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Manifesto pela Clareza

Em Manifesto pela Educação Midiática, David Buckingham defende a busca por uma nova “alfabetização” de códigos e léxico para enxergar o mundo: a tecnologia como linguagem.

Por Alexandre Le Voci Sayad

A arte define o espírito do tempo em que vivemos. O agente invisível e implacável do zeitgeist (em alemão, “espírito do tempo”) foi âncora na filosofia ocidental por dois séculos, sempre focado na discussão sobre a arte. Na tentativa de compreender o que a mediação tecnológica significa em nossa vida hoje, esse olhar pode ser fundamental. Como exemplo, dois homens de nome Frank, um alemão e outro norte-americano, somados a um internauta desconhecido, poderiam resumir o mundo que nos cerca.

MANIFESTO PELA EDUCAÇÃO MIDIÁTICA Por David Buckingham Edições Sesc, São Paulo, 2022

O fotógrafo alemão Frank Kunert (1963) registra o mundo em miniatura, uma mistura de delicadeza e cinismo. Cria maquetes minúsculas que representam locais cotidianos (interiores de casas, indústrias) e amplia a escala por meio da fotografia. Já o músico e compositor norte-americano Frank Zappa (1940-1993), com muita ironia, tornou-se ícone do rock experimental para poucos, ao trazer elementos da música erudita para criticar a vida de consumo, sobretudo nos Estados Unidos – como um guerreiro da Escola de Frankfurt, fazia da mídia de massa, especialmente a TV, seu alvo principal nas letras e atitudes.

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Mas foi um ilustre desconhecido que deu sentido a esses dois mundos. Criou um meme, a peça da cultura digital de nosso tempo, que se tornou célebre: sobre uma foto de miniatura de um chalé, criada por Kunert, em que ele conecta a descarga de um vaso sanitário a um aparelho de TV, o internauta implantou a imagem de um Zappa cínico, com meio sorriso no rosto a olhar para a câmera. Como se dissesse: “Eu avisei que seríamos inundados por essa porcaria”. O mundo das mídias de massa, a criação digital, a cultura popular e a erudita foram comprimidas em uma imagem mimética que circulou o mundo, sem fronteiras.

O meme-charada é uma metalinguagem do que vivemos desde o advento do rádio, período que o professor britânico David Buckingham (da Loughborough University) tem como alvo em seu livro Manifesto pela Educação Midiática (Edições Sesc, São Paulo, 2022). Afinal, já nos anos de 1930, a educação formal começou a se chacoalhar quando as crianças levavam informações para a sala de aula não mais apenas dos livros ou dos papos com amigos, mas daquela caixa profana que começara a ocupar o centro das salas de estar no período entreguerras. O Telemedia Council e o Center for Media Literacy logo se estabeleceram como as primeiras organizações não governamentais a tratar do tema da influência das mídias na educação. A escola deixava aos poucos de ser o único templo do saber.

O que fazer com a onipresença da mídia? Essa questão ulula na mente de educadores e famílias desde a criação do primeiro veículo de comunicação em massa. Ignorá-la sempre foi o pior caminho – percebeu-se na prática. “Pensar criticamente”, como o próprio Buckingham se debruça em um capítulo do livro, é um termo problemático e que caiu em um “lugar-comum” entre educadores. Entre analistas de discurso oriundos do pensamento de Horkheimer, que viam como solução defenestrar o aparelho de TV, até otimistas como os líderes da Mídia 2.0, que acreditam que a criatividade impera quando trabalhamos com o tema, a escola foi tentando lidar com as tentações da mediação – até os tempos algorítmicos de desinformação e notícias falsas transformarem quase tudo em terra arrasada.

Entre idas e vindas de conceitos e práticas, a educação midiática tem sido uma episteme vencedora, entre as centenas que surgiram em quase um século. Ela parte do princípio de que a leitura, análise crítica e produção de mídia são fundamentais para a cidadania contemporânea. O que não significa redenção por parte das políticas educacionais, pois o ritmo de desenvolvimento da pedagogia não acompanha nem mesmo o avançar curricular dos cursos acadêmicos de formação de professores, quiçá a fome voraz dos empresários do Vale do Silício. O conceito, portanto, não é nem unanimidade na academia, tampouco se faz presente como deveria em escolas do mundo todo.

A partir desse diapasão, a importância do livro já se justifica. Buckingham é um britânico no sentido amplo do termo, da primeira à última página. Lúcido e preciso, escrutina como as tendências na análise e produção de mídia por estudantes ganharam e perderam importância nas políticas públicas do Reino Unido, e em outros países da Europa, e como a educação midiática não é um elemento solto dentro da teia de confusões que os currículos globais enfrentam para tentar corresponder aos desafios do tempo. Ao contrário, esses têm envelhecido sem dignidade, devido a batalhas políticas e sindicais, e se tornado símbolos da própria crise educacional generalizada.

Para Buckingham, é imperativo investir na educação midiática, mas também na regulação dos meios digitais. Nesse ponto, o livro se faz atualíssimo; o autor teme que o conceito sirva de barganha para justificar uma internet e algoritmos livres de qualquer regulação, como uma panaceia para o bem-viver. Também receia, com razão, que o termo, que não é acadêmico, mas forjado ante a uma ampla frente de especialistas e ativistas, queira englobar todas as mazelas ligadas ao universo digital: da cibersegurança aos princípios éticos que regem os domínios comerciais das big techs. Ele cita o esforço global da Unesco em abraçar o tema em um guarda-chuva mais amplo, Alfabetização Midiática e Informacional (AMI), como uma iniciativa louvável, mas incompleta.

A educação midiática sozinha não é suficiente para vencer a desinformação. [É preciso] ações que envolvem a regulação, programas de aprendizado ao longo da vida e políticas públicas de proteção ao cidadão.

 

O outro ponto de atenção, para o autor, é sobre qual modelo de educação midiática estamos criando e difundindo. Dentro da batalha conceitual, houve quem acreditasse, e apostasse, que educar para as mídias significava desenvolver fluidez em professores e alunos para utilizar as mais novas tecnologias educacionais. Algo que funcionasse como um manual de instruções para a indústria. Essa mistura de objetivos é presente até hoje e causa ainda mais incerteza sobre os valores e características dessas práticas. Estaríamos sublinhando a importância do uso de tecnologia educacional, que muitas vezes pouco agrega aos métodos de aprendizagem, ou criando um arcabouço ético para enfrentar a voracidade do mercado? Buckingham vai além, ao buscar uma nova “alfabetização” de códigos e léxico para enxergar o mundo; a tecnologia como linguagem, tal qual o ilustre internauta do início deste texto que “remixou” imagens para a criação de uma outra proposta de compreensão.

Nessa tentativa de cercar de que maneira a educação midiática se conecta com outras questões contemporâneas, há também um recorte histórico e raro em publicações sobre o tema. Entretanto, ao citar a abordagem “Frankfurtiana” que, para o autor, permanece atual ao lidarmos com as mídias algorítmicas, há um excesso de ingenuidade. Numa lógica de rede em que reinam a agência não humana de algoritmos, a presença intensa da inteligência artificial e o uso massivo de dados, teorias pouco flexíveis e ligadas à mídia de massa podem ser pouco eficientes. Como dar conta da historicidade de cada ponto que integra uma rede composta por humanos e objetos, da força ou fragilidade das conexões entre eles e dos milhares de contextos presentes?

Em outras palavras: como analisar criticamente a navegação de uma criança do Nepal, que acessou um site de compras norte-americano, e cujos dados foram parar na base do partido republicano daquele país, que, por sua vez, inunda sua caixa postal com anúncios da pré-candidatura de Donald Trump? Um olhar sobre a privacidade de dados é o somente mais evidente e simples aspecto dessa trama, pontuado pelo autor.

O último capítulo flerta com o tema, mas deixa um desejo de continuidade. Os próximos estudos devem mergulhar justamente no tema da inteligência artificial (IA), que rege boa parte da mediação do mundo hoje. Torna-se impossível compreender um processo comunicativo sem esmiuçar o funcionamento, os vieses, os impactos éticos e as particularidades de um algoritmo de IA. Essa mudança de paradigma não exige somente uma transformação de abordagem pedagógica, mas da lógica intrínseca ao processo.

Nesse sentido, uma série ampla de estudos e teorias, que têm sido chamados de “neomaterialistas”, provê um olhar sobre os elos e objetos da rede – Bruno Latour (1947-2022) ousou encarar esse desafio em uma profícua obra que, no Brasil, tem no pesquisador André Lemos (1962) um expoente. A tecnopolítica, os estados-plataforma, a posse sobre os dados e os princípios de isonomia da rede são temas que tangem a educação midiática e que não podem ficar de fora do debate atual.

Num desencadeamento não acadêmico, com poucas citações, este Manifesto é de leitura simples e pode servir como um farol de clareza para quem deseja se iniciar no tema – que agora conta até com um departamento com esse nome na Secretaria de Comunicação da Presidência da República, que pretende desenvolver a educação midiática nos currículos locais do Brasil. Os méritos deste livro são muitos, mas vale sublinhar, como Buckingham deixa claro, que a educação midiática sozinha não é suficiente para vencer qualquer batalha contra a desinformação. Trata-se de um ecossistema de ações que envolvem a regulação, programas de aprendizado ao longo da vida (lifelong learning) e políticas públicas de proteção ao cidadão.

O Manifesto pela Educação Midiática foi publicado originalmente pela Polity Books dentro de uma série de outros manifestos que retratam aspectos importantes da cidadania em tempos digitais, como jornalismo e mídia. Fazer parte de um quebra-cabeça mais amplo ajuda na compreensão da complexidade do tema. A versão em português traz o prefácio da educomunicadora Januária Cristina e o texto de orelha do jornalista e professor da ECA-USP Eugênio Bucci, que auxilia o leitor no entendimento do contexto.

Na abertura, permanece o principal desafio para qualquer pesquisador estrangeiro no Brasil, que é compreender as nuances do ecossistema de mídias daqui: internet velocíssima inunda os celulares dos executivos da avenida Faria Lima, em São Paulo, enquanto as notícias correm o rio Tapajós, no Pará, por meio de um alto-falante acoplado a uma voadeira. Desenvolver educação midiática nesse contexto é mais desafiador que remixar Kunert e Zappa em um meme.

 

O AUTOR

Alexandre Le Voci Sayad é educador, jornalista e escritor. Autor de Inteligência Artificial e Pensamento Crítico, entre outros. É mestre em Inteligência Artificial e Ética pela PUC-SP. Apresenta o programa Idade Mídia, no Canal Futura.



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