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O Feminismo Indígena na Cultura Americana

Um chamado para recuperar o matriarcado nas comunidades indígenas, reconstruir e decolonizar visões de mundo impostas às comunidades nativas.

Por Jihan Gearon

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(Foto: iStock/Jerry Sodorff)

O termo “feminismo indígena” pode soar ofensivo nas comunidades indígenas dos Estados Unidos. Vários editoriais do Times Navajo afirmam que o “feminismo é contra a nossa cultura”, e, quando realizamos workshops sobre o tema, os participantes geralmente ficam na defensiva e rejeitam a expressão. Posso entender esse comportamento, mas me surpreendi na primeira das muitas vezes que ouvi alguém falar sobre feminismo indígena. Fiquei imaginando as valentes matriarcas do povo navajo (ou diné), como Juanita ou minha avó, transformadas em mulheres impotentes, conforme mostram as fotos “antes e depois” da Carlisle Indian Industrial School, (colégio interno para americanos nativos fundado na Pensilvânia em 1879, por iniciativa do governo dos Estados Unidos).

Há uma tendência para se associar o feminismo indígena ao feminismo convencional, uma visão irreal de mundo dos brancos que desvaloriza o trabalho reprodutivo — “trabalho feminino” — e reforça a supremacia branca e o capitalismo. Mas nós, mulheres indígenas privilegiadas por termos sido criadas por nossas avós e matriarcas, sabemos que criar os filhos e cuidar da casa é uma atividade quase sagrada. Como poderíamos participar de um movimento que não valoriza nem entende esse conceito?

O feminismo indígena mudará o mundo, caso tenha uma chance. As palavras em si não são o que de fato importa e, se outras mulheres preferirem autodenominar-se “matriarcas”, ou “matriarcas em treinamento”, ou qualquer outra expressão em sua língua indígena que signifique mais para elas, eu vou apoiar. Meu objetivo não é debater palavras ou forçar todos a usarem as mesmas, mas insistir que o feminismo indígena, assim como todas as soluções de problemas dos povos originários, tem a ver com decolonização. Trata-se de reconhecer, identificar e descartar a visão de mundo forçada, reforçada e imposta pelo processo colonizador que ocorreu nos Estados Unidos, bem como valorizar os ensinamentos e tradições de nossos ancestrais.

O feminismo indígena, ou como quer que seja chamado, está inserido nesse contexto — ou deveria estar.

 

Palavras e Teorias Não Bastam

 

Numa definição vaga, o feminismo indígena é considerado uma interseção entre a teoria e a prática feministas que foca na decolonização, na soberania indígena e nos direitos humanos das mulheres indígenas e de suas famílias. Infelizmente, minha experiência mostra que a questão é principalmente teórica e relegada pelos especialistas a artigos e livros. Mas é preciso ir além de definições e teorias: as comunidades indígenas estão realizando um trabalho que considero parte de um feminismo exclusivamente indígena (mesmo não sendo explicitamente chamado assim).

Um exemplo é a Indigenous Feminist Organizing School (IFOS – na sigla em inglês), uma iniciativa que liderei enquanto diretora executiva da Black Mesa Water Coalition, em 2019, em colaboração com a Grassroots Global Justice Alliance e a Indigenous Environmental Network. Nossos objetivos eram ampliar relacionamentos, desenvolver uma análise e uma compreensão conjuntas sobre o patriarcado em comunidades indígenas. A escola reuniu aproximadamente 70 indígenas de 35 diferentes nações das Américas, que atuavam em várias frentes. Alguns participantes, como os que representavam o Planned Parenthood and Rez Condom Tour, realizavam trabalhos feministas em comunidades indígenas. Outros, como os da Coalition to Stop Violence Against Native Women, tratavam de questões específicas das mulheres indígenas. Outros ainda, como os das organizações Indigenous Pride L.A. e Grownup Navajo , ambas de Los Angeles, tinham como objetivo debater as perspectivas indígenas. E a atividade de grupos como a Black Mesa Water Coalition e a Indigenous Environmental Network visava proteger a Mãe Terra. Entre os participantes da IFOS havia parteiras, donas de pequenos negócios, estudantes, educadoras e líderes de clãs.

A IFOS se tornou um microcosmo do feminismo indígena. A experiência foi enriquecedora. Descobrimos que estamos no estágio de reconhecimento e identificação do patriarcado em nossas comunidades e que queremos continuar discutindo uma forma coletiva de empoderamento para a ação. Percebemos que alguns aspectos desse feminismo em desenvolvimento são estritamente indígenas, questões-chave como: o abuso sexual e o assassinato e desaparecimento sistemático de mulheres indígenas; nossa responsabilidade com o planeta e com a nossa terra natal; e barreiras importantes como a realidade da colonização e suas tentativas de assimilar-nos e acabar conosco (ou melhor, assimilar-nos para acabar conosco). A decolonização exige não só nossa busca por direitos, mas também a reivindicação e defesa de nossos papéis e responsabilidades tradicionais. Por isso, nosso feminismo é tão diversificado quanto são as centenas de comunidades de toda a América do Norte, cada uma em seu próprio estágio de evolução pós-colonial e com suas próprias crenças e tradições.

 

A Construção do Matriarcado

 

O mais importante é que nosso feminismo evoca uma história na qual nossos sistemas matriarcais — um ponto que o feminismo convencional ainda não atingiu — não só existiram, mas se tornaram essenciais para nossas culturas. Em alguns casos, isso ocorreu há apenas algumas gerações. A maior parte de nossas culturas sobreviveu graças à força das mulheres indígenas. E são as mulheres que hoje continuam a liderar, apesar de não receberem créditos nem apoio.

No entanto, é preciso enfrentar essa questão: o respeito que dedicamos a nossas avós e matriarcas e seus papéis em nossa cultura não se refletem na sociedade convencional. E tampouco são visíveis em nossas próprias comunidades, nas quais o patriarcado domina parcialmente — ou até completamente —, por meio de conselhos comunitários e lideranças masculinas. Percebemos isso quando egos masculinos se apoderam e prejudicam os movimentos criados pelo trabalho árduo da organização de mulheres, quando quatro entre cinco mulheres nativas são vítimas de violência e quando essa violência atinge membros de nossas comunidades queer. Percebemos isso quando aceitamos a regra de que as mulheres devem se colocar sempre em último lugar e, se não o fizerem, devem se envergonhar. Percebemos isso quando permitimos a destruição do planeta para que os ricos se tornem mais ricos. Percebemos isso quando colocamos nosso conforto acima da sobrevivência das gerações futuras.

O patriarcado dá aos homens poder e privilégio à custa das mulheres e funciona como uma estrutura para a dominação e opressão de pessoas gays, queer e transgênero, bem como para um desenvolvimento atrofiado dos homens. Nas comunidades indígenas, ele também destrói e distorce os ensinamentos indígenas e suas concepções sobre gênero e sexualidade, ou seja, a diversidade e poder desses aspectos e experiências. Afinal, no povo diné existem, tradicionalmente, quatro gêneros, dependendo do papel que cada um desempenha na comunidade. O naadheeh (homem feminino) e a dilbaá (mulher masculina) são os únicos com responsabilidade e capacidade para atuar como interlocutores entre a asdzáá (mulher feminina) e o hastiin (homem masculino). Sua principal função é manter o equilíbrio entre o masculino e o feminino.

 

Patriarcado, Colonialismo e Capitalismo

 

O patriarcado não só está intimamente associado aos sistemas de colonização, supremacia branca e capitalismo como tais sistemas precisam do patriarcado para existir.

O trabalho feminino é um subsídio do capitalismo. O trabalho reprodutivo é necessário para a reprodução social (tudo o que é preciso para uma força de trabalho se replicar): comprar utensílios domésticos, preparar e servir as refeições, lavar e consertar as roupas, cuidar dos móveis e eletrodomésticos, educar as crianças, fornecer assistência médica e apoio emocional aos adultos e manter os laços familiares e da comunidade. Essas atividades envolvem trabalho manual, mental e emocional. Como muitas pessoas perceberam durante a pandemia de covid-19, todo ser humano precisa desse tipo de trabalho essencial para viver. No entanto, o trabalho reprodutivo raramente é considerado trabalho. O patriarcado ensina que esse é o papel “natural” das mulheres e, assim, mesmo quando é remunerado, é mal pago.

Esse tipo de capitalismo e patriarcado caminha de mãos dadas com o colonialismo. Em Dinétah — minha terra natal, agora limitada à Nação Navajo —, enquanto resistíamos aos espanhóis e guerreávamos contra os americanos ainda seguíamos nossos costumes tradicionais e preservávamos nossa sociedade matriarcal, o que permitiu que as matriarcas decidissem sobre questões envolvendo terras e recursos. Mas, quando o governo dos Estados Unidos obrigou cerca de 9 mil navajos a uma marcha forçada de quase 500 quilômetros até o acampamento de Bosque Redondo, no Novo México, onde foram mantidos prisioneiros de 1864 a 1868, época conhecida como Hwéeldi, ou a Longa Caminhada, as mulheres foram submetidas a novas atrocidades e estupros constantes, sendo forçadas a se prostituir para sobreviver.

Esse foi o início de uma violência sexual institucionalizada contra nossas mulheres e de uma transformação na maneira como elas eram vistas pelo seu próprio povo. Imagine como foi difícil presenciar essa violência e não poder fazer nada para impedi-la. Imagine ter de estimular essa violência para obter alimento e suprir outras necessidades básicas.

Hoje, quando as mulheres indígenas são assediadas, geralmente ignoramos. Nós apenas confiamos na capacidade de superação da mulher navaja.

E a história prossegue quando, em 1868, assinamos um tratado que nos permitia voltar para casa, mas para uma área muito menor. Quando assinamos o tratado, também concordamos que nossos filhos seriam educados de acordo com o sistema dos Estados Unidos. Isso significava enviá-los para internatos e forçá-los a assimilar a forma ocidental de pensar e agir. Além de valorizar a supremacia branca, essas escolas ensinavam ao nosso povo o binarismo de gênero e os papéis a ele associados: que as mulheres valem menos do que os homens, que pessoas queer não são normais etc.

Em 1922, quando descobriram petróleo na Nação Navajo, foi formado o Navajo Nation Business Council, para assinar contratos de arrendamento e atender às demandas das empresas petrolíferas. O secretário do Interior na época, defensor da indústria petrolífera, sabia que a Nação Navajo não teria acesso à prospecção de petróleo se ele adotasse um sistema de clãs diversificado e distribuído. Por isso, foi criado o “conselho comercial” e três homens navajos foram selecionados para integrá-lo. Esses homens foram provavelmente os primeiros a nascer durante a Hwéeldi e os primeiros a ser assimilados nos internatos. Homens que, sem dúvida, aprenderam e foram encorajados a agir de acordo com a crença de que eles, simplesmente por serem homens, poderiam tomar decisões, e que a prospecção de combustíveis fósseis significaria progresso. A formação do conselho comercial marcou o começo do fim da tradicional tomada de decisão via sociedade matriarcal.

As mulheres ainda mantinham seus próprios rebanhos, é claro, e isso lhes permitia certa autonomia econômica e algum sucesso: na década de 1870, tínhamos 15 mil ovelhas; nos anos 1920, passamos a ter 500 mil; e, por volta de 1931, chegamos a 2 milhões de cabeças. Mas o colonizador não estava interessado no nosso sucesso, por isso o governo federal colocou em prática uma política chamada Navajo Livestock Reduction, que comprava, retirava e abatia nossos animais (e prendia quem se opunha a isso) O governo criou também um sistema de manejo de pasto — em vigor até hoje — que garantia que não voltaríamos a criar nossos rebanhos. Essa medida não só acabava com a autonomia econômica do povo navajo, mas, principalmente, impactava as mulheres, porque eram elas as donas dos rebanhos. Os homens trabalhavam como assalariados, enquanto as mulheres e as famílias ainda dependiam muito da pecuária ovina para sobreviver. Acabar com esses rebanhos era uma forma de garantir que as mulheres navajas também passassem a depender do trabalho assalariado, das decisões e do comando dos homens navajos.

Se o capitalismo é o sistema e a colonização é sua prática, o patriarcado é a base que sustenta ambos. Ao longo de 70 anos, os colonizadores roubaram as terras e os recursos das populações nativas e distorceram o entendimento cultural das responsabilidades e dos papéis de gênero. A reorganização federal e as políticas de assimilação continuaram até a década de 1960. Minha própria mãe participou das políticas de realocação que transferiram povos indígenas de suas terras de origem para centros urbanos com o intuito de acelerar a assimilação. Por isso, não é de admirar que a economia baseada em combustível fóssil tenha assumido o controle de nossas terras a partir do início da década de 1970. Tampouco surpreende que, enquanto os homens cisgênero que dirigiam o governo tribal assinavam esses acordos com a Peabody Coal Company, eram as matriarcas de Big Mountain e Black Mesa que lutavam — e continuam a lutar — contra eles.

 

Matriarcado Atual

 

Se nossa cultura continuou forte, foi graças às mulheres navajas. E nossas matriarcas resistem até hoje. As mulheres indígenas são líderes poderosas até hoje. Pessoas como Enei Begaye-Peter, do Native Movement, Wahleah Johns, da Native Renewables, e Eriel Deranger, da Indigenous Climate Action , não só dedicaram suas vidas para proteger nossas terras, mas também são exemplos reais de uma transição justa fora da economia extrativista. São mulheres como Lillian Hill, do Hopi Tutskwa Permaculture Project, Linda Black Elk, da United Tribes Technical College, e Nicole Gonzáles, da Changing Woman Initiative, que estão aprendendo e disseminando nosso conhecimento tradicional em benefício da saúde de nosso povo. São mulheres como Ethel Branch e Janene Yazzie, da Navajo & Hopi Families Covid-19 Relief, que estão apoiando e garantindo a saúde de nossos povos durante a pandemia. E há muitos outros exemplos. Porque esse é o nosso jeito. É nossa tarefa cuidar do lar e da terra natal. E continuamos firmes nessa jornada, apesar de o patriarcado tentar usurpar nossa autonomia, liberdade de ação e poder como mulheres indígenas.

Imagine como esse trabalho será muito melhor quando as matriarcas indígenas readquirirem sua autonomia, liberdade de ação e poder. Não o poder sobre os homens ou outras pessoas, mas o poder transformador, que nasce do autorrespeito e da igualdade com os outros em toda a sua diversidade de identidade, experiência e capacidade. Este é o ponto crucial do feminismo indígena.

O feminismo indígena ainda precisa amadurecer muito, principalmente nos Estados Unidos. Mas não estamos sós. A Alianza Política Sector de Mujeres, da Guatemala, já criou várias ferramentas de formação política para promover o feminismo indígena nas comunidades maias e gostaria de se unir a nós e nos apoiar. A Grassroots Global Justice Alliance organiza IFOS por todo o país, promovendo as bases do feminismo e desenvolvendo oportunidades para indígenas, negros, pessoas negras queer e outras minorias, que poderão colaborar e crescer juntas. A World March of Women mobiliza milhões de mulheres no mundo todo em ações coletivas e acumula décadas de conhecimento e experiência.

O feminismo indígena exige que não só desempenhemos nossos papéis culturais, mas também corrijamos a forma como esses papéis foram distorcidos pela colonização e pelo patriarcado. Ele nos obriga a fazer perguntas difíceis e ter discussões difíceis. Precisamos questionar e duvidar até do que nos foi ensinado como “tradicional”.

Uma profecia navajo diz que quando as mulheres ocupam a liderança acontecem fatos nefastos ao povo navajo e ao mundo, como perder nossa língua, nossa cultura e nossos filhos. Na verdade, acredito que essa predição foi usada como argumento para impedir que mulheres se candidatassem a presidente da Nação Navajo e muitos navajos ainda se recusam a votar em mulheres. O patriarcado pode ter recorrido a essa profecia para invocar o medo sobre nosso futuro, sobre a liderança das mulheres e mudanças. Ele nos mantém exatamente onde estamos, isto é, numa situação em que coisas ruins estão acontecendo ao nosso povo e ao mundo, em que estamos perdendo nossa língua e nossa cultura. Esse tempo já chegou, mas não sinto medo. Eu olho para as matriarcas na minha vida, para seu trabalho defendendo nossas terras, falando em nome da terra, da água, dos animais e das futuras gerações, e percebo que eu também acredito na profecia. Para mim, porém, o que a profecia significa é que a liderança das mulheres é mais necessária agora.

 

A AUTORA

 

Jihan Gearon (@JihanGearon) é artista, escritora e ativista conhecida por seu trabalho na Black Mesa Water Coalition e sua expertise em justiça ambiental e climática, transição justa, diretos dos povos indígenas e feminismo indígena.



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