Imprimir artigo

A Naturalização da desigualdade

A Sociedade Desigual, de Mario Theodoro, traz para o centro das grandes interpretações sobre o Brasil e o racismo o problema da desigualdade visto de uma perspectiva econômica.

Por Paulo César Ramos

O mercado editorial brasileiro tem sido agraciado com diversas obras sobre raça, racismo, preconceito e negritude, temas que tangenciam as mazelas e as esperanças por detrás do problema racial no país. Fruto de um processo de inclusão racial nas universidades, muitos autores negros têm podido publicar suas obras e fazer circular contribuições que antes eram restritas a círculos de especialistas e ao nicho do ativismo antirracista. Enquanto surgem convites para que escrevam novos trabalhos ou relancem livros por editoras estabelecidas e mesmo hegemônicas no mercado editorial brasileiro, as livrarias dedicam prateleiras e seções comerciais ao tema.

A Sociedade Desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil Por Mario Lisboa Theodoro 1a edição. Zahar, Rio de Janeiro: Zahar, 2022

Leia também:

Grande Mudança Estrutural

Chegar a Zero

O nome ainda é incerto: estudos raciais, antirracismo, relações raciais. Mas está claro que um nicho de mercado para tais questões está sendo construído num momento em que não apenas há muitos leitores negros em potencial, mas também existe uma abertura maior para se debater o tema. Além disso, como disse a professora Marcia Lima, em entrevista ao jornal El País, em 23 de novembro de 2020, o próprio status do tema racial mudou de patamar. Tal cenário permite que novos entendimentos venham à tona com antigas teses revisitadas, outras novas surgindo, assim como um novo olhar para conceitos e problemas conhecidos.

É neste contexto que surge com brilho o livro de Mario Lisboa Theodoro, que traz para o centro das grandes interpretações sobre o Brasil e o racismo o problema da desigualdade desde uma perspectiva econômica. Talvez como um balanço de sua trajetória, que inclui passagens por espaços de gestão pública e de pesquisas para a elaboração de políticas públicas, Theodoro articula variadas dimensões das desigualdades em torno da ideia de “sociedade desigual”, associando três conceitos: branquitude, biopoder e necropoder.

Os sete capítulos de A Sociedade Desigual não deixam o leitor esquecer de sua proposta assentada numa perspectiva econômica, que trata o racismo como uma ideologia política e que alcança o plano das microrrelações sociais, sempre encontrando resistências individuais e coletivas. O primeiro capítulo apresenta uma varredura sobre como a teoria econômica sobre desigualdade aborda a questão racial. Além de ser um guia para este debate, Theodoro mostra com clareza sua posição, seu desafio analítico em estudar as reações raciais por meio da economia e qual é a teia interpretativa que ele tece. Em seguida, o autor faz jus a esta proposta e trata do mundo do trabalho; na sequência, desvenda a relação entre educação e saúde. Daí avança para falar da desigualdade racial em termos da ocupação do espaço, centro e periferias, rural e urbano. O quinto capítulo é dedicado a temas pouco visitados pelos clássicos das desigualdades, a violência e a justiça. Mais que uma conclusão, o último capítulo traz uma síntese do que foi apresentado ao leitor. Por fim, há um epílogo que versa sobre o ativismo negro.

O caminho percorrido em A Sociedade Desigual é marcado pela fidelidade do autor à sua formação e trajetória, como economista, com pós-graduação em ciências sociais na Universidade Paris I – Sorbonne, na França, e uma longa trajetória de serviços prestados ao poder público. Primeiro como técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), onde organizou e publicou diversos trabalhos voltados à questão racial; como assessor parlamentar, quando mergulhou no funcionamento do Estado brasileiro; e depois como dirigente gestor da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial entre 2010 e 2014.

Tanto a base conceitual sobre a qual constrói sua interpretação quanto os dados utilizados nesta construção evidenciam isso. Theodoro demonstra uma fluência ímpar para lidar com os dados. A clareza de sua visão sobre as leis e como estas se fazem reais sobre a vida cotidiana da população negra são uma grande força do livro. Também se destacam a reconstrução histórica que ele faz em cada uma das áreas em que pisa. Tudo isso com o respaldo de uma revisão bibliográfica sem igual para o momento, com os clássicos e, mais ainda, os trabalhos mais atuais sobre os temas abordados. Sem dúvida, para cada um dos capítulos há um trabalho de revisão bibliográfica fundamental que vem acompanhado de sua interpretação sobre o que é a sociedade desigual.

Muito didaticamente, Theodoro demonstra com tais dados como a sociedade desigual é estruturada. Sua explicação está assentada nos conceitos de branquitude, biopoder e necropoder. Diferentemente de outras interpretações contemporâneas, o racismo aqui ocupa um papel quase que secundário, pois a segregação nas cidades, a exclusão social, baixos salários, desempregos, evasão escolar, encarceramento e mortes teriam como principais articuladores a branquitude, a biopolítica e a necropolítica. “A branquitude diferencia e divide a sociedade brasileira entre os vencedores e os vencidos, já antes do pontapé inicial. Ela, e não o racismo, é o divisor. O racismo une na forma de pensar e de agregar crenças e valores, cria consenso. A loura branca de olhos azuis, padrão indiscutível da beleza socialmente valorizada, é um exemplo do consenso do racismo. A branquitude diferencia, dá vantagens e abre as portas, inclusive favorecendo a ascensão social. Na outra ponta, todo menino negro teme ser abordado pela polícia. Para os negros, a branquitude abre apenas algumas portas: da cadeia, do camburão, do cemitério” (Theodoro, 2021, p. 73).

Como afirma o autor, o racismo é a ideologia que, produzida pela materialidade das relações desiguais, promove a pacificação das vontades e mentalidades que sustentam a reprodução das desigualdades. Tais conceitos centrais estão presentes com mais força em cada um dos capítulos, e percorrê-los é avançar em uma espécie de crescente dramática da violação da população negra: a branquitude organiza o mundo do trabalho, a biopolítica está mais operante na esfera da educação e da saúde, controlando corpos, fazendo ou deixando viver e morrer; e a necropolítica faz a transição entre a vida no território negro e o funcionamento das instituições de repressão e justiça, com a produção de mortes.

“No micro, importa a caracterização do racismo em seus desdobramentos em práticas de discriminação e preconceito racial. Já no macro, o racismo e seus efeitos serão estudados levando em consideração suas variantes mais importantes: a branquitude, o biopoder e a necropolítica” (Theodoro, 2021, p. 67).

Pelo texto bem desenhado do autor, é possível notar o processo em que a sociedade desigual desenvolve-se pelo nível estrutural e vai modelando a totalidade da vida social, seja pelo farto material empírico mobilizado por Theodoro, seja pelas reflexões promovidas a partir das obras consultadas. Theodoro apresenta então uma descrição objetiva dos traços dessa sociedade: “Quatro características podem ser associadas às sociedades desiguais. A primeira é que são sociedades que convivem com a situação de desigualdade extrema e persistente, em detrimento de um grupo racialmente discriminado, sem que esse quadro suscite seu enfrentamento efetivo por parte do Estado. Em segundo lugar, são sociedades que produzem assimetrias em áreas diversas e importantes da dinâmica social, como o mercado de trabalho, a educação, a saúde, a distribuição espacial da população, cada uma delas agindo como potencializadora das desigualdades; essas diferentes assimetrias se autorreforam e são cumulativas, em desfavor do grupo discriminado. Em terceiro, essas sociedades estabelecem mecanismos jurídico-institucionais e repressivos que funcionam como elementos de estabilização social e de preservação do quadro de desigualdade. E, por fim, enfraquecem as forças contrárias ao status quo, notadamente os movimentos sociais, que não conseguem acumular recursos políticos, simbólicos ou econômicos, descaracterizando-os em suas demandas políticas, criminalizando qualquer reivindicação ou bandeira que possa alterar o quadro de iniquidade” (Theodoro, 2021, p. 18).

Assim, a produção e a reprodução de violações na sociedade desigual, desde a perspectiva colocada pelo autor pelas quatro características acima, acrescentam um quê de dinamismo ao seu esquema interpretativo.

Contudo, ainda cabem três observações gerais. A primeira delas é o destaque ao trabalho informal na análise de Theodoro. Historicamente, a população negra tem ocupado sua força de trabalho nas atividades laborais que estão fora dos esquemas formais das relações de trabalho. Isto é, a massa de trabalhadores negros não goza dos direitos celebrados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ao longo da história do Brasil, os negros desempenham atividades sem estabilidade, sem acesso a outros direitos, como vale-transporte e vale-alimentação, não possuem a proteção corporativa dos sindicatos etc. Isto é uma importante característica, pois, de modo geral, tudo o que é pensado em termos de políticas públicas para o mundo do trabalho tem por base a realidade dos trabalhadores celetistas, privando os negros inclusive da condição legal de trabalhador.

O segundo aspecto é a aproximação que Theodoro faz entre as questões ligadas à desigualdade e os problemas de violência e justiça. Durante o processo de transição democrática, o otimismo contextual esperou a redução da pobreza, a redução da violência, bem como da democratização das instituições, o fim da repressão. As duas expectativas foram frustradas, e a realidade histórica mostrou que, por um lado, a repressão estatal, a produção de encarceramento e a violência policial e, por outro, a violência interpessoal homicida possuem lógicas próprias que não foram alcançadas pelas noções correntes de desigualdades. A perspectiva da sociedade desigual, portanto, fornece um caminho analítico promissor para a análise destes dilemas.

Por fim, o texto apresenta um epílogo dedicado ao ativismo negro antirracista que viria melhor como prólogo. Ao longo de todo o livro está presente a ação dos movimentos negros, intelectuais negros, ativistas etc. que fazem com que os problemas sociais se tornem problemas políticos.

 

O AUTOR:

Paulo César Ramos é doutor em sociologia pela USP, bacharel e mestre em sociologia pela UFCar, e foi pesquisador de pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia (2022). É pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo. É autor do livro Contrariando a estatística: genocídio, juventude negra e participação política (Alameda Editorial, 2021).



Newsletter

Newsletter

Pular para o conteúdo