A assistência à saúde combate a mudança climática
A Health Care Without Harm é um movimento global com o objetivo de fazer o setor de saúde zerar suas emissões, buscando, na prática, criar mudanças para reverter a crise do ambiente
Por Josh Karliner
A mudança climática vem se acelerando bem mais do que previam os cientistas, provocando uma sequência de crises da qual pode não haver mais retorno. Se continuarmos queimando combustíveis fósseis e emitindo gases de efeito estufa como fazemos atualmente, os riscos relacionados à saúde só aumentarão. Uma estimativa conservadora aponta para um incremento de 9 milhões de mortes a cada ano até o fim do século.
Apesar das enormes consequências para a saúde, o setor, apesar de seu poderio ético e econômico e sua influência política em todos os níveis de governo, esteve praticamente ausente dos debates climáticos desde que os líderes mundiais assinaram a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCC, na sigla em inglês), no Rio de Janeiro, há mais de 30 anos.
No entanto, recentemente, o setor entrou na briga. Hoje testemunhamos os estágios iniciais de um movimento global da assistência sanitária pela ação climática – uma onda crescente que a Health Care Without Harm (HCWH, Assistência à Saúde sem Prejuízos), organização onde trabalho, ajudou a criar. A HCWH é uma ONG internacional que, desde 1996, procura reduzir a pegada climática do setor de saúde e mobilizá-lo em prol da justiça e da saúde ambiental. Um dos gatilhos para as mudanças recentes que ajudamos a fomentar veio em 2019, com a nossa descoberta surpreendente de que, se a assistência à saúde fosse um país, seria o quinto maior emissor de gases de efeito estufa do planeta. Isso despertou nossa motivação. No entanto, se o setor contribui, paradoxalmente, para os problemas de saúde relacionados ao clima, ele também pode ser parte da solução. A partir desse insight, percebemos uma oportunidade para promover uma mudança sistêmica.
O artigo mostra como esse movimento se desdobrou, cresceu e para onde está indo, à medida que seus esforços se somam à luta global por um clima mais saudável. Analisamos como a conscientização e o envolvimento evoluíram rapidamente no setor de assistência de saúde e, consequentemente, como deve evoluir em outros setores e em outras questões. Também tratamos dos desafios e limitações que o setor enfrenta ao assumir essa crise de identidade e, finalmente, tentamos aprender com a experiência que pode apoiar outras ações climáticas na saúde e promover transformações em outros setores da sociedade.
Uma crise da saúde
A crise climática é uma crise global da saúde, que evolui rapidamente e que faz a pandemia parecer insignificante. As fortes tempestades, ondas de calor, inundações e secas severas que caracterizam a mudança climática já provocam grandes impactos na saúde humana. O estresse térmico agrava doenças pulmonares e mortes, aumenta o número de gestações de risco e afeta a idade gestacional e o peso de recém-nascidos. Os incêndios florestais causados por eventos climáticos poluem o ar em todos os continentes, provocando doenças respiratórias e várias outras enfermidades. No mundo todo, a infraestrutura de saúde foi abalada com esses eventos climáticos extremos, prejudicando a oferta de assistência médica. Casos de ansiedade climática e outros problemas de saúde mental estão aumentando. A elevação da temperatura também fomenta as doenças transmitidas por vetores, como malária, febre maculosa e chikungunya, em áreas onde não existiam ou não eram notificadas há muito tempo, colocando milhões de pessoas em risco.
A expansão do desmatamento em várias regiões também propicia a disseminação de doenças zoonóticas e aumenta o risco de pandemias futuras. Eventos climáticos extremos destroem a agricultura, aumentam a escassez de alimentos e a desnutrição em várias partes do mundo. O deslocamento e a migração de pessoas provocados pelo clima exacerbam ainda mais os desafios da saúde.
Todos esses fatos já estão sendo observados, e o mundo não alcançou a meta de manter 1,5º C de aquecimento acima da temperatura pré-industrial – que, para os cientistas, é um limite crítico a fim de evitar o descontrole climático. Sem uma redução rápida e radical das emissões, os impactos só aumentarão. A crise climática pode causar um retrocesso de décadas no desenvolvimento da saúde e em outros avanços que já conquistamos, fazendo centenas de milhões de pessoas de países de baixa e média renda voltarem à pobreza. Acertadamente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou a mudança climática a maior ameaça sanitária do século.
Já não restam dúvidas de que a principal causa dessa ameaça global iminente é a dependência dos combustíveis fósseis. A queima de petróleo, gás e carvão é responsável por cerca 75% de todas as emissões globais e é também a principal causa da poluição atmosférica, que já responde por 20% das mortes no mundo todo, matando mais de 8 milhões de pessoas ao ano. Se não houver uma transformação ampla e profunda na matriz energética mundial, as emissões de gases de efeito estufa poderão, facilmente, duplicar esses resultados.
Criação de um movimento global
O primeiro parágrafo do primeiro artigo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima de 1992 identifica os “efeitos deletérios, significativos” na saúde como um dos maiores impactos das mudanças climáticas. Durante vários anos, no entanto, à medida que a crise aumentava, os responsáveis pelas políticas climáticas, advocacy e filantropia ignoraram completamente a importância da saúde e da potencial influência que ela poderia exercer. Foi só na última década que o setor – médicos, enfermeiros, hospitais, sistemas de saúde, ministérios, gestores de políticas públicas, organizações internacionais, agências humanitárias, ONGs e entidades privadas e filantrópicas – começou a perceber as inúmeras implicações e impactos na área e abraçou a causa.
Em 2014, a Stanford Social Innovation Review publicou um artigo em que eu, em coautoria com o presidente e cofundador da HCWH, Gary Cohen, e com o professor Peter Orris, da Universidade de Illinois, relatamos o sucesso da organização à frente de uma campanha mundial para eliminar progressivamente o mercúrio – um poluente persistente que preocupa o mundo todo – no setor da saúde. Na conclusão do artigo, observamos que estávamos começando a aplicar o que havíamos aprendido com o mercúrio no enfrentamento da mudança climática.
Desde então, criamos uma rede global robusta. Estamos mobilizando profissionais, hospitais, sistemas e organizações, ministérios e secretarias e agências internacionais para combater o que o secretário-geral da ONU, António Guterres, chamou de “uma ameaça existencial para a humanidade”. Nosso objetivo é promover mudanças sistêmicas em larga escala.
Quando hospitais alagam ou ardem em chamas, quando crianças têm os pulmões escurecidos pela poluição do ar, quando pacientes com sintomas devidos a temperaturas extremas sobrecarregam o atendimento, a própria crise se torna um catalisador da ação.
Ao proferir o juramento de Hipócrates, o médico promete manter-se “longe de todo o dano voluntário”. Assim, nos concentramos em acabar com a contribuição da área à crise, a qual, em 2014, era de 4,4% das emissões globais líquidas, um número já significativo que aumentou para 5,2% em 2019. O que procuramos é alinhar o setor com a meta do Acordo de Paris, limitando o aquecimento a 1,5º C, para que a indústria possa zerar suas emissões líquidas até 2050. Vislumbramos uma abordagem de descarbonização inovadora, que trará benefícios para a saúde, para a adaptação comunitária e para a equidade no setor, levando em conta o setor econômico como um todo, incluindo as categorias climáticas tradicionais – energia, transporte, construção civil, alimentos, plásticos e resíduos. Isso requer transformar por completo o fornecimento da assistência, a construção e o funcionamento das instalações clínicas e a produção de bens e serviços na área. Atingir essas metas ambiciosas exigirá também a colaboração de outros setores econômicos e sociais.
A HCWH e alguns parceiros, incluindo uma pequena mas dinâmica equipe da OMS, começaram pregando no deserto. Hoje, formamos a rede chamada Global Green and Healthy Hospitals (hospitais globais verdes e saudáveis), que ajudou centenas de milhares de instalações de saúde, em 84 países, a perseguir metas de baixo carbono e assistência sustentável e adaptada aos impactos da crise. Defendemos mudanças de políticas públicas e desenvolvemos estratégias sustentáveis de aprovisionamento que poderiam usar o enorme poder de compra do setor para fazer os mercados globais optarem por cadeias de suprimentos mais ecológicos.
Na última década, percebemos que a participação vem aumentando ano a ano em todos os continentes. Instituições que representam milhares de hospitais, bilhões de dólares em despesas e milhões de profissionais da saúde deram os primeiros passos. No entanto, sabíamos que não podíamos nos dar por satisfeitos. Se a assistência de saúde continuasse a funcionar do mesmo modo, sua pegada climática poderia chegar ao triplo em 2050. Por isso, começamos a planejar um roteiro de caminhos e ações que, se seguido à risca, poderia se alinhar com as metas do Acordo de Paris e descarbonizar globalmente o setor da saúde até 2050.
O ponto crítico
Embora vários elementos tenham contribuído para a mudança sistêmica em grande escala que estamos promovendo, houve um momento único, um ponto crítico que mudou tudo – o Programa de Saúde da COP 26 em Glasgow, na Escócia, em novembro de 2021. A partir daí, as ações passaram a se expandir de forma rápida e contínua.
O programa foi uma colaboração entre o Reino Unido, à frente da COP, a Organização Mundial da Saúde e a HCWH. Ele durou pouco, mas seu impacto foi enorme. A iniciativa tinha o objetivo de reunir os ministérios da Saúde de pelo menos dez países que se comprometessem com nosso roteiro. Essas expectativas foram logo excedidas. Durante a COP, cerca de 25% dos governos mundiais – 52 ministérios da Saúde de países de baixa, média e alta renda – aderiram ao programa. Mais de 20% se comprometeram com o net zero. Na mesma ocasião, atores não governamentais que representavam mais de 14 mil hospitais e centros de saúde do mundo todo se comprometeram a zerar suas emissões com a Race to Zero (Corrida ao Zero) da UNFCCC, iniciativa que buscava levar negócios, governos subnacionais e a sociedade civil à meta estabelecida pelo Acordo de Paris.
A Aliança para a Ação Transformadora do Clima e Saúde (Atach, na sigla em inglês), uma entidade informal global sob o guarda-chuva da OMS, foi criada no início de 2022, para ajudar os 83 ministérios que aderiram às metas da COP 26 a trabalhar juntos pela sua implementação. Além disso, a Índia, durante a presidência do G20 no ano passado, garantiu, com o apoio técnico do Banco Asiático de Desenvolvimento, a adesão formal dos líderes e dos ministérios da saúde dos países do G20 para alinhar seus sistemas de saúde com a Atach. Foi o primeiro compromisso coletivo sobre clima e saúde a ser firmado por chefes de Estado – e vale lembrar que os países signatários respondem por 75% de todas as emissões dos sistemas de saúde. Neste ano, sob a presidência do Brasil, o G20 terá a mudança climática entre suas quatro prioridades sanitárias.
O setor de ajuda humanitária, incluindo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e Médicos Sem Fronteiras, já considera os efeitos climáticos. Organizações de base defendem agressivamente o desinvestimento em combustíveis fósseis no campo da saúde.
O movimento para a assistência de saúde atingir o net zero continua a crescer, mas de um jeito complicado. Na COP 28, nos Emirados Árabes Unidos, a saúde foi considerada prioridade pela primeira vez. O tema ganhou um dia temático nas negociações climáticas de dezembro, quando foi anunciado um novo financiamento de US$ 1 bilhão para o clima e a saúde. A liderança dos Emirados Árabes Unidos e a OMS também comandaram a primeira reunião ministerial da saúde jamais realizada em uma COP, reunindo mais de 50 órgãos. Os participantes redigiram uma declaração sobre o clima e a saúde que incluía a agenda da Atach e foi endossada por mais de 140 países.
Paradoxalmente, o presidente da COP 28 é também diretor da empresa Nacional de Petróleo de Abu Dhabi, que é 12ª maior companhia petrolífera do mundo e junto a vários outros países, entre os quais os Estados Unidos, busca a expansão da exploração e da produção de combustíveis fósseis – enquanto sua eliminação é o principal passo para proteger a saúde pública da mudança climática.
Na COP 28, a HCWH e a Atach aumentaram a pressão do setor ao convocarem os líderes de organizações de saúde, que representam mais de 46 milhões de profissionais da área, a se alinharem com vários outros setores da sociedade para exigir do presidente da COP e dos membros dos governos a eliminação gradual da produção de carvão, petróleo e gás. As organizações se uniram a outros setores para impelir os governos a incluir esses compromissos no texto das negociações de Dubai. Os resultados foram conflitantes. Pela primeira vez na história das negociações climáticas, o texto exigia uma transição prevendo a eliminação dos combustíveis fósseis, indicando uma articulação por uma transformação e um primeiro passo para ações futuras. Ao mesmo tempo, as brechas eram enormes: o documento encorajava o gás natural como um combustível transicional e avalizava distorções perigosas, caso da aplicação de tecnologias não comprovadas, como a captura e o armazenamento de carbono. Essas falhas criaram as condições para uma batalha que deve se prolongar pelos próximos anos.
Tudo somado, ganhamos impulso. Tivemos enorme sucesso em mobilizar ações climáticas na assistência à saúde em um período curto, ajudando a colocar um setor que representa 10% do PIB global na rota da descarbonização, ao mesmo tempo fazendo dele um defensor de uma transição justa. No entanto, a breve história da ação climática está repleta de promessas vãs. As adesões dos governos pouco significam se eles não seguirem os planos, metas, cronogramas, financiamentos e medidas de fiscalização. Será preciso muito esforço para evitar novas expectativas frustradas e que as emissões do setor continuem aumentando.
Existe ainda uma série de obstáculos técnicos para a assistência à saúde zerar suas emissões líquidas. A cadeia de suprimentos – produção e distribuição de produtos farmacêuticos, instrumentos médicos, equipamento hospitalar, alimentos etc. – representa mais de 70% da pegada climática do setor. Para transformá-la, são necessárias mudanças sistêmicas profundas na regulamentação e manufatura, assim como na embalagem, transporte e descarte dos insumos. São passos que, por sua vez, exigirão uma ampla transformação econômica em vários países e a iniciativa do setor privado para mudar seus processos. Além disso, os governos e os sistemas de saúde precisarão definir regulamentações sustentáveis de aprovisionamento, de políticas e de práticas.
Outros desafios ainda precisam ser enfrentados. Por exemplo, encontrar caminhos economicamente viáveis e equitativos para a descarbonização, criar uma consciência para a questão climática e prover programas de treinamento para todos os profissionais do setor, reformular planos de saúde públicos e privados, de modo que seus subsídios incentivem as operações de baixo carbono – e outros mais. Na verdade, ninguém sabe ainda como seria um sistema de saúde net zero. Precisamos inventá-lo coletivamente, e ele certamente surgirá dos experimentos e avanços em diferentes partes do mundo. É importante destacar que, nos países grandes emissores e de renda mais alta – os que mais contribuem para o problema –, as soluções terão de ser mais rápidas e, em muitos casos, poderão ser bem diferentes das aplicáveis a países de baixa renda, nos quais, além de uma assistência de carbono baixo ou zero, será preciso promover acesso universal e equitativo ao sistema de saúde.
Felizmente, milhares de hospitais e sistemas de saúde tanto no Norte quanto no Sul Global estão comprometidos com o net zero e empenhados em criar soluções em diferentes frentes. Vários governos também trabalham para desenvolver e implementar planos para honrar os compromissos. O crescimento contínuo desse movimento deverá colocar um dos maiores setores socioeconômicos do planeta em uma rota climática cada vez mais inteligente, que poderá servir de modelo para toda a sociedade.
Por que agora?
Três fatores importantes desempenharam um papel fundamental para as mudanças no setor avançarem.
Primeiro, há apenas cinco anos, muitos atores do setor de saúde não consideravam o clima como uma prioridade. Atualmente, no entanto, os impactos das mudanças climáticas na saúde estão no radar de um número crescente de profissionais e gestores de saúde no mundo todo. Quando hospitais e unidades de saúde alagam ou ardem em chamas, quando crianças atendidas neles têm os pulmões escurecidos pela poluição do ar, quando pacientes com sintomas devido a temperaturas extremas sobrecarregam o atendimento nos centros médicos, quando as evidências mostram que a assistência de saúde é quem mais contribui para o problema, quando cientistas conceituados e a OMS destacam a urgência das mudanças climáticas, a própria crise se torna um catalisador da ação.
Segundo, a pandemia mostrou claramente o que significa uma crise multidimensional em escala planetária. Quando o surto de covid-19 começou a revelar a interconexão entre saúde e ambiente, a necessidade da ação climática nessa frente tornou-se mais evidente. A pandemia pôs os profissionais de saúde no foco das atenções. Ela expôs as profundas desigualdades no acesso ao atendimento médico diante de uma emergência global. Também ficou clara a necessidade de reforçar e transformar os sistemas para melhorar a prevenção e a preparação no caso de futuras pandemias e outros grandes desafios que a saúde poderá enfrentar no século 21 – incluindo a mudança climática.
Se em vários lugares os sistemas de saúde quase colapsaram na pandemia, como se comportará o setor diante de uma severa e crescente crise climática? Como nos preparar? O que fazer para evitar o problema? Surpreendentemente, médicos e enfermeiros nas linhas de frente, hospitais, gestores e altos funcionários ministeriais começaram a se fazer essas perguntas em meio a uma crise que os fez trabalhar até a exaustão. Muitos priorizaram a ação. No pico da covid, por exemplo, a Providence, uma organização de saúde sem fins lucrativos que congrega 52 hospitais e clínicas médicas nos Estados Unidos, se comprometeu a zerar suas emissões até 2030 e elaborou um programa para atingir essa meta.
Terceiro, os compromissos assumidos pelo alto escalão de ministérios da Saúde na COP 26 foram fundamentados em exemplos de acordos anteriores. A liderança do Reino Unido na questão do clima e da saúde em Glasgow baseou-se na experiência concreta do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra (NHS, na sigla em inglês), que, nos últimos 20 anos, se empenhou em promover, com sucesso comprovado, a descarbonização, planejando se tonar net zero até 2045. O sucesso do NHS legitimou o engajamento do Reino Unido com a causa durante sua presidência da COP, sinalizando para o mundo que a mudança era possível.
Da mesma forma, quando o Departamento de Saúde e Bem-Estar americano (HHS, na sigla em inglês) cogitava se comprometer com as metas da COP 26, foi encorajado por uma coalizão de grandes sistemas de saúde que já havia avançado bastante na questão – o Conselho Climático de Saúde dos EUA. Formado pela HCWH, ele reúne 21 grupos de saúde que representam mais de 600 hospitais em 43 estados, empregam mais de 1,3 milhão de pessoas e atendem mais de 81 milhões de pacientes anualmente. Naquela ocasião, o conselho enviou uma carta ao presidente Joe Biden e ao secretário do HHS, Xavier Becerra, apoiando a adesão do governo ao programa da COP 26. O governo assumiu o compromisso e iniciou esforços políticos, reguladores e espontâneos para sua implementação.
Quatro aprendizados
Nosso sucesso ao estimular o setor de saúde no enfrentamento das mudanças climáticas nos ensinou várias lições. Elas não só foram importantes para o movimento crescente sobre clima e saúde, mas também forneceram insights para movimentos sociais e agentes de mudanças preocupados com a questão climática em outros âmbitos. Elas se agrupam em quatro aprendizados.
1. A pandemia foi o prólogo. | A lição mais prática que a covid-19 nos ensinou sobre clima e saúde foi a de que a pronta resposta a emergências depende da implementação de princípios básicos. O primeiro destes é atenção primária – intervir antes que haja impactos na saúde. Para prevenir uma pandemia, pode-se pensar em preservação da biodiversidade, regulamentação da biossegurança, proteção da saúde animal e redução na disseminação de doenças zoonóticas. Já prevenir de forma eficaz os impactos da mudança climática na saúde exige uma reformulação profunda e de grande escala dos sistemas de energia do mundo todo, a fim de reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa.
A pandemia e a aceleração da crise climática nos mostram que essas duas prevenções estão relacionadas. Para prevenir essas ameaças é preciso não só interromper completamente o desmatamento generalizado de ecossistemas tropicais do mundo, como também formular uma abordagem colaborativa transetorial que integre a saúde de seres humanos, animais e sistemas naturais em um todo único e interconectado. A nascente abordagem One Health tem o potencial de reunir diferentes setores em escala global, nacional e local contra essa variedade de crises interconectadas.
A covid também mostrou que precisamos nos preparar melhor para agir rápido. As instituições de saúde não se planejaram para uma pandemia, apesar dos alertas claros de que isso poderia ocorrer num futuro próximo. Hoje há previsões sobre os graves efeitos da mudança climática na nossa saúde. Embora alguns hospitais e sistemas de saúde estejam tomando as providências necessárias, ainda corremos o risco de sermos pegos de surpresa novamente.
Seremos capazes de reunir a vontade política para a prevenção e preparação na escala necessária? O mundo possui ferramentas, tecnologias e conhecimento para ambas. A pandemia também mostrou que é possível fazer mudanças sociais rápidas e significativas. Um mundo conectado e interligado, com o respaldo do comprometimento político para combater uma ameaça existencial, pode fazer a “criatividade e a inovação funcionarem a uma velocidade inimaginável” – como definiu Liz McKeon, da Fundação Ikea, uma das maiores apoiadoras da HCWH, durante uma reflexão sobre lições da pandemia.
A pandemia também mostrou que médicos e enfermeiros são os porta-vozes mais confiáveis e respeitados na maioria das sociedades. Eles formam a linha de frente de qualquer emergência sanitária e exercem forte influência moral. Embora tenham ocorrido casos de desconfiança, esses profissionais demonstraram seu poder de persuadir a população e superar a polarização política com base na ciência e na expertise. Os líderes dos sistemas de assistência à saúde podem mobilizar a sociedade para enfrentar as mudanças climáticas – a maior ameaça à saúde do século.
2. Redes focadas em resultados bem definidos podem acelerar a mudança dos sistemas. | Depois do sucesso na eliminação do mercúrio, seguimos uma abordagem similar, atuando primeiro em hospitais locais, depois em sistemas de saúde regionais, nacionais e, finalmente, sobre a política global. No entanto, percebemos que a urgência da crise climática e a complexidade do setor de saúde demandavam uma estratégia mais sofisticada. Decidimos usar a maturidade e o vigor crescente do movimento para mobilizar nossos parceiros e colaboradores a interagir com outros atores pela mudança sistêmica em diferentes direções. Observamos que redes diferentes com um objetivo comum e em sincronia podem se reforçar mutuamente e se tornar mais robustas que entidades que perseguem isoladamente uma mudança linear.
Trabalhar do zero com organizações de base foi essencial para nossa estratégia. Nossa rede global identificou exemplos brilhantes nessa área e/ou plantou sementes que apoiam a cocriação, cultivo e agregação de experimentos bem-sucedidos sob diferentes condições: ricos e pobres, urbanos e rurais, norte e sul. Esse trabalho mostrou que é possível, tanto em nível nacional quanto internacional, estabelecer um ecossistema de mudança em grande escala. Esses avanços validaram as ações dos altos escalões políticos no mundo todo, provando que é possível avançar nesse campo.
O trabalho também mostrou que é essencial uma abordagem de cima para baixo. Nosso envolvimento com os especialistas da ONU, os Climate Change High-Level Champions, estimulou a participação de sistemas de saúde subnacionais e privados na Race to Zero e contribuiu para aumentar o número de entidades comprometidas com net zero. Nossa colaboração com a OMS e a presidência da COP do Reino Unido também criou um guarda-chuva sob o qual os ministérios da Saúde nacionais poderiam se unir ao Programa de Saúde da COP 26 e, a partir dele, à Atach. Esses compromissos e as políticas decorrentes foram muito além do que o movimento de assistência de saúde de base teria alcançado sozinho. Por outro lado, esse engajamento criou legitimidade política e, em alguns casos, pavimentou a rota por descarbonização e resiliência do setor, na base e em outros segmentos.
Essa abordagem baseada em rede e focada em resultados claros e bem definidos facilitou a interação entre abordagens de cima para baixo e de baixo para cima. Para criar o Programa de Saúde da COP 26, dispúnhamos de três redes globais que operavam em planos sobrepostos. Na posição de presidente da COP, o Reino Unido convocou sua rede diplomática e as embaixadas no mundo todo a entrar em contato com a liderança do governo; a OMS, com uma participação paralela, acionou sua rede de escritórios regionais e nacionais para envolver os ministérios; e, simultaneamente, a HCWH utilizou sua rede global e seus parceiros para mobilizar os departamentos e equipes dos ministérios. Essa sinergia entre os três articuladores fomentou o comprometimento no mundo todo.
Todos esses movimentos também criaram as condições propícias para uma série de esforços paralelos e fundamentais. Agências de desenvolvimento multilateral, como o Banco Mundial e o Banco Asiático de Desenvolvimento, por exemplo, estão examinando estratégias para organizar os mais de US$ 40 bilhões que eles e outros agentes gastam todos os anos em ações climáticas. Enquanto isso, agências financiadoras, como o Fundo Verde do Clima, estão discutindo como investir centenas de milhões de dólares em resiliência climática na assistência à saúde. Os governos que financiam essas instituições enfatizam categoricamente que esse esforço é prioritário. Por outro lado, o envolvimento dessas instituições garante que o financiamento e o desenvolvimento da saúde em países de baixa e média renda mudem nos próximos anos.
A cadeia de suprimentos em assistência à saúde, liderada pelo setor privado – grupos industriais que congregam fabricantes de equipamentos médicos, companhias farmacêuticas, seguradoras privadas, entre outros –, está cada vez mais preocupada com suas próprias contribuições para as pegadas do clima. Ela está reagindo aos sinais políticos e de mercado decorrentes desse movimento e começa a investigar formas de descarbonizar seus produtos e operações. Alguns gestores já defendem medidas reguladoras e a responsabilidade climática corporativa para os fabricantes desse setor.
Ninguém poderia prever por completo o grau de complexidade dessa mudança multidisciplinar, bem como reivindicar os louros por ela. Uma transformação radical nos sistemas de saúde exige que cada um dos vários elementos se envolva na transformação.
3. Crescer significa abrir mão. | Charlotte Brody, uma das fundadoras da HCWH, afirmou que “é possível reconhecer um movimento quando não se sabe tudo o que acontece nele”. As pessoas que trabalham na interseção entre clima e saúde forma, definitivamente, um movimento global. Nos últimos anos, o movimento superou o pequeno grupo inicial de organizações e redes que o fundaram e passou a incluir grandes instituições internacionais, dezenas de governos, milhões de profissionais de saúde e centenas de instituições com missões tão diferentes como vacinação, cobertura universal de saúde, prevenção de doenças não transmissíveis e erradicação da malária. Novas redes de médicos e enfermeiros defendem ar mais limpo e reivindicam medidas climáticas. Faculdades de medicina, associações nacionais de saúde pública e universidades renomadas estão cada vez mais engajadas. Duas das maiores entidades filantrópicas de saúde do mundo, a Wellcome Trust e a Fundação Rockefeller, se comprometeram a investir centenas de milhões de dólares em clima e saúde.
O objetivo da Aliança Global para o Clima e Saúde é unir esforços para apoiar a saúde nas negociações climáticas. O setor de ajuda humanitária, incluindo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e Médicos Sem Fronteiras, já considera os efeitos climáticos. Organizações de base da saúde defendem agressivamente o desinvestimento em combustíveis fósseis no setor da saúde, e o Movimento Saúde para o Povo, uma rede global de ativistas, organizações da sociedade civil e instituições acadêmicas, explora a interface entre a justiça sanitária e a climática. A Unitaid, iniciativa de inovação de produtos da saúde, deve investir US$ 100 milhões em tecnologia de baixo carbono nos próximos cinco anos. A Gavi, uma aliança internacional pró-vacinação, está empenhada em descarbonizar a cadeia de suprimentos dos imunizantes, e organizações como a Clinton Health Access Initiative utilizam sua experiência para influenciar o mercado e promover campanhas para reduzir a pegada de carbono da indústria farmacêutica.
A rápida expansão do movimento sobre clima e saúde está criando inúmeras oportunidades e recrutando mais participantes para a luta. À medida que essa nova realidade evolui, percebemos que nosso papel está mudando. Deixamos de ser os pioneiros responsáveis pelo impulso e estamos delegando a maior parte do trabalho aos outros. O principal foco de nosso trabalho está nos hospitais e sistemas de saúde, mas continuamos a mobilizar os profissionais em defesa da causa. Estamos trabalhando menos em iniciativas específicas e localizadas e nos dedicando mais a desenvolver ferramentas, manuais, treinamentos e políticas que apoiem mais implementação e defesa.
Estamos formando parcerias com grandes instituições com melhores condições de promover a transformação, como a OMS e o Banco Asiático de Desenvolvimento, e com um número crescente das principais organizações de saúde. Cada vez mais desempenhamos um papel de liderança, como facilitadores, catalisadores e parceiros do conhecimento. Criamos programas e iniciativas e as lançamos globalmente. Estamos aprendendo a deixar que elas evoluam e cresçam por conta própria. Nosso esforço tem se dirigido cada vez mais para a maior ameaça à saúde no âmbito do clima: a queima de combustíveis fósseis.
4. Para uma transição justa e saudável desvinculada dos combustíveis fósseis é essencial envolver toda a sociedade. | Apesar da grande mudança sistêmica que está se dando na assistência de saúde, a crise climática é mais rápida que outras transformações do setor. Propelir a mudança para que o sistema de assistência de saúde atinja o net é importante, mas não basta por si só. Não podemos esperar esse objetivo sem uma ampla e profunda mudança sistêmica em outros setores sociais.
Nos últimos anos, a lição mais importante que aprendemos de nossa experiência é provavelmente a mais óbvia: alinhar a assistência de saúde com as metas do Acordo de Paris requer um esforço multissetorial muito mais amplo, que envolva toda a sociedade. É preciso abraçar esse objetivo, mirar os benefícios imediatos e fazer uma transição rápida, justa e saudável, afastando-se cada vez mais dos combustíveis fósseis, com vistas a uma produção de energia limpa, renovável, barata, acessível, descentralizada e saudável. Sem ela, a ação da saúde sobre o clima fracassará. Nenhum investimento em resiliência ou adaptação será suficiente se a temperatura global continuar subindo.
Por outro lado, incluir a saúde na ação climática pode ajudar a acelerar mudanças mais amplas necessárias para estabilizar o clima global. A voz confiável dos profissionais de saúde pode ajudar a combater o massacre da desinformação e a propaganda da indústria de combustíveis fósseis.
Embora uma transição rápida pudesse evitar grandes devastações causadas por um aumento de temperatura de dois a três graus centígrados, uma transição justa e saudável também poderia resolver alguns dos maiores problemas atuais da saúde. Por exemplo, ela poderia ajudar a limpar o ar, evitando milhões de mortes por poluição atmosférica e um gasto de trilhões de dólares dos sistemas de saúde, criando assim um círculo virtuoso. Uma transição para uma energia renovável descentralizada também poderia estimular a equidade da saúde, melhorando significativamente o acesso aos serviços médicos em um mundo onde cerca de 59% das instalações sanitárias em países de baixa e média renda ainda não têm fornecimento de energia elétrica confiável, necessário para fornecer a assistência básica. Finalmente, uma transição justa e saudável reduziria o peso do clima quanto a doenças transmissíveis e não transmissíveis, protegendo e melhorando a saúde dos seres humanos, dos animais e do planeta.
Na HCWH traçamos um roteiro para uma mudança transformacional dos sistemas de saúde para zerar as emissões do setor. Precisamos reconhecer o papel decisivo que ele desempenhou nos últimos 150 anos na estruturação do saneamento público, na proteção dos direitos dos trabalhadores, na não proliferação de armas nucleares, no combate ao HIV e no controle do tabagismo. Proteger a saúde pública da crise climática pode ser um grande desafio, mas poderemos ser bem-sucedidos aprendendo com o passado e inovando para o futuro.