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Desmontando o racismo à brasileira

Tese de Sueli Carneiro, finalmente publicada em livro, ajuda a desenhar um futuro de equidade

Por Bianca Santana

Dispositivo de racialidade, Sueli Carneiro, ZAHAR, 2023, 432 PÁGS., R$ 69,90

As contribuições de Sueli Carneiro no enfrentamento ao racismo e ao sexismo são amplamente reconhecidas no campo da inovação social, tanto no Brasil quanto internacionalmente. A ativista, como ela se descreve, tem sido uma força motriz na formulação de estratégias coletivas de transformação ao longo de quatro décadas. Esse compromisso com a mudança é evidenciado em sua produção intelectual.

Neste 2023, 18 anos desde a defesa na Faculdade de Educação da USP, sua tese de doutorado foi finalmente publicada sob o título Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser, pela editora Zahar. O posfácio, elaborado por Yara Frateschi, professora do Departamento de Filosofia da Unicamp, destaca: “Temos em mãos um dos livros mais relevantes de filosofia política escritos no Brasil”. A afirmação não é exagerada.

Ao longo de décadas, o Brasil foi propagandeado globalmente como um país que abraçava a miscigenação e supostamente não era racista, propagando o mito da democracia racial – que se tornou uma ferramenta poderosa de perpetuação de um racismo nosso, típico, um racismo à brasileira. Sueli Carneiro e sua geração enfrentaram coletivamente o desafio de desmantelar o mito da democracia racial e suas consequências. Os escritos de Sueli, desde a década de 1980, têm sido instrumentos na elaboração de estratégias políticas. Sua tese de doutorado não é exceção. Nela, a autora desnuda as ideias, discursos e práticas racistas que permeiam a sociedade nacional.

No Brasil, segundo Sueli, se produziu a forma mais sofisticada e perversa de racismo do mundo porque nosso ordenamento jurídico assegurou uma igualdade formal, com uma suposta igualdade de direitos e oportunidades, e autorizou toda e qualquer forma de discriminação racial.

A noção de racialidade, na sua abordagem, é relacional, e o Brasil apresenta uma divisão marcante entre dois polos: negros, compreendendo a soma de pretos e pardos, e brancos. Por construções históricas e culturais, uma série de concepções moldou e hierarquizou esses grupos, conferindo privilégios ou impondo prejuízos. Na dinâmica das relações raciais brasileiras, os brancos estabelecem sua superioridade ao construírem a inferioridade dos negros. Como denota o título da tese – adotado como subtítulo do livro agora publicado –, a construção do “Outro” (negro) é o fundamento da definição do “Ser” (branco).

Para desenvolver essa abordagem, Sueli utiliza a obra de Michel Foucault como uma caixa de ferramentas conceituais. A partir do conceito foucaultiano de “dispositivo”, Sueli Carneiro apresenta o “dispositivo de racialidade”, que estabelece a branquitude como um estatuto humano que reconfigura todas as dimensões da experiência humana e as hierarquiza com base na proximidade ou distanciamento do padrão branco. Nesse processo, pessoas negras são inseridas em um paradigma de inferioridade.

Empregando a abordagem genealógica de Foucault, que busca investigar origens e finalidades, a autora identifica uma virada histórica na origem do dispositivo de racialidade: o “contrato racial”, conceito definido pelo filósofo afro-jamaicano Charles Mills, recentemente traduzido e publicado no Brasil também pela editora Zahar. A partir do século 15, durante a expansão ultramarina e a violenta dominação europeia, surge uma nova tríade de poder, conhecimento e subjetividades moldada pela racialidade, estabelecendo uma dinâmica entre homens vs. nativos, brancos vs. não brancos. Uma supremacia branca é solidificada por meio do contrato racial. Respeito e justiça são pactos entre iguais, enquanto os desiguais são subjugados por meio da violência.

Nesse contexto, o Estado desempenha um papel de preservar e perpetuar a ordem racial, mantendo privilégios para os brancos e reforçando a subordinação dos não brancos tanto pela lei como pelos costumes. A teoria defendida por Mills se sustenta no contratualismo, tão caro à filosofia política, que ignora o colonialismo, a escravização negra, o racismo. A supremacia branca foi constituída na proliferação de discursos associados à racialidade: bulas papais, discussões sobre colonialismo, decisões jurídicas, debates sobre a humanidade dos não brancos. Sueli Carneiro mostra que as representações sobre o negro que passaram a circular nesse período consolidaram a justificativa para ser possível a existência de senhores e escravos.

Trabalhando com a noção também foucaultiana de biopoder, Sueli Carneiro mostra como o Estado mobiliza sua estrutura para promover a vida do “Ser”, enquanto abandona à morte – ou extermina – o “Outro”. As execuções policiais, portanto, não são “efeito colateral” de uma política de segurança pública, mas ação intencional de controle que, apesar da inexsistência de pena de morte no Brasil, emprega dinheiro público em balas direcionadas a corpos negros periféricos e favelados.

Mas, se há dispositivo, há também resistência. E a segunda parte do livro está dedicada a apresentar quatro ativistas de movimento negro: Edson Cardoso, Sônia Maria Pereira Nascimento, Fátima Oliveira e Arnaldo Xavier. Dois homens e duas mulheres, dois negros de pele clara e dois de pele escura, que encarnaram em suas vidas o processo de construção da identidade, os enfrentamentos com o racismo e a discriminação, a tomada de consciência individual e da dimensão política e coletiva desse processo, a construção da crítica e da autonomia. Quatro testemunhos da resistência ao racismo.

Edson Cardoso, militante histórico do movimento negro dedicado à agitação e propaganda, como gosta de dizer, atuou sempre na articulação política, formação e circulação de informação. Foi membro do Movimento Negro Unificado (MNU), assessor parlamentar no Congresso e esteve à frente da organização da Marcha Zumbi dos Palmares, pela Cidadania e pela Vida de 1995, e da articulação que criou o Comitê Impulsor para Durban. Na época em que a tese foi escrita, ele era mestre em comunicação social e ainda não havia ingressado no doutorado em educação na USP, que defenderia em 2009.

Sônia Maria Pereira Nascimento, advogada especialista em direito de família, direitos humanos e de mulheres, foi presidenta da Geledés por dois mandatos, depois coordenadora executiva, responsável pelo programa PLPs (Promotoras Legais Populares) e, naquele momento, pelo atendimento de mulheres vítimas de violência.

Fátima Oliveira era médica, militante feminista e antirracista, autora especialista nas áreas de direitos reprodutivos e da saúde da população negra. Pioneira nos estudos de genética e bioética de uma perspectiva feminista e antirracista. Em 2017, morreu em decorrência de um câncer.

Arnaldo Xavier, poeta, publicou inúmeros poemas, em português, francês e alemão, além de peças de teatro. Morreu em 2004 – seu testemunho, portanto, foi in memoriam já quando na defesa da tese.

Os regimes de verdades impostos pelo “Ser” ao denominado “Outro” são constante e permanentemente desmentidos pela resistência negra brasileira. E aí está a grandeza do livro de Sueli Carneiro. Além de nos permitir compreender as nuances que engendram nosso racismo, é possível vislumbrar a ação coletiva como possibilidade e esperança de um futuro de justiça social, forjado na equidade de raça, gênero e no enfrentamento às desigualdades.

 

A AUTORA

Bianca Santana é jornalista, doutora em ciência da informação e mestra em educação pela USP. É diretora-executiva da Casa Sueli Carneiro, que integra a Coalizão Negra por Direitos, comentarista do Jornal da Cultura e professora na Faap e na FGV. É autora, entre outros, de Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro (Companhia das Letras, 2021).



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