da consulta para enviá-los aos provedores; depois da consulta, adaptam as anotações clínicas em um idioma que os pacientes entendam e marcam consultas de acompanhamento, conforme necessário. Em geral, eles também defendem os pacientes e dão feedback para a plataforma.

Independentemente do ambiente, é complicado navegar pelo sistema de saúde. Ter alguém que entenda o sistema e fale em nome do paciente agrega um valor imenso à experiência. Já foi demonstrado que o atendimento de alto contato melhora os resultados e reduz os custos em ambientes de atendimento convencionais, como neste estudo com 17.000 idosos em que os pesquisadores compararam a utilização do atendimento médico e as hospitalizações de pacientes em dois modelos de atendimento diferentes, um de alto contato e outro não. Esses orientadores não clínicos precisam de conhecimento mínimo em saúde, mas podem melhorar muito a produtividade dos recursos clínicos.

 

Tornando realidade a promessa da telemedicina

 

Além do problema de acesso geográfico, os EUA enfrentam uma escassez iminente de especialistas em saúde. A Associação Médica Americana estima que, até 2034, haverá uma escassez de 17.800 a 48.000 médicos de atenção primária. A telemedicina tem o potencial de superar essa escassez, aumentando consideravelmente o número de pacientes que podem ser atendidos por um provedor, mas somente se adaptarmos nossas políticas para torná-la bem-vinda.

 

Algumas dessas mudanças já são bem compreendidas, incluindo a necessidade de paridade de reembolso entre visitas de telemedicina e não telemedicina com um médico. Além de reembolsar as visitas sem vídeo, o reembolso deve se estender aos orientadores de assistência médica, que também tornam os escassos recursos clínicos mais produtivos e aumentam os resultados. Além disso, se os pacientes puderem relatar seu nível de alfabetização digital em saúde, a quantidade de suporte fornecido poderá ser personalizada. Precisamos reformar o sistema de licenciamento médico para permitir que os médicos tratem em todo o país, independentemente das fronteiras estaduais ou do sistema. A adoção total de registros médicos eletrônicos também ajudará a melhorar a comunicação e reduzir erros. Por fim, precisamos investir em infraestrutura de banda larga bem como em programas de extensão no setor privado e sem fins lucrativos para garantir que os recursos cheguem aos mais necessitados. O Affordable Connectivity Program, do governo federal de Joe Biden, é um programa de benefícios que oferece US$ 30 por mês para o serviço de Internet e até US$ 100 para a compra de um notebook, computador de mesa ou tablet para famílias qualificadas. Da mesma forma, no setor sem fins lucrativos, a Link Health reconheceu que a conectividade de banda larga é uma barreira para o acesso à assistência médica e está trabalhando com sistemas de assistência médica para conectar pacientes em salas de espera para que se inscrevam no Affordable Connectivity Program. Ainda há muito espaço para inovar nas ofertas de telessaúde, desde a abordagem das disparidades no acesso à saúde digital até a criação de novos serviços para doenças crônicas e o desenvolvimento de mais opções de diagnóstico e terapia em casa.

A telemedicina é um componente essencial da assistência médica e continuará a moldar seu futuro. Para garantir um sistema de saúde completo e preparado para o futuro, devemos abordá-lo como um quebra-cabeça e integrar todos os elementos, inclusive a prestação tradicional de serviços de saúde, a telemedicina, o monitoramento remoto, os dados interoperáveis, os registros eletrônicos de saúde, os diagnósticos no local de atendimento, o suporte comunitário e os dispositivos portáteis conectados. A adoção desses componentes também deve ser incentivada, não apenas para os pacientes, mas também para os profissionais de saúde.

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia resultou em uma crise humanitária, e os esforços de médicos de fora da região proporcionaram apenas certo alívio. Vamos capitalizar essas experiências e aplicar as lições aprendidas para melhorar o sistema de saúde nos Estados Unidos e em outros países, transformando a maneira como prestamos ajuda humanitária para obter resultados mais eficientes, atendendo mais com menos.

OS AUTORES

Jarone Lee, MD, MPH, é médico líder do Massachusetts General Hospital e professor associado da Harvard Medical School. Ele é cofundador da Health Tech Without Borders e consultor da National Emergency Tele-Critical Care Network (NETCCN) do governo dos EUA e do programa do Massachusetts General Hospital sobre interoperabilidade de dispositivos médicos e segurança cibernética.

Wasan Mani Kumar, BS, codireciona a Telehelp Ukraine e é candidato a MD na Stanford Medical School. Ele é apaixonado por melhorar os sistemas de saúde e trabalhou no dimensionamento de várias iniciativas de saúde digital e atualmente ajuda a liderar a organização sem fins lucrativos Telehelp Ukraine.

Marianna Petrea-Imenokhoeva, MSc, é cofundadora e codiretora da Health Tech Without Borders e da Digital Health Consulting SRL. Ela atua nos setores de telessaúde, inteligência artificial e outros domínios da saúde digital desde 2015.

Hicham Naim, PharmD, é vice-presidente, chefe de estratégia e transformação digital da Data, Digital & Technology da Takeda Pharmaceuticals e cofundador da Health Tech Without Borders. Ele atua no setor de saúde e ciências da vida desde 1998.

Shuhan He, MD, é médico de medicina de emergência no Massachusetts General Hospital e trabalha no Laboratório de Ciência da Computação do Departamento de Medicina Interna. Ele é instrutor de medicina na Harvard Medical School.

 



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