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Inovações que podem funcionar para o problema da moradia

Ten Global Cities apresenta uma série de medidas que, por meio de uma forte colaboração, poderão trazer soluções para pessoas em situação de rua e inovações para solucionar questões ambientais e sociais.

Por Gary Painter

how ten global cities take on homelessness
How Ten Global Cities Take On Homelessness: Innovations That Work Por Linda Gibbs, Jay Bainbridge, Muzzy Rosenblatt e Tamiru Mammo, 288 págs., University of California Press, 2021.

A população de pessoas vivendo nas ruas está aumentando no mundo todo, de São Francisco a Hong Kong. Embora as pesquisas mostrem que não existe uma solução única para esse problema, propostas recentes podem ajudar a reverter essa tendência global devastadora.

How Ten Global Cities Take On Homelessness: Innovations That Work (Como Dez Cidades Globais enfrentam o problema dos sem teto: inovações que funcionam, ainda sem tradução em português) apresenta algumas das intervenções mais promissoras para resolver essa crise. Os quatro coautores juntos formam um grupo com décadas de experiência em assistência social e habitação em Nova York: Linda Gibbs, responsável pelo setor de serviços sociais da Bloomberg Associates, Jay Bainbridge, professor associado de administração pública da Universidade Marista, Muzzy Rosenblatt, presidente e CEO do Comitê de Moradores da rua Bowery — organização sem fins lucrativos com foco em moradia, e Tamiru Mammo, gestor da consultoria de serviços sociais da Bloomberg Associates. A “paixão” — uma palavra que o livro cita mais de trinta vezes — é o que move o projeto. Os autores acreditam que “criar uma cultura de colaboração baseada em confiança, responsabilidade e uma forte paixão poderá atrair mais pessoas para locais onde possam encontrar segurança, dignidade e satisfação”.

Cada capítulo apresenta inovações de uma cidade do mundo, com 10 estudos de caso — Bogotá, Cidade do México, Los Angeles, Houston, Paris, Nashville, Baltimore, Edmonton, Atenas e Nova York — que exploram como se aproximar das pessoas desabrigadas até como desenvolver uma estratégia para moradias populares. Os quatro últimos capítulos se concentram em questões tanto no nível macro como de sistemas, por exemplo, como criar apoios políticos para obter mais recursos financeiros, como reagir em casos de emergência, e como as abordagens de gestão-desempenho podem facilitar o aprimoramento dos sistemas.

É provável que o livro não traga informações novas para os especialistas, mas os exemplos reais fornecem informação valiosa principalmente para o público em geral, especialmente para ativistas recém-iniciados no campo.

Cada capítulo mostra como as cidades estão utilizando soluções inovadoras emergentes e outras já comprovadas para abordar o problema de pessoas em situação de rua. Segundo os autores, as mais bem-sucedidas são aquelas que optaram por empregar uma combinação de “gestão eficiente, recursos suficientes investidos em práticas baseadas em evidências, e liderança”.

Os autores propõem duas inovações com modelo de serviço ambas focadas em práticas e programas: a primeira chamada Housing First (Moradia Primeiro) e a Engaging People on The Street (Envolver as Pessoas em Situação de Rua). Além disso, sugerem duas inovações no ecossistema com foco na colaboração transetorial: o pensamento sistêmico e as infraestruturas unificadas de dados digitais, ambas para coordenar e agilizar estratégia e serviços. O objetivo é que as inovações reduzam as barreiras burocráticas e organizacionais para enfrentar o problema da falta de moradia.

Para a maioria dos leitores a ideia de fornecer ‘moradia primeiro’ sem ressalvas ou pré-requisitos pode parecer óbvia. No entanto, não faz muito tempo, o setor de moradia adotava uma filosofia segundo a qual uma pessoa desalojada só poderia ter direito a uma moradia permanente depois de “escalar gradativamente os degraus: da vida nas ruas, nos abrigos, depois nas moradias temporárias e, finalmente, como último degrau, a moradia permanente”, explicam os autores.

Essa visão considerava a moradia como “uma recompensa pelo cumprimento das regras e uma melhoria progressiva”. A abordagem muitas vezes ou mantinha as pessoas em habitações temporárias ou as levava de volta às ruas.

No entanto, no início deste século, especialistas como Sam Tsemberis, fundador e diretor de Pathways to Housing (Caminhos para a Moradia), desenvolveram a abordagem ‘moradia primeiro’, segundo a qual a moradia era fornecida sem exigência prévia de sobriedade ou de adesão a algum programa de atendimento médico. Esse modelo de habitação solidária forneceu às pessoas em situação de rua a assistência necessária na condição de uma moradia estável.

Rigorosamente testado, o modelo mostrou-se adequado para criar uma estabilidade de moradia de mais longo prazo. Igualmente importante para a ampla adoção dessa visão foi o trabalho de Dennis Culhane. O cientista social demonstrou que com custos de apenas mil dólares mais altos que os das abordagens alternativas e com resultados habitacionais muito melhores, esse valor era bem empregado.

O sucesso do ‘moradia primeiro’ levou muitas cidades a tentar soluções que ofereciam somente abrigo, concedendo uma espécie de vale-moradia tanto como estratégia de intervenção como de prevenção. Veja, por exemplo, o novo programa de abrangência nacional nos Estados Unidos chamado Rapid ReHousing (Realocação Rápida), que oferece um auxílio imediato e de curto prazo para pessoas desabrigadas. O estudo de 2019 do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos sugere que os vales de Realocação Rápida tinham uma eficiência “40% maior que a opção de abrigos para evitar o retorno das pessoas às ruas”. Esse resultado foi tão animador que as cidades americanas — incluindo as que figuram no livro — ampliaram seus programas de vales.

Talvez a contribuição mais expressiva dos autores a essa área seja o capítulo dedicado à inovação de um modelo de serviço mais eficiente de aproximação das pessoas em situação de rua. Os métodos de abordagem são sutis, mas importantes de entender e aplicar, porque as pessoas envolvidas no serviço muitas vezes se sentem confusas quando desalojados não aceitam a oferta de moradia estável. Os autores explicam como traumas vividos podem criar barreiras psicológicas que resultam na recusa. Eles também observam que “é muito comum que indivíduos cronicamente em situação de rua não tenham completado o ensino médio e tenham sofrido traumas em casa — físicos ou psicológicos ou ambos”. Nesse caso então, as equipes precisam desenvolver laços de confiança baseada nos princípios de tratamento de trauma que requerem empatia e sensibilidade. Uma oferta de abrigo jamais pode ser feita de supetão, como uma opção “pegar ou largar”.

Os autores ainda enfatizam que a coerção “não é uma estratégia eficiente”.

O livro apresenta exemplos bem-sucedidos em Nova York, Bogotá e Atenas que podem orientar os interlocutores a “fazer o que a pessoa pede, dentro dos limites da adequação clínica e da conduta profissional”. O que esse trabalho inovador requer é dedicação e paciência das equipes, assim como disposição para “ouvir e não julgar, mostrar respeito, oferecer apoio, e motivar”, a fim de estimular “um relacionamento de confiança e frutífero”.

Algumas das ideias inovadoras necessárias para acabar com a falta de moradia, dizem os autores, tem como objetivo melhorar o ecossistema para que os modelos que oferecem serviços sejam mais bem direcionados e eficientes. Segundo eles, o nível de pensamento sistêmico neste contexto vai muito além de uma simples coordenação e colaboração, porque a maioria das cidades dispõe de uma complexa infraestrutura de departamentos que atendem pessoas em situação de rua.

Los Angeles é um excelente exemplo, embora ainda mereça cautela: a cidade fornece abrigos, segurança pública, serviços de higiene, e os distritos regionais supervisionam a maior parte da saúde e vários outros serviços sociais. Além disso, as redes de grandes e pequenas organizações sem fins lucrativos estão nas linhas de frente, juntamente com os órgãos públicos, abordando as pessoas que se encontram em situação de rua. No exemplo de Los Angeles, os autores mencionam como a Câmara de Comércio de Los Angeles e a organização filantrópica United Way elaboraram uma abordagem de impacto coletivo de coordenação e inovação entre diferentes líderes, chamada Home for Good (Lar para o Bem). Financiados em grande parte com recursos da Fundação Conrad N. Hilton, a Home for Good reúne agentes do serviço social e parceiros públicos e privados “para promover discussões mensais entre as equipes (…) sendo que a United Way fornece uma confortável sala de conferências e oferece aos participantes uma boa refeição preparada no local”.

Uma segunda inovação importante no ecossistema de assistência às pessoas em situação de rua se refere à capacidade de atualizar e integrar sistemas de gerenciamento dessa população a vários bancos de dados de saúde e emprego. Nova York e Los Angeles, por exemplo, têm acesso a sofisticados bancos de dados, enquanto que em Bogotá a vinculação de várias fontes de dados é suficiente.

No entanto, os autores não enfatizam o fato de que essas inovações nas redes estão todas em estágios iniciais de desenvolvimento e implementação. Apesar de os ganhos iniciais com o intercâmbio de dados para evitar que pessoas com alto risco de situação de rua terem se mostrado promissores, nesses sistemas os dados não incluem elementos importantes como dados demográficos e histórico de desenvolvimento habitacional.

Devido à abrangência dos estudos de caso, o livro não especifica detalhes sobre cada cidade para que o leitor possa entender os contextos nos quais as inovações funcionam. Os autores demonstram um profundo conhecimento sobre mudanças e inovações em Nova York — o que não surpreende, uma vez que eles trabalham na cidade — mas não conseguem demonstrar isso nos exemplos das outras nove cidades. Em particular, os estudos de caso de Edmonton, Bogotá, Atenas e Paris não apresentam dados suficientes para que os leitores possam entender como suas inovações estão conectadas à infraestrutura e aos sistemas de sociais mais amplos da cidade.

Os leitores talvez sintam que o livro, como indica o subtítulo, ”Inovações que funcionam”, promete mais do que pode oferecer. Muitas inovações em estágios iniciais ensinam lições importantes, mas não levam a soluções bem-sucedidas. É necessário especificar claramente quais delas tiveram sucesso e quais em estágio inicial foram projetadas e estão sendo implementadas atualmente. A falta dessa distinção pode levar a algumas conclusões enganosas — talvez um subtítulo mais adequado fosse “Inovações que Podem Funcionar”.

Por outro lado, várias cidades incluídas nos estudos de caso, como Los Angeles e Cidade do México, mostraram um aumento no número de pessoas em situação de rua, enquanto que outras como Houston e Nova York tiveram uma pequena redução. Essa discrepância está relacionada a questões que estão fora do escopo dos serviços de assistência aos desabrigados, como racismo sistêmico e burocracia dos governos locais que impedem o desenvolvimento de programas habitacionais. Os autores mencionam superficialmente esses temas que deveriam ser abordados novamente em mais detalhes na conclusão, discutindo como as melhorias no sistema de assistência aos desabrigados não acompanharam o número crescente de pessoas em risco de vulnerabilidade habitacional.

Em vez disso, o livro termina com uma mistura de conclusões fragmentadas que discutem a situação das pessoas em situação de rua no contexto dos acontecimentos contemporâneos e das questões sociais mais amplas para propor soluções que podem ser aplicadas em outras cidades. Um capítulo destaca o sucesso da campanha “Everyone In” (Todos Dentro) em Los Angeles cujo objetivo foi estimular a população a apoiar várias iniciativas do setor público para reduzir o número de desabrigados.

Os capítulos seguintes incluem mais detalhes aos sistemas de assistência social para pessoas em situação de rua e destacam a importância da gestão do desempenho.

A conclusão final descreve como as comunidades reagiram em momentos de crise como a pandemia da Covid-19, desastres ambientais e situações de emergência de saúde pública. De diferentes formas, o capítulo final mostra como as comunidades podem se mobilizar rapidamente para resolver a crise de direitos humanos existente em tantas cidades. Mas os autores deveriam ter apresentado uma reflexão mais adequada para explicar como essas lições podem ajudar a transformar o sistema de assistência social “resolvendo a crise do momento e modificando o sistema no longo prazo e para melhor”, como eles desnecessariamente sugerem.

Finalmente, o livro demonstra que, graças à paixão e determinação dos atores do serviço de assistência às pessoas em situação de rua, surgiram formas inovadoras de abordagem e modelos de ‘moradia primeiro’ bem-sucedidos. No entanto, ainda há muito trabalho a ser feito na integração dos sistemas para mitigar a crise em escala global.

 

O AUTOR

Gairy Painter é professor da Faculdade de Políticas Públicas Sol Price e diretor do Centro de Inovação Social Sol Price da University of Southern California.

 



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