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Em busca do empreendedorismo social inclusivo

Na base da pirâmide, a intenção de empreender e o sucesso do empreendimento são impactados pelo ambiente empreendedor hostil, que reflete as imensas desigualdades socioeconômicas brasileiras. Para superá-las, é preciso repensar os mecanismos de apoio às iniciativas sociais desse estrato populacional na construção de suas próprias soluções.

Por Edgard Barki, Marcus Alexandre Yshikawa Salusse, José Guilherme F. de Campos, Thomaz Novais Rocha e Ute Stephan

empreendedorismo social inclusivo

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e, assim como outras economias emergentes, ainda convive com altos níveis de pobreza e inúmeros problemas sociais. Nas sociedades caracterizadas pela desigualdade, as instituições, em geral, sãoinsuficientes para prover aos estratos da população mais carentes suporte adequado às suas necessidades e à sua efetiva participação nos mercados formais. Deficiências no sistema educacional, déficit habitacional quantitativo e qualitativo, escassez de serviços de saneamento e baixo acesso a serviços de saúde são exemplos desses vazios institucionais. Todos eles causam graves problemas sociais e econômicos para a população da base da pirâmide (BdP).

Definida por alguns autores como pessoas que vivem com menos de US$ 2 por dia,¹ a BdP se diferencia da extrema pobreza, cuja métrica é renda per capita diária inferior a US$ 1. Segundo alguns estudos mais recentes, dentre os quais este, as pessoas que compõem a base da pirâmide contam com menos de US$ 8 por dia² para viver. Outras abordagens definem esse estrato populacional como multidimensional, incluindo indicadores além da baixa renda.

Os negócios de impacto surgiram como alternativa às limitações do Estado em resolver problemas sociais e ambientais e para melhorar a sociedade como um todo por meio de inovações sociais. Benéficas para a sociedade, as inovações sociais aumentam sua capacidade de ação. Ocorrem em todos os setores, em grande parte nas fronteiras entre eles, sejam públicos, sem fins lucrativos e privados.³

A criação de negócios de impacto por parte de empreendedores sociais tornou-se tendência mundial. Ao mesmo tempo que visam o impacto social positivo, essas organizações híbridas utilizam mecanismos de mercado para se tornar autossustentáveis financeiramente. Apesar de a ideia não ser nova, os negócios de impacto ganham visibilidade na esteira de abordagens como Sistema B, capitalismo consciente, valor compartilhado e os princípios de ESG (ambiental, social e governança).

Os negócios de impacto têm como objetivo principal gerar valor social. Isso se traduz na criação de benefícios (maior acesso à educação ou à saúde, por exemplo) ou na diminuição de custos (caso de tecnologias mais eficientes) para a sociedade⁴ de forma a reduzir as vulnerabilidades, aumentar as oportunidades na BdP e/ou minimizar os custos de transação e assimetria de informação.

Embora as vantagens dos negócios de impacto pareçam ser bem compreendidas, sabemos muito pouco de quão inclusivo é o empreendedorismo social da BdP e o que de fato significa ser empreendedor social da periferia. São raros os exemplos de negócios de impacto bem-sucedidos e com escala criados por essa população, e o campo do empreendedorismo social, por buscar trazer soluções para os desequilíbrios sociais, poderia promover maior igualdade de oportunidades. No entanto, não é isso que observamos. Muitos são os desafios pessoais e estruturais enfrentados pelos empreendedores sociais da BdP para se consolidar no mercado. Também por isso, é extremamente relevante repensar os mecanismos de apoio a esses empreendedores para que o modelo tradicional capitalista não seja replicado em um campo que pretende, justamente, romper o paradigma vigente da desigualdade.

Em 2020 e 2021, uma pesquisa que fizemos com 101 empreendedores sociais no Brasil nos permitiu identificar como o campo de empreendedorismo social brasileiro reflete as desigualdades sociais do país. Os empreendedores sociais da periferia diferem de maneira significativa daqueles de classes sociais mais altas, principalmente no acesso tanto ao capital financeiro, quanto ao social, ao psicológico e ao humano.⁵ Em vez de criar uma mudança estrutural de baixo para cima, tal contexto limita a capacidade de inovação social proveniente da BdP e reforça as desigualdades socioeconômicas vigentes.

Realizada em parceria com a Fundação Arymax e com o Seforis (programa multidisciplinar financiado pela Comissão Europeia que investiga o potencial do empreendedorismo social na Europa e no mundo), nossa pesquisa revela que a estrutura desigual da sociedade brasileira se reproduz no campo do empreendedorismo social por meio de dois mecanismos. O primeiro está relacionado à capacidade percebida de gerar inovação social significativamente maior entre empreendedores das classes sociais mais abastadas. O segundo, nas incontáveis dificuldades da BdP em criar, desenvolver e escalar os negócios, o que limita seu potencial de inovar ou gerar impacto social mais relevante ou estrutural.

 

A riqueza na base da pirâmide

 

Em 2002, Prahalad e Hart⁶ publicaram artigo seminal em que afirmavam haver, na BdP, um enorme mercado capaz de fazer as grandes empresas não só lucrar, mas também, ao mesmo tempo, oferecer acesso a produtos e serviços básicos – em resumo, a proposta seria vantajosa para todos. Graças a essa ideia, e orientadas a desenvolver inovações destinadas à BdP, multinacionais como Nestlé, Coca-Cola e Unilever criaram unidades de negócio no Brasil e em outros países emergentes. Mais de duas décadas depois, muitas grandes empresas e novos empreendimentos continuam, com sucesso, criando produtos e estratégias direcionados a esse público.

Ao longo dos últimos anos vem mudando a perspectiva da BdP: já não se trata de criar produtos e serviços e oferecê-los a essa população (BdP 1.0), mas de cocriar modelos de negócio em parceria com ela (BdP 2.0). Mais recentemente, evoluiu para a atuação integrada e sistêmica visando o desenvolvimento sustentável para erradicar a pobreza (BdP 3.0). Sem esquecer a ação das grandes companhias, a atividade empreendedora passou a ser vista também com potencial de reduzir a pobreza na BdP.⁷

Apesar dessa evolução, a literatura atual ainda foca, predominantemente, na concepção da BdP como consumidora (1.0), em vez de repensar a atuação dos negócios da perspectiva 2.0 ou 3.0. Além disso, há ceticismo em relação ao caráter promissor da BdP, tanto do ponto de vista empresarial, quanto do bem-estar social e erradicação da pobreza.⁸ O que se observa é que, apesar de diversas iniciativas no campo empresarial para combater a miséria, a desigualdade social aumentou nos últimos anos, e países como o Brasil ainda convivem com uma série de problemas sociais, entre os quais falta de acesso a serviços adequados de habitação, saúde, saneamento, mobilidade e educação.

Nosso argumento é que a literatura e as próprias empresas buscaram a riqueza na base da pirâmide e não a riqueza da base da pirâmide. A busca foi pelo “ouro” existente no mercado da BdP, tal qual a busca de riquezas empreendida pelos colonizadores que exploraram tantos territórios. As visões 2.0 e 3.0, com seus propósitos inclusivos, raramente são aplicadas. Diante disso, a “riqueza na base da pirâmide” se limita à estratégia de lançar produtos e serviços com potencial lucrativo em vez de desenvolver renda, talentos ou ambições da BdP.

 

A promessa do empreendedorismo social

 

Nas duas últimas décadas, ganhou força a ideia de que o empreendedorismo social poderia ser um caminho para resolver problemas sociais. Utilizando mecanismos de mercado, muitos empreendedores sociais seguiram o exemplo de Muhammad Yunus e do Grameen Bank para criar empresas cujo objetivo principal é enfrentar questões sociais ou ambientais. No mundo todo, vemos a proliferação de um ecossistema de investidores de impacto, aceleradoras, organizações de apoio e empreendedores sociais que se empenham em promover o empreendedorismo social e criar negócios de impacto, impulsionados pela possibilidade de gerar valor compartilhado para que tanto a empresa como a sociedade saiam ganhando.⁹

No entanto, da perspectiva global percebemos que a maior parte dos empreendedores sociais ainda são provenientes de países desenvolvidos ou de classes sociais mais altas dos países emergentes. São pessoas que, inconformadas com as mazelas sociais e ambientais e com a incapacidade ou negligência das instituições e do Estado, buscam alternativas e soluções para resolver esses problemas. Esse propósito que move tantos empreendedores influencia não apenas o campo do empreendedorismo social, mas também organizações alinhadas com movimentos e iniciativas, como o Sistema B ou o Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU). Há inclusive casos da atuação do próprio Estado e das instituições nesse âmbito, como os social impact bonds, os títulos de impacto social, e a criação de incentivos fiscais ao investimento social. Essa tendência tem implicação direta na sociedade e, como resultado, milhões de famílias em situação de vulnerabilidade já foram beneficiadas nos últimos anos.

Ainda assim, o modo como a BdP e o empreendedorismo social são vistos, mesmo que a partir de um olhar bem-intencionado, guarda similaridades com a mentalidade colonial: a população abastada é que resolve os problemas dos menos favorecidos sem necessariamente envolver ou incluir essa população na solução de seus próprios desafios. Importante destacar que, apesar de ser uma prática honrosa de capitalismo consciente com impacto positivo na sociedade, as abordagens existentes de apoio aos empreendedores sociais da BdP mantêm a centralização do poder e das inovações. Tal cenário – que, em vez de atenuar, pode reforçar as desigualdades socioeconômicas existentes – tampouco estimula a população da BdP a ser protagonista das inovações sociais, pois de certa forma impede que ela desenvolva seus conhecimentos e competências necessárias para escalar os benefícios gerados pelos negócios de impacto social por meio dos indivíduos da própria BdP. Dessa forma, torna-se essencial identificar os obstáculos ao desenvolvimento dos empreendedores sociais da BdP e os mecanismos para suplantá-los.

 

Um ambiente empreendedor hostil

 

A interferência do contexto ambiental não é o único desafio na jornada dos empreendedores sociais. Questões individuais, como falta de acesso a diferentes recursos, têm de ser igualmente enfrentadas. Do ponto de vista macroambiental, o papel de um sistema de apoio e regulação que incentive o empreendedorismo social e fomente o crescimento dos negócios é evidente. Da perspectiva individual, o processo empreendedor começa com determinado conjunto de recursos que permita a emergência de objetivos e aspirações ao longo do tempo.¹⁰

Na base da pirâmide, o ambiente empreendedor hostil contribui negativamente tanto para a intenção de empreender como para o sucesso empreendedor. A criação, desenvolvimento, escala e sobrevivência dos negócios são prejudicados por questões de acesso à internet de qualidade e dificuldades logísticas e de acesso a mercados. Essas limitações do contexto ambiental são intensificadas pela ausência de incentivos públicos, por uma visão pouco empreendedora do Estado e pelo fato de que negócios com propósito de gerar impacto social perseguindo outros objetivos além do econômico tendem a aumentar as chances de insucesso.¹¹

Ao longo de sua jornada, empreendedores sociais na BdP enfrentam muitos entraves que mantêm a desigualdade social no país, conforme mostra a pesquisa que desenvolvemos. Nosso principal argumento, apoiado em evidências, é de que a base da pirâmide sofre de forma acentuada a dificuldade de acesso a quatro tipos de capital: financeiro, humano, psicológico e social.

 

Capital financeiro | A satisfação e a felicidade dos empreendedores aumentam com esse capital. Conforme mostram diversas pesquisas, nas sociedades caracterizadas por elevados níveis de pobreza, por exemplo, a poupança está relacionada ao bem-estar dos empreendedores. No entanto, uma vez satisfeitas as necessidades básicas, o rendimento adicional não se traduz necessariamente em mais felicidade. A angústia financeira é um importante fator de stress e tem impacto negativo no bem-estar dos empreendedores.¹²

Além dos recursos financeiros, outros meios materiais são escassos. Porém, quando disponíveis, seus efeitos no bem-estar dos empreendedores desse estrato são mais significativos do que no dos indivíduos de rendimentos mais elevados. Alguns estudos apontam que o sucesso financeiro dos empreendedores da BdP tem forte relação com o seu bem-estar.¹³ Isso porque muitos enfrentam más condições de subsistência, dependendo diretamente da renda gerada para sustentar a si e à família.

Dada a relevância do capital financeiro tanto para os negócios como para os próprios empreendedores sociais da BdP, é crucial desenvolver mecanismos financeiros que lhes forneçam apoio para que possam criar e desenvolver seus negócios.

Os empreendedores da BdP têm capital financeiro muito inferior e, conforme revelamos em nossa pesquisa, seu capital inicial é 37 vezes menor do que o das classes abastadas. E embora o volume de vendas dos negócios de impacto da BdP fosse 21 vezes inferior ao dos empreendedores de mais alta renda, entre os empreendedores da BdP, em média, não houve prejuízos no ano anterior à pesquisa. Já entre os mais abastados, as perdas foram, em média, superiores a R$ 280 mil (USD 56 mil). Isso mostra a dificuldade dos empreendedores da BdP não só de acessar capital financeiro para a criação dos negócios, mas de manter qualquer nível de endividamento capaz de suportar crescimentos de longo prazo. É uma barreira central para que os empreendedores da BdP possam escalar e impactar mais pessoas.

 

Capital humano | Está relacionado ao conhecimento, formal e informal, adquirido ao longo da vida do empreendedor. Trata-se de atitudes e habilidades que permitem aos indivíduos usar suas competências e se tornar mais produtivos e eficientes. O capital humano está associado positivamente à criatividade e geração de valor.

No caso da BdP há uma grande defasagem na educação formal dos empreendedores, cuja escolaridade costuma ser de qualidade inferior. Além disso, conceitos e conhecimentos de gestão de negócios são menos acessíveis. Na amostra de nossa pesquisa, cerca de 30% dos empreendedores da BdP não cursaram o ensino superior. Entre os empreendedores de mais alta renda, esse número cai para 5%.

Com esse descompasso na formação desde a educação básica, as lacunas no conhecimento afetam não apenas o empreendedor social da BdP, mas também seus próprios colaboradores. Muitas vezes lhes faltam também conhecimentos de gestão e outras competências necessárias para desenvolver seus negócios.

O conhecimento formal produzido em outros contextos não pode ser simplesmente transplantado acriticamente para uma atuação na BdP. No entanto, o acesso a tal conhecimento poderia ajudar os empreendedores a melhor gerenciar seus negócios e contribuir positivamente para uma eventual ressignificação e adaptação a esse contexto. Trata-se de viabilizar o acesso para expandir horizontes e capacitar os empreendedores sociais a criarem seu próprio conhecimento a partir de comunidades de prática e aprendizagem social situada (de acordo com a experiência do seu próprio grupo social).¹⁴

 

Capital psicológico | Refere-se ao estado de desenvolvimento psicológico positivo do indivíduo e é caracterizado por confiança para assumir tarefas desafiadoras, otimismo perante o sucesso atual e futuro da organização, perseverança rumo aos próprios objetivos, redirecionamento dos caminhos para atingi-los quando necessário e, por fim, pela resiliência.¹⁵ Como o capital psicológico apresenta características pessoais que influenciam positivamente o bem-estar, ele é importante desde o início de todo negócio para identificar oportunidades e promover inovações.

Esse conjunto de qualidades é influenciado por uma diminuição do bem-estar e da satisfação na gestão dos seus negócios. No caso dos empreendedores da BdP, o capital psicológico sofre com menor nível de satisfação percebido. Em nossa pesquisa, 76% dos empreendedores de classes sociais mais altas se consideram satisfeitos com o seu trabalho. Na base da pirâmide, são 44%.

 

Capital social | Está associado às redes de relacionamento que podem ser acessadas ou mobilizadas por meio de laços pessoais. Duas formas são frequentemente identificadas: laços fortes em grupos pequenos e homogêneos, e laços fracos em grupos maiores e heterogêneos, ou seja, em pessoas com as quais os empreendedores têm menos contato cotidiano ou menos conexão. Indivíduos e empreendedores com poucos laços com pessoas de maior poder econômico têm menos acesso à informação e menos recursos oriundos de outras redes, e tais meios podem ser importantes para o sucesso do seu esforço empreendedor.¹⁶

Nos mercados da BdP, os empreendedores em geral usam o capital social para preencher vazios institucionais a fim de acessar recursos emocionais, humanos ou financeiros dos mais diversos tipos. De fato, estudos anteriores comprovam o argumento de que as redes sociais são mais importantes para os empreendedores nas economias emergentes do que nas desenvolvidas.¹⁷ No entanto, no âmbito das comunidades os laços tendem a se desenvolver entre as pessoas que partilham características semelhantes, e assim, no caso da BdP, com níveis igualmente baixos de recursos.¹⁸

Essa dificuldade de acesso a outras redes limita o estabelecimento de parcerias com mais organizações e a obtenção de recursos essenciais para o desenvolvimento dos negócios dos empreendedores da BdP. É exatamente nesse sentido a conclusão da nossa pesquisa: em média, os empreendedores de classes sociais mais altas realizaram 36% mais de parcerias com outras organizações do que os da BdP.

Os quatro tipos de capital – financeiro, humano, psicológico e social – podem ser analisados de modo individual, mas se influenciam mutuamente e formam um conjunto. Em geral os empreendedores da BdP sofrem com a ausência deles. Como reflexo dessas diferenças, é altamente variável a escala do impacto social gerado pelos empreendedores: na BdP, é 19 vezes menor do que nas classes mais altas, nas quais os negócios de impacto podem se desenvolver mesmo com prejuízo e ainda assim criar impacto social. Na BdP, ao contrário, os negócios precisam gerar lucro para continuar operando. Isso mostra a capacidade dos empreendedores de classes mais altas de obter crédito e, portanto, não depender totalmente do sucesso do negócio para sobreviver. Em contrapartida, os empreendedores da BdP não podem se dar ao luxo de ter prejuízo, pois não raro lhes faltam fontes de renda, reservas financeiras ou outras possibilidades de captação de recursos.

Com menos acesso ao capital, sem poder cometer erros de gestão nos negócios, e enfrentando inúmeros obstáculos estruturais, os empreendedores da BdP estão também muito menos dispostos a correr riscos para inovar. Essa postura os leva a buscar projetos de baixo risco, uma vez que a necessidade de manter o negócio funcionando para garantir a subsistência é maior que o estímulo de inovar. Nesse cenário de vulnerabilidade, a possibilidade de criar inovação social é extremamente difícil para os empreendedores da BdP.

Uma organização brasileira que objetiva fomentar o empreendedorismo social da BdP graças à sua visão integradora e empenho em facilitar o acesso a diferentes tipos de capital é a Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia (Anip). Originada em 2018 pela coalizão entre a Artemisia (primeira aceleradora de negócios de impacto no Brasil), o Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios (FGVcenn) e A Banca (organização social proveniente do Jardim Ângela, um dos bairros mais violentos do mundo nos anos 1990), a Anip atua na formação de empreendedores e capacitação de gestão. Além disso, disponibiliza-lhes capital financeiro tanto via empréstimos quanto via capital semente, facilita-lhes o acesso a mercados e redes de troca e aumento de autoconfiança e lhes provê momentos agradáveis e de bem-estar com rodas de conversa e cafés virtuais.

Ao longo de quatro anos, a Anip beneficiou diretamente 105 negócios de impacto da BdP. No total, investiu na periferia mais de R$ 750 mil em capital semente e engajou de alguma forma mais de 200 atores do ecossistema de negócios de impacto. Os fóruns, as rodas de conversas e ações nas redes sociais da Anip mobilizaram e inspiraram mais de 6.300 pessoas. A organização trabalha intensamente o tema empreendedorismo social da BdP a fim de mostrar seu potencial de inovação disruptiva; já articulou uma série de atores da sociedade civil e do setor privado para promover mudanças que venham da própria BdP. Nesse sentido, o papel da A Banca como protagonista e principal gestora da Anip é essencial para manter a cultura, o modo de pensar e a lógica da BdP.

 

Marcadores étnicos e impactos de crises

 

Além de todos os desafios enfrentados pelos empreendedores da BdP para desenvolver inovações sociais, a estrutura e a dinâmica do empreendedorismo social revelam aspectos étnicos relacionados à situação de vulnerabilidade diante de crises que devem ser mais bem compreendidos.

Com a maioria da população negra, no Brasil a distinção racial é bastante eloquente. Enquanto os negros representam 75% dos mais pobres, os brancos são 70% entre os mais ricos. Essa diferença é espelhada, e até aumentada, no empreendedorismo social: 87,5% dos empreendedores sociais da BdP da nossa amostra se declararam negros; nas classes mais abastadas, declararam-se brancos 91% dos empreendedores.

Da mesma forma, as diferenças socioeconômicas têm consequências importantes na forma como os empreendedores da BdP conseguem enfrentar as crises. Enquanto a Covid-19, em média, não teve impacto nas vendas realizadas pelos empreendedores sociais das classes altas, os empreendedores da BdP venderam 27% a menos, e metade de suas empresas ficaram ameaçadas de fechar as portas por causa da pandemia. Na BdP, portanto, a resiliência às crises é muito menor.

Isso indica que os empreendedores sociais da BdP não só saem em desvantagem ao iniciar seus negócios, mas também são mais vulneráveis a crises, o que aumenta ainda mais o fosso entre as duas realidades.

Dessa forma, a desigualdade socioeconômica se perpetua, pois quem busca soluções para as questões sociais que atingem a base da pirâmide são os mais abastados. Aos empreendedores da periferia, por sua vez, resta a perspectiva de replicar modelos de sucesso já consagrados – e pouco espaço para inovar.

Se quisermos criar condições em favor de mudanças socioeconômicas estruturais, precisaremos quebrar os muros (in)visíveis da sociedade e conceber novas oportunidades de igualdade para a BdP na construção das suas próprias soluções. Isso pode ser disruptivo no desenvolvimento não só de novos produtos e serviços, mas também de novos modelos empresariais e na inovação social de real impacto. É uma nova perspectiva, em que a BdP não é nem consumidora, nem beneficiária, nem produtora, mas protagonista de novas soluções, pois se apropria do próprio destino. Eles tornam-se criadores da BdP.

Apesar de todos os desafios, os empreendedores sociais da BdP têm algumas vantagens comparativas em sua atuação no campo social. Dentre elas, destacamos três: vivência própria dos problemas enfrentados, conhecimento local e pleno acesso à população a ser beneficiada.

Enquanto os empreendedores sociais de camadas mais afluentes buscam entender os problemas da óptica externa, de estrangeiro, os empreendedores sociais da BdP vivenciam cotidianamente as adversidades que buscam resolver. Além de dar maior legitimidade a suas ações, essa vivência prática faz com que a missão, o propósito, o engajamento com a causa e o senso de urgência se tornem centrais nos negócios.

A experiência própria também permite conhecer praticamente tudo que ultrapassa os dados que as pesquisas de mercado conseguem identificar. Sem contar o uso apropriado da linguagem na interação com o público e o conhecimento profundo de onde estão gargalos e pontos de atrito que impedem as inovações sociais de ser implementadas.

Por fim, um dos maiores desafios de trabalhar com a BdP é o last mile. Ou seja, como acessar os mercados e chegar até a ponta de forma eficiente. Os empreendedores sociais da BdP já estão em suas próprias comunidades e, dessa forma, seu acesso aos que devem ser beneficiados é um trunfo.

Neste contexto de diferenças abissais, percebemos alguns elementos propulsores para esses empreendedores; no entanto, essa comunidade precisa do apoio de sistemas estruturantes a fim de diminuir o desequilíbrio de oportunidades existentes atualmente.

 

Novos papéis do ecossistema de impacto

 

Perceber a BdP como criadora de novas soluções pode ser considerado uma abordagem ingênua ou idealista. As dificuldades enfrentadas por seus empreendedores e identificadas por nossa pesquisa pedem estratégias de sobrevivência em vez de inovações radicais. Contudo, a sociedade e os responsáveis pelas principais organizações do ecossistema de impacto precisam reconhecer a desigualdade existente na atual dinâmica social. O empreendedorismo social pode ser parte da solução, mas aparentemente apenas replica a estrutura vigente. Para que isso mude, as organizações do ecossistema de impacto devem repensar seus papéis e atuar efetivamente para capacitar e apoiar empreendedores da BdP na superação de seus reveses.

É inegável o impacto do empreendedorismo social por meio de uma atuação direta buscando criar um equilíbrio na sociedade.¹⁹ No entanto, mudanças estruturais sistêmicas só serão possíveis a partir de soluções que sejam cocriadas colaborativamente de baixo para cima, com holístico e profundo conhecimento das questões sociais.²⁰ Os empreendedores sociais da BdP, em geral, replicam os modelos existentes, enquanto seus correlatos das classes mais abastadas podem se dar ao luxo de assumir riscos e, com isso, impactar milhões de pessoas. A BdP ainda é vista como cliente, beneficiária ou produtora, raramente como protagonista. Situação semelhante ocorre com algumas grandes empresas também engajadas na superação dos principais desafios sociais e ambientais contemporâneos; elas adotam seja a lógica de ESG, seja o valor compartilhado ou o capitalismo consciente, para citar conceitos largamente utilizados. Porém, apesar de seus esforços em prol da diversidade, na maioria das vezes tais empresas conduzem iniciativas individualizadas e sem a visão de mudança sistêmica. Os governos, por sua vez, que seriam capazes de atuar de forma integradora, não preenchem as lacunas sociais existentes em países como o Brasil.

 

Como mudar essa realidade

 

Novos mecanismos financeiros desenvolvidos sob medida para os empreendedores da BdP são necessários para ajudá-los a mitigar os riscos financeiros associados ao desenvolvimento de inovações. Tais mecanismos devem ser alinhados com programas de apoio e formação de gestores a fim de facilitar a idealização de novas soluções (produtos e serviços) não convencionais (mas sintonizadas com a sua realidade social) para lidar com os problemas sociais. Além de enfrentar as questões financeiras, organizacionais e estruturais, é fundamental orquestrar iniciativas de apoio psicológico no intuito de auxiliar os empreendedores da BdP a lidar com os desafios inerentes a essa jornada e com outros desafios pessoais e comunitários associados a viver em contexto de recursos limitados.

Uma maior cooperação na forma de articulação entre diferentes atores é essencial: grandes empresas, ONGs, organizações de apoio, empreendedores e o Estado. Nosso entendimento é que essa articulação criaria alternativas para fomentar os negócios de impacto na BdP: apoio holístico, por exemplo, a fim de garantir uma boa estrutura para o desenvolvimento sustentável dos negócios nessa camada. Tal perspectiva está alinhada com o próprio conceito de ecossistema, cujos componentes gerariam de forma harmônica melhores condições de sobrevivência para todos.

Outro aspecto importante é o apoio ao desenvolvimento de iniciativas que fortaleçam a criação de parcerias entre atores da própria BdP. Talvez seja proveitosa a criação de um ecossistema em que a centralidade de organização, definição de objetivos e estratégias estejam nas mãos dos atores da BdP atuando em determinada região ou congregando pessoas e empreendedores que partilham desafios e soluções comuns.

A centralidade da questão geográfica é essencial quando se trata de desenvolver colaborações, parcerias e suporte em um ecossistema empreendedor. Definições seminais do conceito²¹ ressaltam a concepção de ecossistema como um conjunto de atores interconectados em uma escala geográfica local. As dinâmicas geográficas próprias de cada região são relevantes.

De fato, a consolidação de um ecossistema de impacto social forte e vibrante depende mais da interação orgânica e frequente entre atores engajados na construção de significados compartilhados e busca de estruturas e recursos necessários ao desenvolvimento de negócios de impacto do que da criação de um ecossistema de cima para baixo.²²

Essa atuação conjunta do Estado e atores institucionais diversos para fomentar o empreendedorismo da BdP deve estruturar ações que percebam o empreendedor social de maneira integrada, oferecendo- lhe suporte institucional para os vazios institucionais, bem como meios que lhe permitam amplo acesso aos capitais financeiro, humano, psicológico e social. A Anip é um exemplo de organização que consegue articular diferentes atores em prol de mudanças sistêmicas e demonstrar que há espaço para vários outros modelos similares que respeitem a amplifiquem a voz da BdP.

Apesar da vivência local, do conhecimento e da facilidade de acesso aos mercados, o empreendedorismo social da BdP ainda é prejudicado tanto por fatores ambientais como pela falta de acesso a capitais. Esse cenário replica a estrutura de desigualdade dos países emergentes. Acreditamos que o desenvolvimento de mecanismos estruturais com visão colaborativa e holística pode promover o equilíbrio do campo social e desenvolver seu potencial de criar mudanças profundas na sociedade.

 

NOTAS

1 Prahalad, C. K. (2005). The Fortune at the bottom of the pyramid. Wharton School Publishing. Upper Saddle River, NJ.

2 Cañeque, F. C.; Hart; S. L. (Eds.). (2017). Base of the pyramid 3.0: Sustainable development through innovation and entrepreneurship. Routledge.

3 Murray, R.; Caulier-Grice, J.; Mulgan, G. (2010). The open book of social innovation (vol. 24). London.

4 Phills, J. A.; Deiglmeier, K.; Miller, D. T. (2008). Rediscovering social innovation. Stanford Social Innovation Review, 6(4), 34-43.

5 Barki, E.; Campos, J.G.; Lenz, A.; Kimmitt, J.; Stephan, U.; Naigeborin, V. (2020). Support for social entrepreneurs from disadvantaged areas navigating crisis: Insights from Brazil. Journal of Business Venturing Insights 14 (2020) e00205. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.jbvi.2020.e00205>.

6 Prahalad, C. K.; Hart, S. L. (2002). The fortune at the bottom of the pyramid. Strategy and Business, 54-54.

7 Kimmitt, J., Muñoz, P.; Newbery, R. (2020). Poverty and the varieties of entrepreneurship in the pursuit of prosperity. Journal of Business Venturing, 35(4), 105939.

8 Dembek, K.; Sivasubramaniam, N.; Chmielewski, D. A. (2020). A systematic review of the bottom/base of the pyramid literature: Cumulative evidence and future directions. Journal of Business Ethics, 165(3), 365-82.

9 Kramer, M. R.; Pfitzer, M. W. (2016). The ecosystem of shared value. Harvard Business Review, 94(10), 80-89.

10 Sarasvathy, S. D. (2001). What makes entrepreneurs entrepreneurial? Available at SSRN 909038.

11 Muñoz, P.; Cacciotti, G.; Cohen, B. (2018). The double-edged sword of purposedriven behavior in sustainable venturing. Journal of Business Venturing, 33(2), 149-78.

12 Stephan, U. (2018). Entrepreneurs’ mental health and well-being: A review and research agenda. Academy of Management Perspectives, 32(3), 290-322.

13 Rahman, S. A.; Amran, A.; Ahmad, N. H.; Khadijeh Taghizadeh, S. (2019). The contrasting role of government and NGO support towards the entrepreneurs at base of pyramid and effect on subjective wellbeing. Journal of Small Business & Entrepreneurship, 31(4), 269-95.

14 Lave, J.; Wenger, E. (1991). Situated learning: Legitimate peripheral participation. Cambridge University Press.

15 Luthans, F.; Avolio, B. J.; Avey, J. B.; Norman, S. M. (2007). Positive psychological capital: Measurement and relationship with performance and satisfaction. Personnel Psychology, 60, 541-72.

16 Granovetter, M. (1983). The strength of weak ties: A network Theory revisited. Sociological theory, 201-33.

17 Danis, W. M.; De Clercq, D.; Petricevic, O. (2011). Are social networks more important for new business activity in emerging than developed economies? An empirical extension. International Business Review, 20(4), 394-408.

18 Shepherd, D. A.; Parida, V.; Wincent, J. (2020). Entrepreneurship and poverty alleviation: the importance of health and children’s education for slum entrepreneurs. Entrepreneurship Theory and Practice, 1042258719900774. 

19 Martin, R. L.; Osberg, S. (2007). Social entrepreneurship: The case for definition. Stanford Social Innovation Review.

20 Stephan, U.; Patterson, M.; Kelly, C.; Mair, J. (2016). Organizations driving positive social change: A review and an integrative framework of change processes. Journal of Management, 42(5), 1250-81.

21 Cohen, B. (2006). Sustainable valley entrepreneurial ecosystems. Business Strategy and the Environment, 15(1), 1–14. doi:10.1002/bse.428

22 Thompson, T. A.; Purdy, J. M.; Ventresca, M. J. (2018). How entrepreneurial ecosystems take form: Evidence from social impact initiatives in Seattle. Strategic Entrepreneurship Journal, 12(1), 96-116.

 

OS AUTORES

Edgard Barki é professor de Empreendedorismo da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP). Coordenador do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios (FGVcenn). Conselheiro de organizações do terceiro setor e de negócios de impacto. Seus temas de interesse são empreendedorismo social e base da pirâmide. Co-organizador dos livros Negócios de impacto socioambiental no Brasil, Negócios com Impacto Social no Brasil e Varejo para a Baixa Renda. Coautor do livro Varejo no Brasil.

Marcus Alexandre Yshikawa Salusse é professor e coordenador dos cursos de Educação Executiva no Insper. Mestre e doutor em Administração de Empresas pela FGV/ EAESP, seus interesses de pesquisa estão relacionados a empreendedorismo, empreendedorismo social, inovação e estratégia empresarial.

José Guilherme F. de Campos é professor da ESEG – Faculdade do Grupo Etapa – e pesquisador do FGVcenn. Doutor em Administração pela FEA-USP, Campos escreve em publicações nacionais e internacionais sobre temas relacionados à sustentabilidade, negócios sustentáveis e empreendedorismo.

Thomaz Novais Rocha é doutorando em Administração de Empresas pela FGV/EAESP e mestre em Administração de Empresas pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Pesquisador do FGVcenn e do Centro de Estudos em Competitividade Internacional (FGVcei) da FGV EAESP. Seus interesses de pesquisa estão relacionados à transformação digital e ao empreendedorismo social.

Ute Stephan é professora de Empreendedorismo da King’s Business School da King’s College London, professora da Transcampus, Technische Universität Dresden (Psicologia), membro da Associação Internacional de Psicologia Aplicada (IAAP), editora da Entrepreneurship Theory and Practice e editora- consultora do Journal of International Business Studies. Como especialista em Psicologia do Empreendedorismo, investiga o potencial dos indivíduos e das sociedades para prosperar por meio do empreendedorismo.

 



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