Um selo para os guardiões da floresta
Certificar os produtos da sociobioeconomia pode proteger, além do ambiente, valores e saberes ancestrais
Por André Baniwa, Raizza Miranda, M. Carmen N. Belderrain e outros
Testemunhamos um debate crescente em torno do vasto potencial das florestas e de sua capacidade intrínseca de gerar renda e bem-estar social para as comunidades que as habitam. Esse diálogo aponta para a perspectiva de construir uma nova economia, fundamentada no conceito da bioeconomia.
Indo além dos pontos de vista em que normalmente esse conceito se destrincha – o da biotecnologia aplicada ao desenvolvimento econômico; o dos biorrecursos como fonte de novas cadeias de valor; e o da bioecologia, que valoriza a biodiversidade e a conservação dos ecossistemas –, gostaríamos de ressaltar a abordagem da sociobioeconomia. Esta reúne e amplia aspectos das demais perspectivas, buscando, por um lado, a preservação ambiental e, por outro, a produção comercial que reconheça e valorize não só a biodiversidade, mas também as diversas culturas associadas às florestas e rios.
Entre os principais desafios no promissor horizonte da sociobioeconomia, está o de comunicar, de forma adequada, os diferenciais dos produtos dela oriundos. Defendemos que a criação de uma certificação que defina e avalize esses diferenciais se coloca como uma ferramenta essencial.
O universo das certificações é vasto, sendo mais conhecidas as alimentares, em particular a categoria dos orgânicos e as de cunho religioso, como kosher.
A seguir, apresentamos as especificidades da sociobioeconomia, por que seus produtos devem ser certificados e como isso beneficiaria os produtores – mas também os desafios a esse processo.
Resguardar quem cuida da floresta
Os povos indígenas e comunidades tradicionais da América Latina e Caribe são reconhecidos como os “guardiões da floresta” por seu papel na preservação ambiental. Propomos portanto tal denominação para os bens de consumo e alimentos produzidos por esses grupos, cuja maneira de existir e produzir dá forma ao conceito da sociobioeconomia.
Como o próprio nome aponta, a sociobioeconomia busca transcender o paradigma estritamente econômico, promovendo uma visão mais abrangente e integrada do desenvolvimento. Comunidades que historicamente mantiveram uma relação harmoniosa com o ambiente respondem por uma impressionante diversidade de produtos elaborados de forma sustentável a partir da rica biodiversidade de suas regiões.
Quando seus saberes ancestrais são indevidamente explorados, não só os produtos que eles geram são ameaçados, mas também o arcabouço cultural do qual esses produtos se originam.
O caso da maca peruana ilustra os riscos enfrentados por comunidades tradicionais quando seus conhecimentos se tornam alvo de marketing e tratados como commodities.
A maca, originária das terras altas do Peru, ganhou fama global como superalimento. Isso a pôs na mira da biopirataria. A exploração sem consentimento adequado, em particular por empresas chinesas, resultou em sérias consequências para os produtores e para o ecossistema andino. A soberania alimentar das comunidades indígenas ficou ameaçada; as práticas tradicionais de cultivo e a importância cultural e espiritual atribuída à maca foram ignoradas, e não houve distribuição justa dos benefícios.
Um exemplo semelhante de exploração econômica injusta e de desrespeito a práticas tradicionais se deu com os rituais com cogumelos da curandeira María Sabina, no México. Sagrados na cultura mazateca, eles foram explorados turisticamente de forma recreativa, resultando em consequências negativas para sua comunidade.
Além da apropriação cultural, na ausência de salvaguardas éticas e certificações robustas que aportem autenticidade e qualidade, consumidores podem adquirir produtos falsificados. O vazio de certificação pode, além disso, favorecer a ocultação de práticas de cultivo não sustentáveis.
A sociobioeconomia enfrenta, ainda, o desafio de comunicar que seus produtos não são só orgânicos. Eles são nutridos intrinsecamente pela floresta, contribuindo ativamente para manter viva a biodiversidade e o ecossistema que os circundam, com a participação ativa de polinizadores e outros seres. Essa complexidade mostra que existe uma lacuna fundamental a cobrir, que é a de discernir quais produtos se alinham de fato com os objetivos da sociobioeconomia.
Como certificar os guardiões